David Lynch, ao construir seu próprio mundo, sustenta-o com uma linha de raciocínio peculiar: a aparente normalidade de todo ser humano esconde os mais curiosos fatos e sentimentos. Veludo azul, de 1986, é o filme que melhor resume a estética de seu diretor, não por levar ao extremo a falta de lógica de sua lógica – o que faz, de forma primorosa, Cidade dos sonhos – mas justamente pelo contrário: ao assumir um compromisso com a realidade – a realidade tipicamente americana da cinematografia noir – o bizarro, comum às suas obras, torna-se ainda mais estranho, pois ganha proporções grandiosas ao ser colocado lado a lado com o ordinário.Mas Lynch faz questão de nos apresentar o belo do ordinário: o canteiro de rosas vermelhas margeado por cercas brancas sob o céu azul, a organicidade dos subúrbios americanos, a clássica beleza caucasiana da mocinha, o heroísmo destemido da juventude e as palavras minuciosamente escolhidas dos diálogos.
O diretor e roteirista parece querer mostrar a superficialidade do olhar distante. Os outros são sempre normais, sempre felizes com suas gramas mais verdes. Contudo, quando se abre a porta da casa e, convidados ou não, entramos na vida do próximo percebemos a excentricidade das vicissitudes dos homens e de suas vidas mundanas. Somos convidados a apreciar um pacato subúrbio americano, aquele das cercas brancas e flores no jardim, mas a partir de um estranho acontecimento – uma orelha humana é achada por um rapaz no chão do bairro – ultrapassamos, pouco a pouco, a barreira do olhar estrangeiro até nos afundarmos na estranheza daquelas pessoas, daquele subúrbio, que funciona, para Lynch, como simulacro do mundo.
O diretor nos apresenta a uma obra tensa, passamos um tempo que não se conta sem conseguir respirar tranqüilamente, o suspense do noir é levado ao extremo: Veludo azul é sufocante. Ficamos presos à tela, fascinados pela estranheza das situações, pela beleza dos quadros e pela curiosidade provocada pela possibilidade do impossível, típica da filosofia do artista criador de realidades. Talvez seja essa a matéria-prima de Lynch: a realidade, suas camadas e as inquietações que ela provoca. Assim, o diretor nos oferece uma obra que penetra nessa realidade decifrando algumas de suas camadas. Vale lembrar, no entanto, que desvendamos uma realidade própria de Lynch, com elementos cinematográficos que fazem de Veludo azul um dos mais significativos filmes da década de oitenta.
Essa é a verdadeira mágica, afinal de contas os personagens de Veludo azul, assim como os personagens de historias noir, são estereótipos, prevalecendo sobre eles as ações da trama, mas os acontecimentos são absurdos, estão dentro do mundo lynchiano. Portanto, é realmente admirável que o filme seja capaz de nos envolver. A coerência do mundo criado por Lynch não põe em duvida a veracidade daqueles personagens e situações. Acreditamos, assim, na realidade lynchiana – ainda que ele faça questão de nos lembrar que tudo aquilo é cinema. No fim, todos têm a certeza de Jeffrey: it’s a strange world. E quem duvida?
fellipe, sou teu fã, queria dizer isso. :)
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