Adepto e praticante de um cinema de sondagem psicológica, Ingmar Bergman é tido como um dos grandes mestres da arte cinematográfica devido à realização de obras-primas como Noites de Circo (“Gycklarnas afton”, 1953), O Sétimo Selo (“Det sjunde inseglet”, 1956) e Morangos Silvestres (“Smultronstallet”, 1957). No entanto, datam da década de 1960 as obras fílmicas mais experimentais desse cineasta sueco. E entre os filmes mais fascinantes de tal fase da trajetória cinematográfica de Bergman destaca-se, sobretudo, Persona (“Persona”, 1966). O filme – lançado no Brasil com o destoante título Quando duas mulheres pecam, que de tão péssimo e incoerente com o tema principal da história merece, no mínimo, ser ignorado – é um drama sobre o desespero, o silêncio e a solidão do homem. Com uma temática tão densa quanto pessimista, Persona convida os espectadores a descobrirem o terror indescritível que atinge a vida em todos os seus aspectos.
Nessa produção em P&B, Bergman nos apresenta Elisabeth Vogler (Liv Ullmann), uma atriz que, durante a encenação teatral da tragédia Electra, resolve emudecer. Devido ao seu mutismo total, isto é, em tempo integral e para com qualquer pessoa, tal personagem é internada numa clínica. Lá, fica sob os cuidados de Irmã Alma (Bibi Andersson), uma jovem enfermeira que recebe a missão de tratar de uma paciente que não está doente, e sim, apenas optou pelo silêncio. O tratamento de uma doença inexistente, obviamente, não se traduz em resultados concretos e, com isso, o conselho médico do hospital decide enviar a paciente e a enfermeira para passar algumas semanas em uma casa de praia numa ilha, a fim de encontrar no retiro assistido uma solução terapêutica eficaz para o inusitado caso clínico.
Elisabeth e Alma, uma vez isoladas na ilha, passam a desenvolver uma cumplicidade e uma intimidade crescentes que, com o decorrer da rotina e das conversas compartilhadas, resultam numa simbiose de personalidades e numa constante troca de identidades. Temerosa com a possibilidade de ter a sua personalidade diluída pela dos personagens que incorpora em sua profissão, Elisabeth opta por uma reclusão interna, na tentativa de recuperar a sua identidade original e verdadeira e de resgatar seu autoconhecimento. Irmã Alma, por sua vez, é uma mulher tranqüila, introvertida e sucinta nas palavras. O convívio forçado na ilha faz com que ocorra uma inversão de personalidades: a enfermeira, uma vez despida de seu uniforme, assume as características falantes e extrovertidas da atriz, e esta absorve daquela a introspecção de quem se comunica mais com gestos e olhares do que com palavras. É assim que ambas passam a manifestar as diversas facetas de uma única personagem: as personalidades de Elisabeth e de Alma se confrontam, se permutam e se fundem, transmitindo a idéia de que elas são partes complementares de um mesmo ser – conforme sugere o diretor na seqüência em que ele une o rosto das duas atrizes, juntando duas faces em apenas uma.
Persona propõe uma reflexão sobre a singularidade humana e sobre a condição terrestre do homem. Neste filme, Bergman nos relembra, por intermédio de imagens e monólogos igualmente soberbos, que a vida é inexplicavelmente cruel, uma vez que nos obriga a conviver com medos e ansiedade constantes, com sonhos não-realizados, com fracassos e frustrações. Em tal contexto, atos e palavras aparentemente incompreensíveis funcionam como verdadeiros gritos contra a escuridão na qual a solidão e a incomunicabilidade nos afundam. A personagem Elisabeth Vogler dispõe do desespero, mas não da coragem dos suicidas, e, portanto, se vê na necessidade imperativa de encontrar um outro meio de reagir à vida, a qual condiciona a certas renúncias a tentativa humana de preservar sua própria identidade. Opta, então, pela mudez, por confiar na vitória do silêncio, na capacidade da não-interação em imunizá-la do estilhaçamento de esperanças e ilusões que a vida e a realidade nos impõem. Mais do que um esconderijo, a apatia e a passividade da não-reação às palavras do outro tornam-se, para a atriz Elisabeth, um papel fantástico e, concomitantemente, salvador.
Percebe-se, então, que a temática central de Persona é o irrealizável sonho de existir de fato, ou seja, o desejo de viver através do “ser”, e não do “parecer”. É como se o filme – através dos complexos (e poucos) personagens, das situações de intensas crises e dos ambientes geralmente claustrofóbicos – questionasse a nossa passividade diante da falsa necessidade de adequação aos papéis sociais impostos ao longo da vida. Postura esta que, nos revela Bergman, é a principal responsável das pessoas terem se tornado indivíduos solitários, atormentados e indefesos. Persona é, enfim, um filme que nos descortina uma diversidade de interpretações. E que nos traz mais dúvidas do que respostas, mais sugestões do que certezas. Aqui, a única convicção possível é de que se trata de uma obra fílmica que esbanja arte, beleza e estímulos a inquietantes reflexões.
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