domingo, 1 de julho de 2012
Você sabe o que pensa o rato na quinta? , por Luciano Viegas
O rato, na quinta, pensa o mesmo que em todos os dias: pão e presunto, mais presunto que pão. É neste tom sarcástico que Fassbinder iguala a protagonista de Martha (Margit Carstensen) ao roedor – frágil e incapaz de refletir sobre suas próprias circunstâncias, estrangulada pela rigidez do matrimônio, ela pensa apenas no imediato: agradar ao marido Helmuth (Karlheinz Böhm)
O primeiro encontro do casal é silencioso e tão rude quanto às suas relações posteriores, no plano-sequência mais impressionante do filme. A câmera gira 720° em torno dos protagonistas, que se entreolham e seguem rumos opostos – algo como os tantos encontros casuais cotidianos que não dispõem do artifício do movimento de câmera para denunciar o tal “momento mágico”.
Virgem aos 30 anos, Martha é insegura e depende de calmantes, como a mãe. Ela se apoia na primeira promessa de estabilidade emocional, o casamento. Fassbinder molda uma personagem que de tão ingênua é, também, cômica. Tenta-se desvendar por dentro a origem misteriosa de uma submissão que não é de Martha, mas das várias gerações de mulheres que se viram enclausuradas pela dedicação exclusiva, sexual e doméstica, aos seus maridos.
Como em Roleta Chinesa, Fassbinder está preocupado em esfacelar as falsas relações burguesas, desmascarando os seus indivíduos. Helmuth é sádico, arrogante e não suporta concessões. Fica escancarado o modelo ultrapassado de desigualdade entre os sexos e, de forma irônica, a impossibilidade de fugir dessa união indesejada. Martha terá de esperar sentada, literalmente, “até que a morte os separe”.
"Charulata, a esposa solitária", por Matheus Espíndola
Charulata (1964, Satyakit Ray) é uma belíssima película, construída com extrema atenção aos detalhes, levada em frente com delicadeza, e desvelada perante nossos olhos com um senso único de preciosismo.
O filme abre com um plano-detalhe: as mãos de Charu (apelido carinhoso dado à protagonista) bordando um lenço para seu marido, Bhupati, ao som ressonante da Sitar. Logo depois, a acompanhamos enquanto caminha pelos corredores da mansão que habita, conversando com o mordomo, retirando livros da estante, observando o movimento das ruas pela janela da sala. Ao mesmo tempo em que observamos Charulata como uma esposa indiana igual a outra qualquer, a sensação é que estamos a observar um fantasma. Em meio ao luxo de sua casa, Charu caminha sem rumo, sem objetivo, sem vida, mesclando-se com os próprios objetos dos seus aposentos, e mesmo quando seu marido a ultrapassa, nem sequer a repara. Observando as pessoas de sua janela, descobrimos com ela o exterior: as ruas e as pessoas, e entendemos o valor daquele instante de voyeurismo: a sutil presença da liberdade em uma prisão implícita. É nesses instantes, gloriosos a sua maneira, que o filme transcende o visível, e se coloca num nível puramente poético de apreciação da imagem e de seu significado.
O preciosismo do filme me remete ao preciosismo bergmaniano. Como em Fanny e Alexander, somos convidados a um universo límpido, de uma cenografia impecável, imagens harmônicas e bem-enquadradas, e de atuações sinceras e divertidas, onde podemos realmente sentir a conexão dos personagens. Mas enquanto Bergman nos apresenta um conto de fadas iluminado pelos olhos de uma criança, Ray nos dá uma estória de amor e liberdade vista aos olhos de uma esposa reprimida. Sendo assim, o filme é permeado por um sofisticado senso de melancolia, onde mesmo as cenas mais felizes são levemente insaturadas graças à presença desse olhar lânguido, mas ainda assim límpidas e reluzentes, como, por exemplo, na cena do balanço, onde observamos o close-up contínuo no rosto de Charu enquanto se balança e canta. O jardim é idílico, Charu sorri satisfeita, mas ainda assim seu sorriso é vago, e em alguns momentos sentimos a iminência das lágrimas. Essa delicada tensão, que surge de forma espontânea ao longo da canção, torna a cena uma das mais belas e envolventes do filme.
E por falar em imagens, quantos usos inusitados da fotografia. Temos planos-detalhes em movimentos, close-ups que bruscamente se tornam mid-shots, e, além de tudo, os últimos instantes do filme, congelando a imagem e deixando em aberto as possibilidades de resolução da narrativa. Jamais tinha visto isso em algum filme preto e branco, ainda mais colocado de tal forma que cause um estranhamento tão marcante assim. Curiosíssimo.
Os outros dois personagens principais são ótimos. Bhupati é um intelectual, revolucionário, que ama e admira sua esposa, mas divide seu tempo entre ela e seu jornal. Amal, seu irmão, um jovem poeta bon vivant, divertido e ingênuo, defensor dos ideais românticos. Os dois, em oposição, colocam na tela a influência da Inglaterra nas terras indianas ainda colônias. Bhupati recorre também a pensadores ingleses para lutar pela independência da Índia, enquanto Amal é claramente influenciado pelo romantismo britânico. Mesmo com as suas diferenças, ambos são personagens visionários e honestos, que preenchem o filme com beleza e sensibilidade.
Se em Primo Basílio Luísa paga cruelmente o preço da traição, em Charulata isso nem chega a se consumar. Num universo onde tudo parece caminhar em direção ao inevitável, a única resposta que a vida poderia lhe dar é a indiferença, desafiada bravamente pelos gritos da tempestade, que se submete às explosões cáusticas do destino. Charulata não é um grito de revolta nem um lamento sofredor, mas uma canção indiana, triste e sagrada, alimentada por anos e anos de tradição.
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terça-feira, 17 de abril de 2012
A lucidez sangra no chão, Luciano Viegas
Para todo problema – acredita-se, no senso comum – há uma solução. E por todo o mundo vagueiam pessoas que sofrem nos próprios ossos o reconhecimento das mazelas ao seu redor. Estas, por sua vez, tornam-se um problema para si: qual é a saída para quem, à luz de uma clareza extrema, perde todas as convicções? Descrença: o mundo se encontra mergulhado num caos insolúvel e, a esta altura, inevitável. Encarar a lucidez parece ser um dos mais pesados fardos, por isso Bresson atira nela pelas costas.
O Diabo Provavelmente (1977) é denso e atualíssimo, como se fosse corriqueiro identificar na sociedade contemporânea jovens que compartilhem das mesmas preocupações - ambientais, existenciais, morais - de Charles (Antoine Monnier) – eu mesmo. Mais de um século depois de Nietzsche, a desilusão total com as coisas – a impossibilidade de se ver concretizar um outro mundo – ainda nos parece muito óbvia. Estamos todos entregues à incerteza do porvir.
Talvez em nenhum outro filme seu, a opção do diretor por utilizar não-atores tenha se encaixado tão perfeitamente. A palidez e aparente fraqueza de Charles comprovam os traços psicológicos debilitados de um personagem que escolhe, conscientemente, a apatia. Quando viaja de trem com seu amigo Michel (Henri de Maublanc), ambos permanecem calados: não há mesmo nada a ser dito que tenha mais força que o silêncio mútuo, sem esboço de reação.
Por fim, o próprio analista entrega os pontos: Charles é um caso sem solução para as ferramentas de sua pobre psicanálise, daí a sugestão, nada sutil, de que os romanos, quando incapazes de cometer o suicídio, incubiam a tarefa a um amigo.
Ironia pura e constante, desde o título até o niilismo que contrasta com a posição religiosa tão demarcada na biografia do diretor. Bresson é sentimental às avessas: extrai do seu apreço ao racionalismo a mais dura frieza, agressivamente. Michel – desses “amigos verdadeiros” – compreende Charles a partir da indiferença, como se compartilhassem de uma mesma consciência, do mesmo mal – ainda que claramente seduzido pelo preço do crime. Nem o suicida convicto escapa da angústia do momento derradeiro antes do fim. O que poderia ser mais gentil e amigável que uma apunhalada de surpresa, como dois amigos que se abraçam pela última vez? A lucidez foi derrotada e sangra no chão
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terça-feira, 3 de abril de 2012
A garotinha de Paris, por Barbara Carvalho Rodrigues
Na cidade do amor, uma garotinha não entende porque os casais apaixonados desperdiçam suas vidas com o romance, enquanto um jovem rico acha a vida tediosa, e o tio dele agradece, por não ser mais jovem e ter uma vida menos complicada.
Situado na Paris da virada do século 20, o filme Gigi conquistou vários prêmios, como 9 oscars, incluindo melhor filme, roteiro adaptado e direção. Porém, o que se destaca no filme é a direção de arte e, principalmente, o figurino. Minelli contou com Cecil Beaton para que a florida cidade, com a torre Eiffel e outros marcos parisienses, não sobressaísse o figurino, composto por vestidos esvoaçantes e com muitos detalhes, cartolas e trajes formais, mesmo que este fosse predominantemente em tons claros. Os números musicais são supreendentemente simples, geralmente o personagem canta para ele mesmo ou uma conversa ganha musicalidade, e essa simplicidade foi o que me encantou e deu o ar diferente.
Gigi, como sua tia-avó diz, é menina boba, diferente de outras do cinema, como Lolita, ela não faz joguinho, não deixa meia frase no ar. Não entende o amor, e tão pouco se importa. E mesmo com uma atriz de 27 anos interpretando o papel, a inocência e delicadeza da personagem de 15, não são perdidas. Já Gaston, é um milionário mimado, tem tudo o que deseja, logo, não se alegra por nada. A sociedade em geral, é retratada como superficial e vazia, as personagens secundarias são unilaterais. Como o caso da avó da protagonista, que aparenta ser uma senhora amargurada e desesperada para agradar Gaston, sua irmã, que é apenas uma mulher que teve uma vida com aventuras e vive a lembrar do passado, e o tio de Gaston, simplesmente um senhor com dinheiro aproveitando seus últimos anos. Não existe crime, pobreza ou grande problema no gênero Musical, mas em Gigi, nem um pequeno conflito existe. Excluindo, claro, o caso do casal principal, que simplesmente não pode aceitar que a vida e o amor são coisas boas, e das reputações, que são o foco de maior preocupação entre a avó e a tia da personagem principal. O romance parece nascer rapidamente, mais rapidamente que o considerado normal nos filmes, uma hora Gaston olha para Gigi como irmãzinha, depois de cantar uma música, ele já tem certeza que a ama.
Mesmo com o final feliz, típico dos musicais, Gigi é para quem ainda não se apaixonou: o tio acha que casamentos são o fim, e a personagem principal diz que o amor tira a visão das pessoas sobre a realidade. E no final, ainda existe um gostinho de que o casal ainda tem muito o que aprender, para que o felizes para sempre realmente exista. E ainda que a garotinha, tenha se tornado a mulher de Gaston, eles não parecem ter aceitado que o amor é a coisa mais importante de suas vidas.
"O fundo do coração", por Camilla Lapa de Sá Câmara
O filme começa mostrando a cidade de Las Vegas, que foi toda feita em estúdio com diversos cenários e uma direção de arte excepcional, enquanto isso se escuta uma das músicas da trilha sonora, composta e cantada brilhantemente por Tom Waits, em alguns momentos a música parece dialogar e expressar sentimento de acordo com o que ocorre no filme.
Após a “apresentação” da cidade, nós vemos Frannie (Terry Garr), fazendo a composição de uma vitrine, ela trabalha em uma agência de turismo, e sonha em conhecer os lugares exóticos que são construídos por ela na vitrine e que ela só conhece por foto. O seu namorado Hank (Frederic Forrest) trabalha em uma espécie de ferro velho perto do deserto em Nevada, seu sonho é ter uma vida estável, comprar a casa em que os dois vivem e por isso os dois têm grandes divergências de pensamento, pois ela é sonhadora e ele realista. Por esse motivo, eles brigam e então se separam no feriado de 4 de julho, e é como se eles conquistassem uma independência e tivessem liberdade para fazer o que quisessem.
Uma das coisas mais interessantes no filme é a iluminação que muitas vezes nos guia na história, nos faz entender o que os personagens sentem e em alguns momentos ela tem vida própria, nos dá outro olhar sobre determinada cena.
Outro fato interessante é a transição de uma cena para a outra, quando Hank está falando sobre Frannie com o seu melhor amigo Moe (Harry Dean Stanton), por exemplo, a cena seguinte de Frannie conversando com a sua amiga sobre Hank é sobreposta e aparece na parede da sala em que Hank está. Então, o ambiente da cena da frente se escurece como em uma peça de teatro, chamando a atenção para a conversa das garotas. E esse tipo de sobreposição ocorre muito durante o filme, pois mesmo separados, um sempre está pensando no outro, há uma forte ligação entre eles.
Para tentar esquecer Frannie, Hank se envolve com uma atriz circense, Leila (interpretada pela belíssima Nastassja Kinski), e a leva para o ferro velho que é um local de maior realidade para Hank, lá Leila começa a dançar e andar numa corda bamba enquanto Hank rege uma orquestra formada pelas buzinas e pelas luzes dos carros velhos, os dois passam a noite juntos no ferro velho e na manhã seguinte Hank acorda desesperado querendo saber onde Frannie está e passa a procurá-la, Leila então desaparece, como em um passe de mágica.
Quando Frannie vai embarcar em um avião com Ray, para Bora Bora, Hank tenta convencer Frannie a ficar com ele, dizendo que a ama e canta uma música, mas mesmo assim ela decide embarcar, o que faz com que ele fique arrasado, escuta-se um trovão e então o ambiente fica pesado, começa a chover, simbolizando o interno de Hank. Ele vai na chuva para sua casa, que está muito sombria, pega as roupas de Frannie, se senta na frente da lareira e se prepara para queimar tudo, enquanto chama o nome dela chorando, nesse mesmo instante Frannie entra na casa dizendo que cometeu um erro em partir, a chuva para e o ambiente fica claro. Os dois se aproximam emocionados, se beijam e permanecem abraçados. Ao fundo mais uma bela canção composta por Tom Waits e interpretada por Crystal Gayle, uma cantora de country que cantou de uma forma sublime o jazz da trilha de Waits. E assim o filme se encerra, com um final previsível.
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"Na captura dos Friedman", por Júlia Suassuna de Albuquerque Wanderley
Andrew Jarecki é um americano cineasta, músico, graduado da Universidade de Princeton, onde era um diretor teatral. Sua obra mais conhecida é “Na captura dos Friedmans”, o seu primeiro longa-metragem, que ganhou dezoito prêmios internacionais. Além desse filme ele fez vários curtas-metragens e foi co-fundador da Moviefone. Hoje está em Nova York e está desenvolvendo dois filmes narrativos.
A intenção de Andrew Jarecki era, inicialmente, fazer um documentário sobre o palhaço David Friedman, famoso no circuito de festas infantis em Nova York. No entanto, ao descobrir uma história muito mais complexa e perturbadora que estava por trás desse palhaço, o diretor mudou completamente a temática do filme. Então, foi daí que surgiu a ideia de fazer o documentário intitulado “Na captura dos Friedmans”, que não mais se referia a uma única pessoa e sim a toda uma família e a todos que de algum modo foram atingidos pelo escândalo.
Esse documentário retrata a vida da família Friedman, que foi desestruturada quando Arnold, um estimado professor, e seu filho mais novo Jesse, de 18 anos, foram acusados de abusar sexualmente de menores em Long Sland, NY. Arnold as ensinava informática e piano, enquanto seu filho era seu assistente.
Arnold foi flagrado pela polícia através de revistas pornográficas que recebia da Holanda com um grande apelo sexual à imagem de menores. Essas revistas provocaram toda uma investigação a cerca do caso, que estava apenas começando. Depois das revistas iniciaram-se investigações mais íntimas a respeito da vida do professor e este acaba sendo acusado de pedofilia, de ter molestado seus alunos, juntamente com seu filho. Essa acusação feita pela polícia foi reforçada por depoimento de alunos, que se diziam vítimas de estupro, e seus respectivos pais. Esses acontecimentos deixaram as pessoas indignadas e com sede de justiça. A partir de então a vida dos friedmans virou um verdadeiro caos. Arnold e seu filho foram julgados e os dois foram presos ao revelarem sua culpa em seus respectivos julgamentos. No entanto, há aqueles que acreditam que só se declararam culpados por terem sido coagidos a tal, tanto pela esposa de Arnold quanto pela sociedade (mídia).
Interessante mostra-se o direcionamento desse documentário tendo em vista a imparcialidade do diretor em relação à resolução do caso, fazendo com que o filme seja mais instigante à medida que o espectador não sabe ao certo em quem acreditar: na polícia ou nos próprios Friedmans. Até porque as provas incriminadoras obtidas no caso foram todas baseadas em depoimentos.
A narrativa apresenta-se fragmentada, mostrando tanto as repercussões públicas quanto relatos da vida íntima da família em questão. E esse rico material foi fornecido pelos próprios Friedmans, que filmaram todo ou, pelo menos, grande parte do caso tendo em vista que o irmão mais velho, David, tinha o hábito de filmar o cotidiano da família, inclusive os desentendimentos. Fato que facilitou bastante a execução do filme.
Um ponto fundamental desse documentário que vale a pena ser analisado e serve de reflexão para todos nós é o fato de que há, hoje em dia, uma visão crítica muito restrita em relação ao que a mídia impõe na sociedade. Importante analisar até onde será que essa influência pode afetar as decisões das massas e até que ponto aceitamos o que ela diz ser a “verdade” dos fatos.
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Fim de Verão, por Ghita Galvão
O penúltimo filme de Ozu, estreado em 1961, trata de uma família de classe média tradicional japonesa que vive em meados do século XX e está passando por uma crise: O patriarca, já idoso, tem encontros com sua ex-amante, saudoso de sua época de juventude; a nora viúva está pouco preocupada em casar novamente; a filha mais jovem que ainda não casou, também não pretende; a filha casada tenta “normatizar” essa família que está saindo dos padrões das famílias tradicionais; e por fim a possível filha bastarda, é extremamente americanizada e materialista.
É mais um filme que não foge ao modo de Ozu trabalhar, contando sempre, histórias familiares. Esse, apesar da carga dramática, tem um toque de humor que deixa o filme mais leve, como que uma despedida, feita em planos longos e abertos - sugerindo a contemplação - bem pensados e em consonância com os poucos cenários.
É possível traçar, nessa obra, um paralelo entre o Japão (fazendo referência ao país em si) e a família retratada. Considerando o enredo do filme como uma metáfora para a história do país, que vinha passando por uma série de mudanças em diversos aspectos, social, cultural, econômico etc.
Ozu nos mostra um pai, que passa a não se importar em comandar a família e os negócios, ficando a cargo da filha e de seu marido as questões todas de gerenciamento da casa e do trabalho. Uma relação que nos passa uma simbologia muito significativa do novo que assume o comando consentido pelo o velho, pois esse velho pretende viver sem regras o tempo que lhe resta, é possível reparar também, no sentido desse novo rumo, que agora está sendo guiado por uma mulher, ainda que com a ajuda do marido. É ajudada, porém, por outras duas mulheres fortes e decididas que não permitem aos outros tomarem decisões por si.
Para fazer uma analogia do filme com uma parte da história Japonesa, é necessário que se entenda a inserção do país na política ocidental que aconteceu por volta da metade do século XIX, com a abertura comercial do país, iniciando assim, a sua época moderna (em termos ocidentais), a qual teve seu fim no ocidente com a Revolução Francesa ainda no século XVIII e que se iniciava no Japão com uma série de particularidades.
Em um entendimento geral, partindo de um ponto de vista econômico e mais usual, entende-se por Idade Moderna o momento de ascensão da burguesia em detrimento nobreza e de uma maneira específica é isso que acontece no Japão, e se consolida ao mesmo tempo em que levanta força para acompanhar o resto do mundo para competir de igual para igual na economia capitalista. Acaba por assumir uma postura totalitária, diante das alternativas políticas que o mundo para o qual se abriu lhe oferecia e recebe um saldo de duas cidades destruídas e uma rápida recuperação, devida principalmente ao seu passado e cultura tradicional e nacionalista.
No momento em que o filme se passa, o Japão está em processo de consolidação e recuperação frente à economia burguesa e estrutura do país, está ainda bem próximo a Segunda Guerra mundial. Assim como, a família do filme passa por uma série de problemas que os leva a um desfecho saudoso e relutante do que está por vir e ainda que firme, seguro no passado tradicional da família.
É possível fazer, então, uma analogia entre a família e o Japão, o pai e o tradicionalismo, a filha casada e a burguesia, mesmo que com novas ideias ainda muito pautada no tradicionalismo, a nora e a filha solteira representando uma nova visão política que surge, com destaque para a emancipação feminina e por fim a possível filha bastarda, representando a cultura ocidental materialista e fugaz que estava se impondo ao país em pontos positivos e negativos, sem preocupação.
E como desfecho do filme, a ideia de renovação e mudança é bem representada no funeral e na fala do casal de camponeses que dizem:
- Seria natural se fosse alguém idoso, mas seria trágico se fosse alguém jovem.
- Sim, mas não importa quantos morram novas vidas nasceram para ocupar seus lugares.
- Você tem razão. É o ciclo da vida.
(Cortejo Fúnebre e fim)
"Short Cuts", por Pedro Ivo Albuquerque Costa
Em Short Cuts – Cenas da Vida (1993), Robert Altman consegue dar o melhor acabamento de sua obra até ali. Altman já havia demonstrado ser um diretor simpático ao estilo narrativo fragmentado, mas Short Cuts é sua obra mais bem acabada e o ápice de sua carreira.
Sem apelar para o sentimentalismo barato, Robert Altman e o co-roteirista Frank Barhydt, a partir de contos de Raymond Carver, constroem uma narrativa brilhante, mostrando que se pode fazer um filme longo sem ser cansativo, ainda mais sem apelos dramáticos típicos de filmes hollywoodianos. A abordagem narrativa é ágil e muito bem montada, sem a “epilepsia” e afetação comuns a muitos filmes de ação recentes, por exemplo. Mesmo com tanta complexidade e dificuldade num trabalho de tal porte, o roteiro é obsessivamente coeso e coerente, de atordoar os espectadores.
Tendo como marco inicial e final acontecimentos naturais (não se sabe ao certo a intenção de Altman com isso), essa obra-prima trata de forma tranquila e sem excessos a banalidade e melancolia no cotidiano de diversos e numerosas personagens em Los Angeles, abordando acontecimentos comuns a toda megalópole. Tais personagens têm um papel flutuante durante a trama, alternando-se na qualidade de protagonistas e coadjuvantes sem, no conjunto da obra, algum ganhar mais destaque do que o outro. De alguma forma, as histórias das personagens se entrelaçam e um, normalmente sem saber, acaba interferindo na vida do outro. São pessoas doentias, depressivas e problemáticas em geral (assim como no cotidiano), de diversas classes sociais e áreas de atuação. Essas pessoas costumam tratar seus problemas como a maioria das pessoas na vida real o faz: por meio da inércia. Fugindo e procrastinando-os.
Short Cuts é um filme tão marcante que influenciou diversas obras posteriores, como o muito bom Magnólia, de Paul Thomas Anderson, e o recente e medíocre Crash – No Limite, de Paul Haggis. Influenciou também em diversos elementos que se tornaram clichês posteriormente, como a presença de um policial e de um âncora de TV. Short Cuts se trata de um filme simplesmente genial, que já marcou a história do cinema mundial e mostrou que em Hollywood há espaço para obras que desafiem a ortodoxia e incipiência que se depreende da maioria de suas produções
Sei onde fica o paraíso!, por Paula Gondim
Ela realmente sabe para onde está indo ou apenas pensa que sabe? Ela realmente tem todo o controle sobre sua vida ou algo que tenha uma força maior do que ela pode deixá-la sem esse controle?
Joan Webster desde muito cedo se mostra decidida em relação a tudo que deseja, isso mostrado nas cenas que falam da sua infância e juventude, quando ela vai numa direçao oposta ao que a maioria das garotas da época fazem. Torna-se uma mulher inteligente, que tem uma visão do mundo a frente do tempo em que vive; é ambiciosa e busca realizar suas vontades sem muito preocupar-se com a opinião dos outros. É perceptível no inicio do filme, quando ela diz a ele que vai se casar com um homem rico e o pai diz que ela não pode casar-se com ele e ela diz que vai casar com ele sim, que nem o seu pai exerce algum poder sobre ela e sobre as suas decisões, o que para época é algo totalmente incomum.
“Eu sei para onde estou indo. E sei com quem eu vou. Eu sei quem eu amo. Mas sabe Deus com quem me casarei..” o trecho da música mostra de alguma forma essa mulher decidida, mas ao mesmo tempo dá um um duplo sentido de que ela pensa sabe para onde está indo e quem ama, mas que na realidade o “Mas sabe Deus com quem me casarei” mostra que ela não está tão no controle da situação. Essa perda do controle sobre seu próprio destino, quando, por causa de um vendaval, se vê impedida de continuar a viagem até a ilha onde será seu casamento , desestabiliza a Srta Webster. E diante da sua impotência com aquela situação ela toma atitudes precipitadas e até egoístas, por que o que ela realmente quer, casar-se com um homem rico ter uma boa vida, está indo de encontro com um sentimento que está surgindo entre ela e o Torquill, que é o verdadeiro dono da ilha que ela tanto deseja chegar, mas não é aquele homem rico que ela desejou durante sua vida. Perder o controle sobre seus sentimentos é algo que Joan não pode acontecer, é irônico ela que sempre teve controle sobre toda a sua vida, ver-se numa situação que foge ao seu domínio. E então ela toma a decisão de seguir para a ilha mesmo com o mau tempo, como uma tentativa de fugir dos seus sentimentos por Torquill.
Esses poucos dias e as pessoas com que Joan convive mostram que ao mesmo tempo em que não é possível manter o controle sobre tudo que acontece na vida, nem impor suas decisões como sendo as certas e as que devam acontecer; ainda assim no fim do filme é ela que tem poder de decisão final sobre a sua vida; e ai ela que vai decidir entre viver o que realmente pode lhe fazer feliz, ou simplesmente continuar no seu desejo infantil e de ter somente aquilo que o dinheiro pode lhe dar?!
"O dinheiro", por Antonio de Lira
A tirania imposta a todos nós pelo fatalismo decadente do sistema monetário foi marcantemente traduzida em linguagem cinematográfica por Bresson. Em “O dinheiro”, último filme do renomado diretor de “Pickpocket,” sintetiza o amor decadente que a sociedade humana expressa pelo popular dinheiro, mostrando-nos quais façanhas o ser é capaz de realizar para conseguir a tão almejada moeda de troca da modernidade.
Uma nota falsa de 500 francos dispara o gatilho intermitente da narrativa, levando um rapaz de boa família a mentir ao passar a nota à frente, enganando a quase ingênua funcionária da loja de fotografia, quando o dono da loja reconhece a falsidade da nota, desonestamente decide dar continuidade à trajetória do dinheiro falso, pagando com a nota um prestador de serviços, Yvon, que não desconfia da origem do dinheiro e descobre que é falso através das autoridades policias. O técnico em revelação da loja de fotografia produz, por ordem do dono da loja, um falso testemunho contra o ingênuo prestador de serviços, que acaba sendo preso, mostrando que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, quando o assunto é dinheiro e mentiras.
Yvon quando preso, perde a filha que morre de difteria, é abandonado pela esposa e se vê totalmente sem rumo, até encontrar o técnico em revelação que acaba preso por ter roubado ao cofre da loja de fotografia sendo descoberto por distribuir o dinheiro, com o intuito de prestar caridade. Na cela da prisão o diálogo entre Yvon e o técnico expressa a idéia central do filme, onde o título do filme aparece e o dinheiro é chamado de Deus visível.
O filme é marcantemente construído sem uma trilha sonora, que não chega a fazer falta, pois os sons diegéticos preenchem perfeitamente as lacunas que poderiam ter música, com o farfalhar do dinheiro produzindo uma quase melodia. A violência das cenas finais é tão impactante quanto a forma como Yvon assume seus atos.
A mulher sem cabeça (lucrecia Martel, 2008), por Ludmila Ramos
O filme nos recebe mostrando de forma simplista, quase tediosa os ambientes que estão prestes a se cruzar. A estrada e Verônica em seu carro. O susto do acidente parece contemplativo e quase não dura. Na tela podemos nos perder no gesto de pôr os óculos ou nas marcas de mãos no vidro do carro. Sinto-me distraída, mas a essa altura já não sei se pelo ritmo do filme ou se pela personagem em si. O acidente paira sobre ela e sobre nós, que não sabemos muito bem o que aconteceu.
Ela parece transtornada mas tudo ao seu redor também, não como uma melodramática dúvida mas um aperreio sutil nas falas, nos toques e nos rostos dos outros. As relações de Vero com os vários membros de sua família parecem levemente tortas. A impressão de ter algo errado vai além da presença dela em quadro. Está no som que apenas supomos a origem, está no cuidado que todos tem para com ela que excede um senso comum do que seria a forma adequada de se tratar alguém debilitado e beira uma admiração. E, no entanto, os cuidados pairam apenas na superfície do que seria o ‘problema’ dela.
No momento que Vero verbaliza a sua dúvida-certeza de que atropelou uma pessoa e não um cão os rostos daqueles a quem ela fala assumem brevemente igual dimensão em cena que o rosto dela. Algumas opções cogitadas e dúvidas tiradas depois, todos parecem certos de que foi apenas um cão que cruzou o caminho dela naquele dia. Esses personagens voltam e assumem suas posições, afastados do que acontece na cabeça dela, que ainda não foi convencida.
Durante esse trajeto algumas falas pairam como orientações maiores para a personagem como quando sua mãe diz que se deve ‘parar de olhar os mortos e deixa-los ir’. Uma intervenção um tanto quanto didática, mas bem construída por remeter ao vídeo de casamento que esta via dias antes. Isso apela a Vero, mas não a nós. Parece-me mais direcionado a nós a reação repetida de susto que têm Vero ao ser abordada por seu irmão ou esposo. Não é só a tensão de um susto tardio, é o não reconhecimento do que antes era claro. Pode ser o não reconhecimento de si mesma e seu valores éticos, o não reconhecimento de uma ordem no mundo onde uma ação tem sua reação e elas se equivalem. Mas a agonia maior é o puro e simples não reconhecer, tão puro, que não se sabe o que se está a ignorar.
O filme se estende um pouco mais, vagaroso. Quero seu fim, pois quero um fim para a minha agonia, uma resposta. Não a tenho e por isso mesmo a tenho. Mete-se o filme a explicar-me Verônica? Não creio, nem só representá-la. O filme está lá para me irritar levemente e me mesmerizar diante daquilo que eu não gostaria mas sou levada a acreditar que tenho a curiosidade de conhecer por ‘dentro’ um dia.
"O rio sagrado", por Matheus Espíndola
O Rio Sagrado, de Jean Renoir, é um filme de 1949, estrelado por Patricia Walters, Thomas E. Breen e Esmond Knight. O filme se passa na Índia, e tem como foco narrativo a jovem Harriet, que vive com sua família às margens do rio Ganges, e de suas amigas Valerie e Melanie, as três sobrevivendo às atribulações da juventude enquanto tentam compreender os grandes mistérios da vida.
É um filme sobre a infância, sobre crescimento e transformação. Harriet gozava do paraíso idílico das crianças, estando debaixo da luz amena da ingenuidade, até a chegada do capitão John, quando surge a paixão, e com ela todas suas dores e desapontamentos. Podemos perceber a dor dessa perda nas lágrimas de Valerie, que chorava não pela partida do capitão, mas pela atemporalidade que partia junto com ele.
Apesar das atuações afetadas e muitas vezes nonsense, típicas da época, alguns personagens ainda conseguem transmitir sua complexidade alegórica: o capitão John, reflexo do pós-guerra, tentando encontrar algum tipo de equilíbrio, sentindo-se estrangeiro até para si mesmo; e Melanie, exilada de sua identidade cultural, perdida em sua herança familiar. Curioso como esses dois personagens se conectam exatamente por esse lado mais complicado, mais profundo, diferente da relação física com Valerie, e da relação doce e pueril com Harriet.
Interessante como o filme consegue ser bastante clássico em alguns quesitos, como na atuação e na cenografia, mas ainda assim construir uma narrativa bastante metafórica e, inusitadamente, um pouco avant-garde: temos o rio, como grande símbolo da vida, temos a dualidade morte-renascimento, repetida inúmeras vezes, desde o processo de perda da infância, até a morte de Bogey e o conseguinte nascimento do bebê, e finalmente temos a Índia, que preenche os espaços vazios com suas tradições, e confunde as estória dos personagens com sua filosfia milenar.
De fato, o filme é uma verdadeira homenagem à cultura indiana, e como muito da cultura hindu, faz-se necessário que se sinta mais que racionalize: deve-se sentir o calor das matas, os passos dançantes de Radha, as luzes de Diwali, a imensidão do rio que abarca a própria vida, pois só na exaltação da imagem é que se entende o quão poética a narrativa pode se tornar, pois Harriet mesma afirma que a pessoa sábia que compreendia os mistérios da morte era a pequena Victoria, que pertencendo ainda ao universo pré-racional dos bebês, entendia melhor os paradoxos da filosofia indiana.
E, enfim, nada melhor para entender o filme do que o rio. O rio que unifica, que une todas as crenças, todas as classes. O mesmo rio que as pessoas imploram por bençãos é o mesmo que Harriet escolhe para se matar. O rio é quem ensina que a vida segue em frente, e que vida e morte são apenas duas facetas desse processo. É o rio pelo qual Harriet é apaixonada, e que se torna seu instrumento para entender a existência.
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"Metrópolis", por Wilton Augusto Siqueira da Silva
Metropolis é um filme que, através da ficção científica, faz uma critica à sociedade industrial que se desenvolveu junto com o capitalismo e, no ano de 1927, ganhava uma força ainda maior através do método de trabalho mecânico, repetitivo e segmentado criado por Henry Ford em 1913.
A história se passa em uma mega-cidade chamada Metropolis, onde uma parcela da população vive sob a luz do sol aproveitando o progresso e a vida enquanto a outra parte, os operários, tem que se esconder no subsolo após uma longa jornada de 10 horas de trabalho repetitivo e desgastante.
Logo no início do filme, somos apresentados aos operários. Todos vestidos com a mesma roupa, marchando desanimadamente tanto para dentro das fábricas, quanto para suas casas, após o turno de trabalho onde cuidaram das máquinas que mantém a cidade funcionando para que os demais possam viver suas vidas na superfície. Em seguida, vemos o personagem principal que, vestido em suas calcas curtas, dá a impressão de um menino no corpo de um homem, vivendo sua vida sem preocupações, por ser o herdeiro do homem que comanda toda a cidade de metropolis. É quando Freder, o protagonista, pela primeira vez é colocado em contato com o mundo dos proletários que, de sua empatia pelos seus irmãos operários, ele sai em busca de conhecer mais sobre a vida que os mesmos levam e, com isso, se condescende de sua situação. Guiado por uma paixão instantânea por Maria, guia espiritual dos operários, Freder se vê numa cruzada para se tornar o elo entre seus irmãos do subsolo e da superfície.
Com cenas maravilhosamente orquestradas, de forma a acompanhar a cadência da música, ao espectador é possível sentir as emoções dos personagens principais e também dos operários no decorrer do filme. Através de uma produção épica para a época, os cenários constroem uma metrópole muito verossímil com aquelas que existem hoje ao redor do mundo. Ruas lotadas de carros, o céu preenchido de aviões, as gigantescas construções e enormes máquinas das fábricas, mostram toda a imaginação e capacidade do diretor e concluem umas das tarefas mais difíceis da ficção cientifica: “adivinhar” onde o mundo vai estar em nosso futuro.
Os efeitos especiais e de montagem utilizados no filme merecem um comentário à parte. A sobreposição de cenas são muito bem feitas, com transições bem realizadas, como as sequências da grande máquina devoradora de homens, dos trabalhadores da torre de babel e os inúmeros olhos encarando a “puta da babilônia”. Os cenários bem construídos que, no final do filme, também são muito bem destruídos pelos eventos do clímax deixam um amante da ficção de boca aberta, quando se leva em consideração a época em que a película foi filmada.
Não é apenas o trabalho técnico que merece elogio. O roteiro também é de grande sensibilidade ao lidar com várias problemáticas que surgem ao se analisar a sociedade industrial. A autora, Thea von Harbou, toca no assunto da estrutura dicotômica de interesses existente entre os grandes empresários e os operários, onde não existe ligação comum entre seus desejos e isso aumenta, gradativamente, a tensão entre as partes. Fala sobre a busca da substituição do homem pela máquina como força de trabalho onde, inevitavelmente, o robô irá substituir o homem em todas as funções, sem que se possa apontar a diferença além da maior precisão e aproveitamento por parte da máquina. Além do que, utilizando alegorias bíblicas maravilhosamente aplicadas, faz a explicação dos pontos de motivação dos núcleos e aumenta a importância da ação do protagonista para tentar impedir que, o ponto inevitável previsto por Karl Marx para o fim da sociedade capitalista, a revolta do proletariado, se passe de uma maneira anárquica e devastadora.
Metropolis é bom em todos os aspectos. Do ponto de vista técnico a produção pode ser considerada impecável, apenas o roteiro em alguns momentos atropela o desenvolvimento de algumas situações, mas, mesmo assim, como um todo, é maravilhoso. Duas horas e meia acaba sendo muito longo e cansativo principalmente para um filme mudo, onde o espectador precisa prestar atenção efetivamente em cada cena a fim de absorver a mise en scène e entender os acontecimentos. Contudo, para um filme fantástico como esse, é válido o todo o esforço.
"Palavras ao vento", por Cesar Castanha
Não é de se surpreender que Pedro Almodóvar tenha se declarado um fã absoluto de “Palavras ao Vento”, melodrama de Douglas Sirk. O filme tem muito a ver com a obra do diretor espanhol, posso até mesmo dizer que o aprecio e o deprecio pelos mesmos motivos. Isto fica para depois, pois antes de se falar de “Palavras ao Vento” é preciso entender do que se trata, senão o risco de ser mal entendido é grande demais.
A trama gira em torno de uma rica família petrolífera. O patriarca é Jasper Hadley (Robert Keith), cujos filhos biológicos só lhe trouxeram problemas. São eles Kyle (Robert Stack e seus olhos arregalados) e Marylee Hadley (Dorothy Malone, maravilhosa), um é o playboy alcoólatra e a outra é a ninfomaníaca não menos amiga do uísque. Aparente, o mais hábil no negócio da família é Mitch Wayne, praticamente um filho adotivo para Jasper, que lhe pagou sua educação por admiração ao pai de Mitch (pequeno fazendeiro de sua cidade natal). A história se complica quando Mitch e Kyle se apaixonam pela mesma mulher: Lucy Moore.
É um prato cheio para um dramalhão novelesco e um verdadeiro jardim de subtemas. Entre os mais óbvios está uma crítica ao modo americano de vida capitalista e a riqueza cega. Impotência, suicídio, incesto e adoção também estão em cena. O retrato é impiedoso em seus ápices. Por exemplo, o momento em que o médico diz a Kyle de sua possível infertilidade é o momento que desencadeia a série de fatores que culminam no clímax. Depressão, suicídio e paranoia, tudo como fruto do sentimento de impotência de um homem.
A paixão de Marylee por Mitch (assim como a personagem com um todo) é um poço para Freud. Que tal sua última cena? Quando ela segura a torre de petróleo em miniatura que um dia fora do pai (tomada maravilhosa que capta o retrato do pai com a mesma estatueta) e por ela demonstra sentimentos que variam entre raiva e carinho. Ou o enfarte de Jasper ao ver sua filha dançando loucamente ao som de um sensual jazz. Não é fácil ter a garota mais sexy da cidade como filha.
Agora me sinto mais confortável para voltar à questão inicial de apreciação e depreciação. “Palavras ao Vento” é um filme gostoso de ver, um entretenimento sofisticado. O estilo de Sirk esconde suas mensagens, vestindo o filme com roupas leves que escondem um corpo brutal. Ele foge do realismo em alta na época e em seu lugar acolhe os exageros dos estúdios de Hollywood. Porém, considero como sua maior semelhança com Almodóvar o uso da cor. Sirk soube usar esse artifício (consideravelmente recente) como poucos até então. Está na escolha de cores fortes para cenários e figurinos boa parte do drama de “Palavras ao Vento”. Isto pode ser notado desde o carro amarelo na primeira cena até as coloridas tomadas finais.
Já a questão de depreciação é tão simples quanto irrelevante. Trata-se de um gênero que não comove a mim particularmente. E isto quis dizer tanto quanto nada ao me deparar com Malone e a torre de petróleo (ou Malone em qualquer cena, de fato).
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A Bela Inocência e a Futilidade de Gigi, por Clara Muniz Pacheco
Gigi é um filme encantador, e foi o vencedor do Oscar de 1958. O filme se passa em Paris, no ano de 1900. Apresenta lindos figurinos e apresentações musicais (que apesar de não serem geniais, têm seu certo charme). É um filme com um roteiro relativamente plano e previsível, porém, esse fator não o torna maçante e de mau gosto. Ele retrata com uma possível fidelidade a vida das pessoas do início do século XX: uma vida com muitas fofocas e com bastante “alpinismo social”. O filme conta a estória de Gigi: uma adolescente bastante infantilizada para a idade e muito levada. Não apresenta boas maneiras que são compatíveis com as da alta sociedade. Mora com a avó e a mãe (sendo sua mãe muito ausente em sua criação, e a avó muito presente; o pai não é mencionado). A avó e sua irmã têm o desejo que Gigi torne-se uma cortesã da alta sociedade, para ter uma vida mais confortável do que a que tem. Porém, Gigi não é nem um pouco interessada em tornar-se apenas mais uma dentre muitas outras damas da alta sociedade, lindas, com boas maneiras e falsas.
Ao mesmo tempo, mostra a trajetória de Gaston: um jovem homem bondoso, que se torna um galanteador sem coração após ter sofrido uma traição. Apesar de estar sempre no topo do calendário social de Paris, O jovem vê-se cada vez mais atraído pela forma alegre e vivaz com a qual Gigi se comporta. No início do filme, os dois têm um amor quase fraterno, o que causa um pouco de estranhamento ao percebermos que entre Gigi e Gastón, nascerá uma paixão intensa.
O filme mostra de detalhadamente a transformação de Gigi, de criança, para uma linda e atraente mulher que irá despertar um grande amor. O filme pode ser um grande entretenimento no início (pelo menos a meu ver), porém, mais para o final, esse torna-se um pouco maçante e sem sentido: há a grande dúvida que Gastón e Gigi têm ao decidirem ou não ficar juntos. Também existe falta de sentido no processo no qual Gigi torna-se uma das pessoas as quais abominava: uma mulher fútil de alta sociedade, das quais Gastón nunca gostou. O grande final do filme é a volta do casal, que está na iminência de casar-se, após uma briga muito mal explicada e confusa aos olhos do expectador: tudo termina em um mar de rosas, no qual Gigi continua sendo uma moça fútil da alta sociedade.
Alguns pontos positivos sobre o filme estão nas atuações (um pouco teatrais, decorrendo do fato de ser um filme musical da década de 50). Outro fator interessante sobre o filme é o fato de que a atriz Leslie Caron (Gigi), apesar de haver atuado no filme aos 27 anos, acaba convencendo os atores de que é apenas uma adolescente em um confuso processo de amadurecimento.
O filme termina da mesma forma que começa: o tio de Gastón, galanteador e machista, canta a música “Thank Heaven”, na qual agradece pelas menininhas, que crescerão e se tornaram belas mulheres, para que ele possa cortejá-las. Essa música demonstraria um quê de pedofilia e machismo, se não fosse a grande inocência que perpassa o filme inteiro. Sim, a inocência. Esta é a grande salvadora do filme (além dos lindos figurinos e cenários, e atores atraentes). Gigi é um filme água-com-açúcar que, porém, toca o coração dos espectadores mais românticos.
Estranhos no Paraíso (Stranger Than Paradise, 1984), por Lorena Arouche
A câmera estacionária de Jim Jarmusch observa o comportamento estranho e existencialista pós-moderno em Estranhos no Paraíso, seu segundo filme. Utilizando- se e apropriando-se da estética fílmica e poética do Noir et Blanc, Jarmusch recorre à escolha de atores não profissionais, e nesse caso de músicos cool, e ou da cena independente, para evitar qualquer resquício de expressividade dramática encenada, que destempere a expressividade vazia por ele desejada.
Os personagens se encontram em Nova Iorque, sem que saibamos precisar exatamente em qual tempo, mas isso pouco importa quando se abordam questões que, mesmo após a virada do século, continuam procedentes, tal como: o hibridismo cultural, as identidades na pós-modernidade, o distanciamento individualista- existencialista, o ‘american way of life’ e sua decadência, a relação espaço- tempo, etc. Bela, conhecido como Willie (o músico John Lurie), é um jovem húngaro radicado nos Estados Unidos, onde vive sua monotonia e cuja nacionalidade faz questão de esconder. Completamente aculturalizado em seu novo país, Willie se depara com seu passado, através de um telefonema de sua tia que o incumbe de receber sua prima húngara, Eva (a cantora Eszter Balint), por dez dias. Incomodado pela obrigação familiar, Willie não mede esforços para fazer da estadia dela um evento ordinário, quase ignorado e naturalmente entediante. A respeito dele ou dela não se sabe quase nada; e suas atividades na rua, talvez por esse desconhecimento, soam suspeitas logo a princípio, porém com o passar do tempo, acaba surgindo neles algum esforço de se agradarem mutuamente e logo Willie se vê na tentativa de explicar o Novo Mundo à estrangeira, num processo de ‘catequização do capital’. Com o aparecimento do terceiro e último personagem- chave do enredo, o amigo americano de Willie, o Eddie (vivido pelo ex baterista do Sonic Youth, Richard Edson), sabemos que ambos são parceiros de jogatinas, os chamados ‘gamblers’, e dessa forma obtêm sua subsistência.
O olhar subjetivo e efêmero de Jarmusch recorre a uma unidade, um elemento, um tema que permeia todo o filme: a canção do estranho Screaming Jay Hawkings, ‘I put a spell on you’, trazida à cena sempre por Eva, em seu portátil toca fitas cassette. Além disso, destaco as transições das cenas e seus diversos planos com cortes que remetem ao blackout, normalmente, editados com um elo de ligação sonoro, seja ruído, música ou outro som off com efeito de atenuar o excesso de interrupções bruscas à recepção. Jarmusch se utiliza de poucos movimentos de câmera, o que acentua sobremaneira e destaca a quase inexistente ação dramática filmada. Normalmente, cabe aos atores se aproximarem ou se afastarem da câmera, sendo eles enquadrados externamente em ângulos abertos, para que surjam ínfimos em perspectiva diante do quadro e do mundo, ou internamente enquadrados em ângulos fechados para incitar a tensão oriunda do vazio, do silêncio, da falta de comunicação e do apego entre si.
Um ano após a partida de Eva em direção à casa de sua tia em Cleveland, Willie decide ir com Eddie ao seu encontro. Poucos dias depois, os três estão na Flórida, quiçá à espera que a mudança geográfica transforme a monotonia que permanece de inverno a verão. Entretanto, de alguma forma, a paradisíaca Flórida inspira surpresas e a reviravolta que legitima o título da obra.
Pacto de Sangue, por Felipe Nunes Paiva
Pacto de Sangue é, inquestionavelmente, um dos maiores e mais famosos expoentes daquilo que ficou conhecido como film noir. Escrito e dirigido por Billy Wilder esse longa de 1944 é inesquecível, tenso e sensual ao mesmo tempo e consegue conquistar qualquer espectador à primeira vista.
O segredo desse estonteante filme de Wilder reside em sua magistral construção como um todo. Escrito em parceria com o também roteirista Raymond Chandler baseado em um livro de James M. Cain e de uma manchete policial da época, Pacto de Sangue se destaca pelo ótimo desenvolvimento de seu roteiro ágil, dinâmico e perspicaz, além de conter ótimos diálogos e trechos que evocam uma forte sagacidade dos personagens, como no trecho em que Walter Neff, após conhecer Philys, a galanteia e ela o adverte com a seguinte frase “Nosso estado tem um limite de velocidade”, referindo-se com isso a rápida atitude de galanteio por parte de Neff. Assim como a confissão histórica de Neff na agência de seguros “Fiz [o crime] por dinheiro e por uma mulher. Fiquei sem o dinheiro e sem a mulher.” O filme ainda por cima se desenrola sob a perspectiva do flashback e da narração em off, tornando o filme de Wilder um exemplo de novidade narrativa. Por esses e outros arranjos de roteiro é que Pacto de Sangue se destaca dos demais noir e recebeu indicação ao Oscar daquele ano na categoria de roteiro adaptado.
Outro aspecto relevante na construção de Pacto de Sangue é a atuação dos atores Fred MacMurray (Walter Neff), Barbara Stanwyck (Phyllis Dietrichson) e Edward G. Robinson (Barton Keyes), que, incontestavelmente, fornecem a outra parte da força e do brilho desse filme. Barbara emprega em sua personagem uma atmosfera ao mesmo tempo fatal e, às vezes, ingênua, fazendo muito uso do minimalismo. Fred Mac Murray, assim como Barbara, consegue transmitir uma áurea de indignação e pena de uma única vez. Essa característica ambígua de ambos é que muita vezes encontramos nos films noir em geral, já que muitas vezes os personagens não podem ser taxados nem de mocinhos e nem de vilões, eles simplesmente são humanos e isso consiste em erros e acertos por maiores que sejam as conseqüências dos atos. E isso fica bem claro no momento em que Neff tem a chance de incriminar Zachetti, mas não o faz, pois, de certo modo, sua consciência não permite. Edward G. Robinson vive um exótico investigador de seguros e seu personagens está cheio de diálogos ágeis e precisos e, de certa forma, é o alívio cômico desse longa tão cheio de tensão e suspense.
A parte técnica de Pacto de Sangue também faz jus a grande estética sempre empregada nos filmes noir da época. A fotografia em preto-e-branco e o e o baixo contraste favorecem ao filme um certo tom sombrio e noturno ao longa. Na cena final entre Neff e Phyllis, no qual um acaba baleando o outro, a sala em que eles estão está mergulhada numa quase escuridão total, favorecendo ao filme um tom mais tenso.
Pacto de Sangue é um filme que permanece na memória de quem o assiste por todo o resto da vida, nem um pouco fácil de ser esquecido, e é, acima de tudo, um filme para ser visto mais de duas vezes (é mais que obrigatório vê-lo pela segunda vez). O longa de Wilder é uma arte que merece ser lembrada e eternizada nas listas de grandes produções da cinematografia mundial.
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domingo, 1 de abril de 2012
"Fim de verão", por Camille Reis
Penúltimo filme de Ozu, Fim de Verão nos apresenta novamente o tema família e casamento. Devido às dificuldades que os negócios da família Kohayagawa está passando, se torna um bom negócio casar a filha caçula com um rapaz de posses. No decorrer da narrativa, a família vai aos poucos de desestabilizando até ruir.
Com seus planos contemplativos, Ozu nos retrata o tempo como agente modificador. Os grandes tonéis vazios enquadrados diversas vezes ao longo do filme nos faz refletir sobre como o Japão estava passando pelas mudanças do novo mundo. Com a vinda do capital estrangeiro, os negócios de famílias tradicionais estavam falindo e sendo obrigados a venderem suas lojas para os grandes empresários. Além disso, é visível a presença de certos elementos ocidentais como a coca-cola, a cerveja e os sapatos envernizados de salto. Todas essas mudanças são trazidas à tona com a delicadeza usual de Ozu, usando o cotidiano de uma família como foco central.
Os personagens de Ozu se comportam do mesmo jeito que a paisagem: contemplativos e estáticos, sentem as mudanças mas não perdem a serenidade; mesmo quando percebem que a família está se desfazendo. Vale destacar a ilustre personagem viúva Akiko, interpretada por Setsuko Hara, a grande musa japonesa. A beleza da atriz marca a era de ouro do cinema japonês durante a década de 50. Sua bagagem de personagens puras e independentes vem à tona e transbordam em Fim de Verão, seu último filme com Ozu, já no fim da carreira de ambos. O sorriso delicado e sempre presente nos mostra um Japão de mulheres que almejam a independência sem perder a aura feminina. Essas características também afetam as decisões de Noriko, cunhada de Akiko, que não dejesa se casar com o homem que a família escolheu. Ela quer ser livre para amar quem quiser e para se casar quando se sentir preparada.
Apesar de estar traindo sua família, o personagem de Ganjiro Nakamura, o patriarca Sr. Kohayagawa, é um pai amoroso e um amante caloroso. Ele se encontra com um antigo amor, e diz ser o pai de uma moça de 21 anos. Com tantas mudanças vindas da modernidade, o pai Kohayagawa se entrega à nostalgia com sua amante. Preocupações com o futuro dos negócios, saudades do passado, cobranças, tudo se junta em um infarte. Mas mesmo depois do acontecido, o pai se levanta da cama como se estivesse acordando em um dia normal. Ao fim, ele aproveita até os últimos minutos de vida, brinca com seu neto e se diverte com a amante em uma corrida de cavalos. Diante da fumaça da chaminé do crematório, um casal observa a ciclicidade da vida. Noriko e Akiko acompanham a marcha fúnebre refletindo sobre o quão a vida é efêmera. A poesia de Ozu está ali em sua essência, em todos vestido de preto – até mesmo os pássaros – atravessando a ponte da vida sobre um rio tão ralo.
"Gigi", por Rodrigo Lisboa
Gigi é um musical que ganhou o Oscar de melhor filme em 1958, a estória se passa em Paris no ano de 1900. O filme gira em torno dos personagens Gigi ( Leslie Caron ) e Gaston ( Louis Jourdan ). Gigi é uma adolescente muito esperta, levada e inocente é praticamente criada pela avó, tem uma mãe ausente, que no filme aparece apenas aquecendo a voz em alguma cenas, e uma tia avó que lhe dá aulas de como ser uma dama da alta sociedade. Gaston é um homem muito rico, sempre presente nas colunas sociais de Paris e entendiado com a vida.
No filme, Gaston encontra em Gigi algo diferente da sua vida entediada, o que no começo é mais uma amizade, até a avó de Gigi proibir os dois de sairem juntos ao menos que Gaston assuma um compromisso com a garota. A partir disso Gaston percebe que está apaixonado pela garota.
As músicas e as atuações bem teatrais são um ponto forte no filme. Porém o desfecho do filme é um pouco confuso, pois Gigi acaba se tornando uma das falsas damas da alta sociedade que tanto entediam Gaston, que termina com ela sem lhe dar explicações, mas volta atrás e a pede em casamento a sua avó. O filme termina com o tio de Gaston cantando a mesma música que canta no começo.
"pacto de sangue", por Guilherme Cavalcante
Como sabemos, muitos cineastas europeus migraram para os Estados Unidos devido aos conflitos entre os países em épocas de guerras. Um dos mais conhecidos é o austríaco Billy Wilder, que construiu uma carreira sólida no mercado norte-americano e é bastante reverenciado até hoje. Em 1944 ele dirigiu Double Indemnity, lançado no Brasil com o título Pacto de Sangue. Justamente na década áurea do film noir, Wilder realizou um dos grandes clássicos do gênero.
Na trama do filme, o vendedor de seguros Walter Neff (Fred MacMurray) é seduzido e induzido por Phyllis Dietrickson (Barbara Stanwyck), uma mulher atraente e manipuladora, a matar seu marido simulando um acidente para enganar a polícia e assim conseguir colocar as mãos no dinheiro do seguro da vida, que no caso seria pago em dobro (100 mil dólares). Roteiro adaptado de um romance policial, o clima de suspense e mistério é crescente durante a narrativa, uma característica marcante do noir, além do visual sombrio e noturno, do uso do alto contraste, dos arquétipos usuais presentes em enredos do gênero.
Barbara Stanwyck, no papel de Phyllis, revela-se a perfeita encarnação da femme fatale, unindo ao mesmo tempo a personalidade apaixonada e fria dessa mulher disposta a cometer um crime. MacMurray dá um ar meio cafajeste ao vendedor de seguros que acaba se apaixonando por essa mulher. Como sempre nessas narrativas, o roteiro é cheio de reviravoltas e os fatos que vão acontecendo durante o filme surpreendem o espectador, atingindo o ápice no desfecho.
Inspirados na tendência visual do expressionismo alemão, diretores como Wilder trouxeram essa técnica para a América e aplicaram o visual em seus filmes. Isso contribui diretamente para o desenvolvimento da narrativa de suspense dos filmes noir. Os elementos do filme estão todos em sincronia, nota-se pelo desempenho dos atores principais e também dos coadjuvantes, como a filha do marido de Phyllis, que é peça chave no decorrer do enredo e tem grande importância nos momentos finais.
Pacto de Sangue é um clássico definitivo do noir. Reúne qualidade estética e narrativa extremamente condizentes com a proposta dos filmes dessa época. Wilder marcou época do cinema de gênero americano com seu filme, reverenciado até hoje pelos cinéfilos.
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"Os 39 degraus", por Marcelo Agra
Em Os 39 degraus (The 39 Steps - 1935) Hitchcock faz uma adaptação livre da obra homônima do autor escocês, John Buchan, que já teve diversas adaptações para cinema, rádio, TV e teatro. O diretor sentiu-se a vontade a ponto de modificar acontecimentos e criar personagens para o filme que não existiam no livro como o Mr. Memory. Todas essas modificações são, sem dúvida, responsáveis pela marca de autor, que, embora prematuras, podemos observar em Hitchcock. Nessa que é uma das primeiras obras do gênio, identificamos várias das características que o consagrariam anos mais tarde: um inocente injustiçado vivendo situações surpreendentes, cenas dotadas de erotismo - delicadamente trabalhadas – e o conceito de ‘MacGuffin’, usado pela primeira vez nessa obra.
O filme conta a história de Richard Hannay (Robert Donat), um simpático cidadão passando férias em Londres, e que é envolvido sem querer num caso de perseguição e espionagem bem ao estilo de Hitchcock. Hannay vai assisti à apresentação de um homem com a capacidade de decorar uma enorme quantidade de informação, o Mr. Memory. Durante esse evento acontece um tiroteio e então Hannay conhece uma mulher misteriosa que lhe pede abrigo. Logo ela conta que é uma espiã e que está sendo perseguida por dois agentes estrangeiros que pretendem matá-la. Ele não a leva muito a sério, até que ela aparece na sua cama com uma faca enfiada nas costas. Sentindo-se sem saída ele decide fazer o trajeto que a sua hospede planejara e ruma para Escócia, a fim de se proteger da polícia local, que o julgava um assassino e movido pela instigante história que agora sabia ser real.
Nesse caminho a personagem se envolve em várias aventuras, sendo obrigado a fugir diversas vezes, num das quais ele acaba conhecendo e envolvendo a jovem Pamela (Madeleine Carroll) nessa confusão. A partir desse encontro e do que se sucede percebemos que os dois flertam em meio as aventuras, bastante divertido suavizando o clima de suspense. O jogo de gato e rato se intensifica, agora com o casal vivendo as aventuras juntos, até o desdobramento final.
Os 39 degraus é um filme de suspense, com um roteiro cheio de reviravoltas que prende a atenção do público a cada fuga do protagonista ou até mesmo nas discussões entre o casal. O elenco apresenta grandes interpretações, com ênfase para as atuações de Robert Donat e Madeleine Carroll, que aparecem perfeitos nos seus papéis.
Gigi (1958), por Pedro Melo
Na Paris de 1900, Honoré Lachaille, membro da alta sociedade parisiense, vive e desfruta a vida da maneira que lhe convém, assim como seu sobrinho Gaston Lachaille, um dos solteiros mais cobiçados da cidade. Apesar de ter uma vida agitada ser rico e famoso, Gaston está frequentemente entediado com sua vida e com aquilo que esperam dele. Um dos poucos momentos em que se sente bem é quando visita Madame Alvarez e sua neta Gigi, uma adolescente bastante desinibida e inteligente.
Dirigido por Vicente Minelli, americano considerado um dos criadores do musical moderno, que também fez comédias e melodramas, esse filme é a terceira adaptação para o cinema do romance de mesmo nome de Colette. Recebeu indicações a vários prêmios e ganhou Oscar em várias categorias entre elas Melhor Filme, Diretor, Direção de Arte, Direção de Fotografia, Trilha Sonora e etc.
É bastante clara a marca que a história de Vicente Minelli traz ao filme, inclusive o grande reconhecimento da fotografia, figurino e da direção de arte do filme se devem à experiência e ao conhecimento previamente adquirido por Minelli, que já havia trabalhado como cenógrafo e figurinista.
A Direção de Arte dialoga com o Vulgar em vários pontos do filme sem obrigatoriamente se apropriar dele como elemento estético. Os figurinos especialmente coloridos e ricos, mesmo que por vezes pouco cansativos, vão além de vestimentas de época e dialogam com a personalidade dos personagens, inclusive a mudança da Gigi adolescente para uma jovem mulher se dá mais evidentemente pela mudança do seu figurino, que dialoga até com a trilha sonora em alguns momentos, como por exemplo na canção "She Is Not Thinking of Me" ou "She's So Gay Tonight". A Cenografia, tão afetada quanto os figurinos no quesito cor e extravagância é Art Nouveau, com expressão mais significativa no design dos móveis e na arquitetura dos ambientes internos, em especial o apartamento de Honoré Lachaille.
O filme mostra a história de Gigi e conforme o tempo passa, a sua transformação de menina para mulher, desde aulas de etiqueta que toma com a sua Tia Alicia até seu casamento. Além de uma história sobre o desenvolvimento de um personagem e que obedece a clássica curva dramática, esse musical também valoriza os protagonistas como indivíduos singulares dentro do meio onde vivem. Apesar de rico e famoso, Gaston se entedia com a vida que tem, e Gigi, apesar de pobre não sucumbe ao comportamento habitual de moças da sua idade de casar-se por dinheiro, mesmo que incentivada por sua Tia para esse fim. Gigi resiste e coloca sua individualidade e seu sentimento antes de interesses financeiros sob a justificativa de não suportar viver as desgraças que a vida com Gaston a traria. Ele, por sua vez, extremamente ofendido e revoltado chega a afirmar que nunca mais tornará a procurá-la, sendo apoiado por seu Tio Honoré. Apesar disso eles decidem se casar, ela afirma que prefere ser infeliz com ele à sozinha e ele a recebe de bom grado, sendo esse um traço essencialmente romântico: a valorização do individual e seus sentimentos.
“Uma mulher sob influência”, o extremo de Cassavetes, por Alan Campos.
Considerado o “pai” do cinema independente norte americano, John Cassavetes realizou diversos filmes de destaque para a cinematografia mundial, dentre eles “Shadows” e “Faces”. Entretanto o estilo do diretor chega ao seu auge com “Uma mulher sob influência”, que acabou por se tornar sua obra mais conhecida e um dos melhores filmes americanos da década de 70.
Ligeiramente mais acessível ao público, o filme de Cassavetes sobre uma mulher tendo um colapso nervoso é uma aula de direção que beira a perfeição. Todos os elementos dos filmes de Cassavetes são levados ao extremo nessa obra: Planos-sequências, exagero sentimental dos personagens, fotografia com estilo de documentário (câmera na mão reforçando a tensão constante entre os personagens) e a improvisação dos atores resultando em atuações marcantes. Cassavetes não era um diretor preocupado com os aspectos técnicos, seus filmes não eram de grandes méritos técnicos, com exceção do trabalho de câmera. Como homem de teatro, gostava de passar horas e horas com os atores definindo seus personagens.
A história é simples, uma dona de casa (Gena Rowlands) pouco a pouco vai se comportando de forma mais estranha se tornando paranoica, ansiosa e imprevisível. Seu marido (Peter Falk) começa a desconfiar da sua saúde mental. Após perceber que as suas atitudes passam a afetar os filhos, ele decide interná-la para tratamento psiquiátrico. Rowlands está impressionante como a dona de casa Mabel, podemos considerar sua atuação o ponto alto da carreira, cheia de afetações e tiques, por muitas vezes risíveis, ela convence como uma mulher a beira da loucura total, sua personagem é cheia de vida, somos totalmente covencidos pela Mabel louca ou pela Mabel bondosa e afetuosa. O triunfo de Cassavetes é em explorar tão bem sua protagonista, dando-lhe camadas e camadas de profundidade, causando ora incômodo no espectador, ora compaixão. O marido, Nick, interpretado por Peter Falk, também merece destaque. Vemos, ao inicio, um homem firme e forte, que com o desenrolar da história se mostra tão frágil quanto sua mulher e acaba por se tornar tão sobrecarregado quanto ela. Os planos-sequência do filme estão dentre os melhores da filmografia do diretor, aqui é onde Cassavetes brilha mesmo, especialmente em cenas como a do almoço, em que Mabel tenta parecer receptiva com os colegas de trabalho do marido. Havendo espaço para improvisações por parte dos atores, as cenas tomam vários rumos muitas vezes inusitados, revelando outros lados dos personagens tornando os planos cada vez mais imprevisíveis.
Quarenta anos após o lançamento do filme, ele ainda se mostra forte, uma aula de direção e de atuação. O filme foi produzido de forma independente sem apoio de estúdios e encontrou dificuldade para ser distribuído, entretanto ao ser indicado para o Oscar (melhor atriz e melhor diretor) demonstrou que filmes independentes podem chegar ao mainstream. O filme é uma obra prima, o método de Cassavetes extrai atuações fascinantes, seus planos-sequências, quase em tempo real, mostram-nos a complexidade das relações matrimoniais. Hoje em dia, diretores como Lars Von Trier, em “Melancolia”, por exemplo, tentam atingir algo que Cassavetes realiza com tanta naturalidade e espontaneidade.
"O homem que fazia as pessoas rirem", Thaizy Isabelly
Contrastes humanos é um filme metalingüístico: o que move seu personagem principal é um tipo de desejo de fazer um filme que não seja fútil, que faça a diferença. Também é um filme de forte cunho social, afinal seu personagem principal a partir do momento em que fica “sem eira nem beira” passa por diversas situações bastante fortes. Só isso daria ao filme um status de “merece assistir”, mas não bastando isso, “Contrastes humanos” também é uma incrivelmente boa comédia screwball de um dos mestres do assunto (Preston Sturges, que também lança no mesmo ano “The lady eve”). Aqui a metaliguangem e a critica social explicita unem-se à fala rápida, ao divorcio em situações cômicas e ao humor meio pastelão, com direito a uma queda na piscina anterior a “A felicidade não se compra”. É um desses filmes que merece ser visto mais de uma vez, mesmo que em um delas seja apenas para dar boas gargalhadas.
Numa introdução com diálogos rapidíssimos, um diretor de comédias hollywoodianas (Joel McCrea numa atuação bastante convincente) deixa claro que quer fazer um filme sério (tema, aliás, bem recorrente na ficção desde o recente “Meia-noite em paris” até ao anterior “A vida é uma comédia”) Ele não vê mais sentido em continuar fazendo esse tipo de filme com os Estados Unidos em crise. Mas como fazer filmes sobre o que ele não vive? Com toda vontade de fazer o filme decide então rodar pelo país com apenas poucos centavos no bolso em uma tentativa de saber como é andar sem rumo e sem identidade. A partir daí, o filme vira brevemente um Road movie com situações meio malucas. Até que ele conhece uma atriz que sonha em trabalhar com o Lubitsch (interpretada pela bela, mas controversa Veronica Lake). A primeira tentativa de se tornar um mendigo é frustrada quando ele resolve ajudá-la dando carona e “rouba” seu próprio carro. Ele tenta recomeçar sua jornada agora com ela a seu lado, mas de novo sua tentativa é frustrada. Ele nota que por mais que ele tente sair, ele sempre acaba voltando pra Hollywood. Então numa reviravolta fantástica, Sullivan se vê enfim em crise: preso (literalmente) e sem identidade.
Basta dizer que num certo momento, Sullivan vê o efeito que uma sessão de cinema com risadas pode provocar em alguém sem perpectiva. E claro pouco depois, ele consegue resolver o problema para felicidade da personagem de Veronica Lake e tristeza da sua ex-mulher, que casara com o contador. Ele pode finalmente fazer o filme, mas ele resolve não fazê-lo (os irmãos Cohen o fariam anos depois). Afinal, como o próprio personagem diz, “fazer as pessoas rirem tem muitos méritos. Sabia que é a única coisa que muita gente tem?”
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Hunger, por Anderson Correia da Rocha
Hunger (2008) é o filme de estréia do diretor inglês Steve Mcqueen, que em comum com o velho astro holywoodiano só carrega o nome. Premiado com a Câmera D’Or em Cannes, o filme deu notoriedade ao diretor e ator principal. Ambientado na Irlanda dos anos 80 mais precisamente 1981, o filme enfoca os últimos dias de vida de Bobby Sands (Michael Fassbender) pelos olhos de um novo detento, Davey (Brian Milligan) numa prisão claustrofóbica em Belfast que servia de cárcere para os membros do IRA, onde Bobby , ativista condenado a 14 anos de prisão por posse de armas, comandava uma greve de fome entre os detentos com o objetivo de reivindicarem seus direitos e estatutos que eles julgavam terem sido desprezados pelo governo inglês.
McQueen mostra com intensidade o clima de paranóia que paira no ar apenas ao enfocar o dia a dia de um dos guardas da prisão em Belfast, que metodicamente, verifica todas as possibilidades de alguém ter sabotado o seu carro, casa etc dando assim uma idéia de como o movimento liderado por Sands era importante. Na prisão, os detentos são realmente devotados à causa, levando tudo sempre as últimas conseqüências. A greve de fome é retratada realmente de modo impressionante e forte. Muito forte. Com imagens extremamente realistas e provocantes, talvez até violentas, dos diferentes estágios do protesto. Se há uma coisa que McQueen não pode ser acusado, é de ser medroso.
O filme tem um ritmo lento, e bem gradual com muitos planos longos onde muitas vezes nada parece acontecer. Como artista plástico que foi antes de se tornar cineasta, ele tem uma forma bem peculiar de filmar sempre construindo belas tomadas, como na cena onde um dos guardas sai para fumar, em meio à neve. E na quase onírica seqüência final, que ratifica Sands como ele realmente é retratado no filme. Alguém extremamente determinado a lutar pelo ideal que persegue. Mas o filme talvez seja mais conhecido hoje em dia pela sua “longa cena de conversa” que consiste num diálogo sem cortes entre Bobby e um padre (Liam Cunningham) com quase 10 minutos de duração onde é revelado todo o contexto do protesto e ao mesmo tempo discutem as prováveis consequências, num belo diálogo cobre vida, morte e as escolhas que cada um tem que tomar baseado em suas próprias convicções.
O roteiro do dramaturgo inglês, Enda Walsh, nunca descamba para o sentalismo barato e é um dos grandes trunfos do filme. Assim como a competente direção de arte que remete muito bem à Belfast oitentista.
Também vale ressaltar o desempenho e a entrega inclusive física de Michael Fassbender na sua fase pré – astro, ao papel. Submetendo – se a uma dieta extremamente rigorosa para emagrecer a um estado quase crítico para viver o moribundo Bobby Sands nas suas últimas horas de vida. O resultado assemelha-se ao de Christian Bale em “O Operário”.
Filmado de forma particularmente bela, e sem medo de pôr o dedo na ferida, Hunger aborda de forma corajosa e original, um tema já amplamente discutido no cinema em tantos filmes de sucesso, como Domingo Sangrento de Paul Greengrass. A diferença é que aqui é mostrado o lado menos famoso do conflito que durou tantos anos entre a Inglaterra e a Irlanda do Norte
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"Cul-de-sac", por Rodrigo Silva Pereira
Esta tragicomédia de Roman Polanski reúne quatro personagens, os criminosos em fuga Dickie (Lionel Stander) e Albie (Jack MacGowran), e o casal que os abriga a contragosto, George (Donald Pleasance) e Teresa (Françoise Dorléac), em um castelo isolado do Reino Unido.
O termo “cul-de-sac”, de origem francesa, significa literalmente “fundo do saco”, e a expressão é usada como “sem saída”. Este título expressa muito bem a situação criada pelo roteirista Gérard Brach e por Polanski. Dickie está encurralado com seu parceiro moribundo na ilha de Lindisfarne, no castelo (adaptação do roteiro à locação original, que consiste em um castelo e uma vila) onde moram o britânico George e sua esposa francesa, Teresa. Durante o longa, ele está esperando a vinda de seu chefe ou contratante, Sr. Katelbach, para quem telefona assim que chega ao castelo (dando início ao verdadeiro desenrolar do filme, que é sua interação com o casal). George é um ex-empresário, que se desfez de todas as suas riquezas para viver no castelo Rob Roy (adaptação do roteiro. O filme foi rodado no castelo de Lindisfarne, do sec. XVI, mas o identifica como Rob Roy, do sec. XI). Casado com uma mulher inquieta, jovem e orgulhosa, ele se recolhe a sua pintura, à contemplação e à passagem do tempo, enquanto Teresa, que tem uma óbvia inclinação ao adultério, parece sentir-se presa no castelo, e almeja com todas as forças deixá-lo para trás.
Tecnicamente, o filme impressiona. A fotografia crua e precisa confere às imagens naturalidade e força notáveis, com belas composições visuais captadas nos enquadramentos. A música é na maior parte das vezes diegética, e o tema musical transmite o amargor e agonia internas de cada um dos personagens. O som é econômico e até mesmo artificial de tão límpido, provavelmente pela dificuldade técnica na época da produção de captar o som do mar ainda excluindo o ruído do vento nos microfones.
A sensibilidade do roteiro pode até mesmo ser eclipsada, de início, pela excelência técnica apresentada, e pela pluralidade de expressões visuais presentes no longa. Roman Polanski não faz desta produção uma exceção ao seu estilo contemplativo, e a câmera acompanha os personagens em longos planos-sequência, quase como se fosse ela mesma uma personagem, ali presente e atuante. Um dos momentos-chave do enredo é também notável do ponto de vista técnico: a cena da praia, ponto central do filme, quando ficam evidentes as incompatibilidades, os princípios e as angústias dos três personagens principais, é um dos planos mais longos do Cinema até o momento da produção, com 7 minutos e 28 segundos de duração. Memorável também é o momento em que uma criança encontra uma arma de fogo carregada, e os enquadramentos tornam-se fechados, e a montagem, frenética, tornando a situação ininteligível até que seja feito o disparo.
O filme é um estudo cuidadoso das relações humanas, sobrevoando a dureza de Dickie para num rasante apresentar o espectador à sua sensibilidade e sabedoria, pois apesar de seu jeito rude, o brucutu acaba se afeiçoando do casal problemático. E “problemático” não é nada além da superfície tênue que esconde mágoa, ressentimento, submissão e desprezo, sentimentos que vão sendo expostos aos poucos, seja pela figura instável e frágil de George, quanto pela inclinação ao adultério, pelo sadismo e orgulho de Teresa, e por outro lado, o estilo pacato e indiferente do marido ancora a juventude inquieta e fogosa de sua esposa, quase como que fosse um pássaro enjaulado.
A comicidade do longa é quase que apenas visual, pois o roteiro desenvolve-se dramaticamente, atingindo tal nível de introspecção e naturalidade que pouco resta ao espectador senão lamentar a inabilidade dos personagens em se comunicarem e se entenderem.
Há um quê de vouyer, em que o filme funciona como uma prévia de um reality show moderno, conferindo ao espectador um panorama completo do drama, inclusive tornando-o dolorosamente ciente da ignorância dos personagens que acompanha (como, por exemplo, a situação da “pesca de camarões” de Teresa com o jovem vizinho Christopher, que espeta nossa consciência do início ao fim).
E como estudo das relações humanas, não poderia faltar a disposição à violência que demonstra, apontando para os diversos níveis de colapso moral, psicológico e físico que uma pessoa pode chegar. A influência de Teresa sobre George é assustadora, e em dados momentos parece que a presença de Dickie, ao invés de incômoda, os está mantendo sãos. Isso pode ser reconhecido na forma como de início, é Teresa que se aproxima do criminoso, para posteriormente a relação se inverter, e Dickie ficar mais próximo de George, ao que os dois assumem uma relação de quase cumplicidade, o que torna a conclusão do filme ainda mais contundente
"Metrópolis", por Natália Faria Lima
“O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração”. Está é a moral apresentada por Fritz Lang em Metrópolis (1927). Baseado no romance da escritora Thea Von Harbou, essa obra de ficção científica é considerada por muitos especialistas como uma das grandes representações do expressionismo alemão. O filme se passa no século XXI, na moderna e tecnológica cidade que dá nome ao filme, governada pelo autocrata Joh Fredersen. Enquanto na parte superior da cidade vivem a classe privilegiada e seus filhos, num mundo idílico perfeito, e ao mesmo tempo inovador, com pontes e ruas suspensas por onde circulam carros e trens, e veículos voadores sobrevoam a cidade, no subsolo da Terra está a Cidade dos Trabalhadores, onde os operários cumprem uma dura e cansativa jornada de trabalho controlando as máquinas que fazem funcionar toda a cidade, em uma situação completamente oposta àquela vivida pelos cidadãos da Metrópolis, mas que são secretamente guiados pelas palavras da jovem Maria (Brigitte Helm), que afirma que um dia um mediador virá para ajudá-los a lutar pelos seus direitos e libertá-los da miséria. Esse mediador acaba por ser Freder (Gustav Fröhlich), o filho do governante de Metrópolis.
Lang parece ter posto muito de seus próprios sentimentos no filme, repleto de expressões visuais, efeitos especiais, mistério, mitologia, ação e um certo toque de romance, com uma trilha sonora que passa perfeitamente as inúmeras sensações propostas nesse filme mudo. É claramente notável também a alusão a elementos bíblicos e religiosos em diversas partes do filme, que vão desde nomes de personagens até a representação de passagens do Antigo e Novo Testamento. Maria, por exemplo, é retratada como a pura e perfeita imagem de mãe, que prega a paz e a liberdade, a quem os trabalhadores veem como uma santa. Já a Maria-máquina é a imagem oposta, representando a mulher como o pecado e discórdia, luxúria e heresia, como a Igreja Católica pregava a imagem da mulher na Idade Média. Freder é a versão moderna de Moisés, que teria sido guiado por Deus para libertar os escravos do Egito, enquanto o pai é a alusão do próprio Deus. Além disso, outras representações aparecem, como o Jardim do Éden (Jardim dos Filhos), a Torre de Babel, e a Santíssima Trindade, no final do filme, entre outros.
Metrópolis é claramente uma obra preocupada em criticar a “mecanização da vida industrial nos grandes centros urbanos” e questiona a “importância do sentimento humano, perdido no processo”, e marcou profundamente a cultura pop, influenciando ícones da música como Madonna, Cristina Aguilera e Lady Gaga. Entretanto, o que interessa mesmo é que mesmo sendo produzido 80 anos atrás, continua bastante relevante hoje em dia, pois muitas das ideias apresentadas estão presentes no mundo contemporâneo, onde a tecnologia impera e a sociedade é quase inteiramente monitorada, cada vez mais controlada pelas máquinas e pelos meios de comunicação. É um ótimo filme e que certamente valerá a pena ser apreciado daqui há mais 80 anos.
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