quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

"Um hino ao amor e à amizade" por José Bruno Marinho


http://www.youtube.com/watch?v=1JH3O4HSs7g

A bela canção Le tourbillon de la vie (“O turbilhão da vida”), que aparece sendo cantada em uma das cenas de Jules e Jim – Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1962), sintetiza bem o enredo desse filme de François Truffaut. Embora apenas apareça lá pela metade do longa-metragem, a música auxilia na compreensão da história narrada e, como o próprio diretor foi enfático em afirmar, “marca o tom para o filme e é a sua chave”. Numa das estrofes, escuta-se: “Temos de nos conhecer uma vez e, depois, uma segunda vez / Perdemos contato uma vez e, depois, outra vez / Voltamos a nos encontrar e trouxemos calor um ao outro / Depois, nos separamos, cada um, sozinho, partindo de novo no turbilhão da vida”.
Uma das obras mais representativas da Nouvelle Vague – movimento artístico do cinema francês que defendia a transgressão às regras normalmente aceitas e praticadas no cinema mais comercial –, Jules e Jim traz a história da sólida amizade dos personagens-título do filme: o austríaco Jules (Oscar Werner) e o francês Jim (Henri Serre). Eles se conhecem casualmente na Paris do início do século XX e, uma vez partilhadas as afinidades quanto ao gosto pela arte e pela vida boêmia, tornam-se amigos inseparáveis. Nessa atmosfera de liberdade, carpe diem e afins, Jim e Jules conhecem Catherine (Jeanne Moreau), uma francesa também adepta a esse estilo de vida e pela qual ambos se apaixonam. Jim, à sua maneira mais discreta, reservada e aparentemente indiferente; e Jules, de forma mais incisiva, direta, quase que sedenta. Embora Catherine se case e tenha uma filha com Jules, o triângulo amoroso se faz onipresente ao longo do filme.
Por mais que trabalhe com diversos temas – a amizade, o amor, as lembranças da Belle Époque e do pós-guerra –, Jules e Jim é, antes de tudo, um filme de personagens. É evidente que se os personagens não fossem interessantes, o filme também não o seria. E do trio, certamente quem mais intriga e embriaga o espectador é a personagem magistralmente interpretada por Moreau. Catherine é uma jovem mulher que deseja viver com as mesmas liberdades de um homem, desejo este que se deve mais à particularidade da sua personalidade do que a uma atitude feminista ou reivindicativa de sua pessoa. Ela é a própria personificação da imprevisibilidade e do mistério: é inconstante, indecisa, possessiva; mas, por outro lado, revela-se independente e divertida, constituindo uma companhia extremamente viciante. Como todo ser de caráter temperamental, Catherine solicita sempre atenção, dedicação e devotamento. Ela quer ser o centro a todo custo e a todo momento, procurando deixar o foco permanentemente em sua direção. Ao contrário do que o título do filme sugere, Catherine é, sem dúvida, a personagem central da história narrada: ela é quem dita o rumo do seu relacionamento com Jules e com Jim, que – uma vez inebriados pela sua presença – satisfazem os caprichos da bela mulher e se rendem às decisões desta.
Baseado no romance homônimo escrito por Henri-Pierre Roché aos 66 anos, Jules e Jim vem ratificar a imagem de Truffaut como praticante ilustre de um cinema literal. A paixão desse cineasta pela literatura só era superada pela do cinema e, dessa dupla paixão, ele desenvolveu um estilo peculiar de fazer filmes. Em Jules e Jim, tido como uma de suas adaptações de maior qualidade, Truffaut resgata a narração em off, reintroduz a importância preponderante dos diálogos na compreensão da história, entre outras escolhas que o revelam como um indivíduo obcecado pela palavra. Além disso, outros aspectos formais do filme merecem destaque, como a fragmentada e espontânea montagem, os movimentos despojados da câmera, o congelamento de imagens, entre outros truques criativos que garantem fidelidade ao livro adaptado, mas igualmente permitem ao diretor recorrentes visitas a sua imaginação.
Apesar de tratar de um dos problemas cruciais no casamento – a infidelidade –, a temática central do filme aparenta ser a amizade. De cena em cena, de diálogo em diálogo, Truffaut descortina aos olhos do espectador uma cumplicidade cega entre Jules e Jim e enfatiza o companheirismo infinito que marca os dois amigos, os quais compartilham uma amizade que nem a Primeira Guerra Mundial, ao separá-los conforme a bandeira dos seus respectivos países, consegue extinguir. Além disso, o filme denota também uma mensagem de tolerância a uma forma de amar habitualmente reprovada pela moral. E se ele consegue ser simultaneamente subversivo e cativante é justamente por causa das excelentes atuações do trio protagonista e do inegável talento de Truffaut que, sem agredir ao público, envolve-o de forma a aceitar na tela certas situações que provavelmente condenaria na vida real. Como poucos outros filmes, Jules e Jim torna natural o que poderia parecer excepcional.

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