quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

"Cinema Soberano", por Rafael Felipe Machado


Há, envoltos e simultaneamente compondo o que se chama de cinema, vários conceitos de cunho narrativo e imagético. Tomando a história da sétima arte como tradicionalmente é contada por base, pode-se identificar, em geral, uma certa valorização dos aspectos narrativos em prol do outro. Mesmo não concordando com essa valorização é impossível negar a sua existência, e, acima de tudo, a sua pré-existência nas experiências cinematográficas do público – especialmente do grande público, leigo. Ora, é completamente comum a expectativa, colocada por um espectador, de uma história desenrolada a partir e dentro de uma determinada lógica, com algum sentido expresso, mesmo que fora dos padrões maniqueístas.

Esse tipo de esperança é frustrada, ao menos sob um primeiro olhar, ou fortemente deturpada, no último longa do diretor francês Leos Carax, Holy Motors, de 2012. Enquanto estava no cinema assistindo ao filme, me peguei inúmeras vezes com o mesmo pensamento, mais frequente quanto mais se aproximava do final, que me perguntava quando é que aconteceria uma cena explicativa, dando sentido a todo o anterior visto, ou que ao menos deixaria uma certa mensagem geral subentendida. A sessão terminou sem me dar essa resposta, ficou só a inquietude que me forçou a assistir mais algumas vezes.

Apesar desse vazio incômodo eu sabia, desde a caminhada de saída da primeira sessão, que acabava de ver algo fora do comum, algo diferente, e, provavelmente (iria comprovar depois), acima da média. Tinha a íntima certeza de que nenhuma sequência era vã e a sensação imutável de ter assistido a uma obra-prima do cinema, não o contemporâneo, mas de todo o cinema, de toda sua história.

Uma breve sinopse para os que não viram pode facilmente provocar uma impressão equivocada, e trazer a dita pré-valorização da narrativa à tona. Em linhas narrativas gerais, o filme acompanha um dia do Sr Oscar, que interpreta, na vida real, diversos papeis diferentes e dicotômicos entre si, em lugares de uma Paris muito bem fotografada, sempre se transportando na luxuosa limusine-camarim guiada por Céline (Edith Scoob).

Mas Holy Motors não pode ser contemplado por uma sinopse porque não é um acontecimento, não é redutível, e não há, sobretudo, uma só sequência passível de supressão em prol de um pontuar mais curto da história. Aliás, esse é o grande ponto esclarecedor e precursor de tudo: Holy Motors não é uma história; é um filme. E sim, há uma substancial diferença entre um e outro. Um filme é, retomando, um conjunto de vários conceitos de cunho narrativo e imagético, sendo assim, a história é apenas uma das partes que o compõe.

Desde sua primeira sequência, quando a sala de cinema lotada dorme frente à tela; passando pelo diálogo do protagonista Sr Oscar (Denis Lavant) com o que parece ser seu chefe (Michel Piccoli), quando, ao ser perguntado o motivo pelo qual continua no ramo, Oscar diz a máxima “pela beleza do gesto”; e por todos as situações e personagens de Oscar (uma soberba homenagem ao ofício de ator), Holy Motors é a exaltação e a soberania do cinema, desprendido da necessidade de lógica e temporalidade, bastando-se e reivindicando-se. Ademais, é também um manifesto contra a domesticação e, usando de neologismo, idiotização do público geradas pela mesmice dos roteiros do cinema dualístico e rasteiro dos grandes estúdios.

Carax vem nos falar de cinema pelo cinema, e para ouvir plenamente é preciso estar atento e livre das necessidades narrativas a qual estamos acostumados. Vem, como só os grandes mestres podem, nos fazer não só assistir ao seu filme, mas senti-lo, incômodo, cinema puro e soberano, que grita-nos lembrando que não existe só para contar histórias facilmente compreensíveis.

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