quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

'Uma ficção do real", por Camila Purificação Van-Lume


A verdade dita, pronunciada, é sempre verdadeira? O que se apresenta, por mais direto que seja, expressa de fato a realidade? A relação entre o que é ou não real, é ou não verdade costuma se mostrar de forma bastante sutil. Está presente nos discursos narrativos, na ligação entre personagem e fabulador - por vezes a mesma pessoa -, presente em efeitos visualmente alterados e nos sons, utilizados tanto para a imersão em mundos fictícios como para a quebra da ilusão para o real.

 Em Um Alguém Apaixonado (2012), de Abbas Kiariostami, a construção da realidade não é um fenômeno isolado; é feita por meio, principalmente, de quem a vive diariamente, em uma constante metamorfose. Não raro, a realidade no filme se confunde com ilusão, onde as personagens são personagens das situações - mentiras são frequentemente contadas, omissas ou compartilhadas, de personagem para personagem ou para si mesmas.

O filme começa ambientado em um bar, cheio pela noite. Akiko é uma estudante universitária que trabalha como garota de programa. Através do telefonema do namorado, o qual ela tenta convencer estar em outro lugar diferente do seu atual - a primeira fala do filme, carregada de ironia: "Não estou mentindo. Quando menti para você?" -, somos parcialmente introduzidos à sua realidade. As conversas, entre ela e uma amiga e o namorado, incitam uma construção que reforça significados no filme; a insistência em defender a verdade escorregadia, por parte de Akiko, revela um pouco do seu mundo, e as máscaras são trazidas à luz. Assim como o interlocutor do telefonema, também somos enganados pelas diversas caracterizações da personagem e da realidade.

 Kiarostami apresenta essa diversidade por meio de vidros, janelas, reflexos; a imagem - dividida, disfarçada, não só de uma Akiko delicada, mas também de uma verdade volátil. Tal delicadeza encontra abrigo no programa arranjado da noite, um velho professor universitário aposentado chamado Takashi. O encontro dos dois possui características românticas - o jantar à luz de velas, o vinho -, apesar das intenções quase paternais do professor e da recusa de Akiko em aceitar o programa. Tão logo foi o encontro, tão logo o professor e a estudante são confrontados pelo namorado dela - na verdade, noivo. Confundindo-o como avô da protagonista, Noriaki acaba por concretizar uma nova realidade, realidade esta falsa, envolvendo os três; à medida que mostra a sua superproteção sobre Akiko, também bastante irônica - "Ela não sabe nada da vida. [...] nós vivemos em uma selva", quando na verdade quem não sabe de nada é ele -, a amizade e empatia, até cumplicidade, entre ela e Takashi se aprofundam.

As identidades variam, e entre as situações, há um constante embate de dualidades - realidade x ilusão, verdade x mentira, analogicamente à vida dupla da protagonista. Assim como alguém apaixonado, que costuma não enxergar/aceitar certas verdades, inclusive as deturpando, o filme conduz a sua narrativa. Mas afinal, Kiarostami nos pergunta, quem está apaixonado? Esse alguém, uma variável, imerso pela paixonite romântica, frequentemente distorce a realidade que o cerca; essa ilusão, não tão ilusória para os criadores da ficção, faz parte da sua própria realidade. Novamente, quem está apaixonado? O namorado da protagonista, a velha que espia o professor universitário, o espectador?

Essa ligação dual, presente nas relações interpessoais do filme - e porque não, do nosso cotidiano? - é de uma sutileza que de tão crua acaba se tornando frágil, quebrável. O abrupto fim da obra nos assusta em certo ponto, a quebra da ilusão que, por um instante, acreditamos ser real. A música Like Someone In Love, interpretada por Ella Fitzgerald, cai como uma luva ao fim e como título original; como alguém apaixonado, somos seduzidos pelas realidades, nem sempre verdadeiras, apresentadas.

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