sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"Passageiro não-identificado" por Helena Alencar


Difícil imaginar um filme como Profissão Repórter atualmente. Suas imagens iniciais, a câmera passeando com o protagonista, David Locke (Jack Nicholson) por uma cidadezinha na África, pelas pessoas dessa cidade, negros retintos com turbantes brancos, as crianças assustadas, os guias duvidosos, uma imensidão desconhecida para o personagem, tudo isso leva a pensar, inevitavelmente, no tipo de filme que se faz atualmente na América Latina. Não na Europa. Esse cinema de interiores e subúrbios que placidamente capta realidades distantes das nossas e ganha notoriedade pelos seus retratos supostamente “fiéis” de sociedades marginalizadas. Contudo, não é essa a proposta de Antonioni, ainda que ele use de questões centrais da época em seus filmes.

Uma trama envolvente, talvez. Um recente companheiro de viagem de Locke, também de nome David, mas sobrenome Robertson, morre repentinamente no hotel onde os dois estavam hospedados. Locke, jornalista, casado, troca de identidade com ele, agora é Robertson e, descobre ainda, traficante de armas para a guerrilha daquele país. O cinema hollywoodiano vibraria com um roteiro como esse: cenas de ação, fugas tresloucadas, tiroteios, perseguições, mistérios, pistas, tudo que é solicitado pelos estúdios para garantir uma boa bilheteria sustentada por dublês e efeitos especiais. Mas não seria Antonioni, tampouco caberia na época de redescoberta e revalorização estética da qual ele fez parte. E o apelo à emoção, tão característico do cinema atual, em Profissão Repórter é quase nulo.

Continua o filme, para lá de suas proposições de trama e localização inicial cheia de elementos que poderiam ser utilizados para críticas políticas. A imagem domina. Locke, perdido no deserto, a paisagem transborda aos olhos: areia, céu e nada. Outras belas cenas virão ainda: ele de braços abertos em um bondinho na Espanha, visto de cima, como que voando livre... A menina, cujo nome não é mencionado no filme, interpretada por Maria Schneider, observando o longo caminho de ladeado por árvores que ambos deixam para trás – a explicação de David para sua necessidade de fuga. Retratos que convergem ao cerne do filme: fugir para libertar-se. Aí temos, enfim, o diretor.

Ao trocar de identidade com Robertson, Locke faz uma opção por abrir mão do seu passado, uma prisão composta por um trabalho difícil como repórter e um casamento mal sucedido. Ao conhecer alguém aparentemente livre, que viaja o mundo com seus “negócios”, que não deixa nada para trás, a identificação com seus desejos de mudança é imediata. A chance lhe é posta nas mãos quando Robertson morre; Locke muda a foto do passaporte, veste sua camisa, ocupa seu quarto no hotel - passa a ser Robertson.
O passado, no entanto, não se deixa ficar para trás tão facilmente. O produtor, para quem Locke trabalhava, procura por Robertson, supostamente o último a falar com o “falecido”; sua esposa entra na busca, descobre que seu marido não está morto. A polícia é envolvida e Locke se vê cada vez mais acuado pela vida que deixou. A personagem de Maria Schneider o acompanha, sempre com respostas simples aos seus problemas complexos demais. Viajam os dois por cenários que revelam a solidão de ambos naquele momento de fuga. Espaços amplos, estradas longas, lugares desconhecidos, o azul sobre suas cabeças, a imensidão. Eles mesmos tão ínfimos e pouco importantes, tão desejosos de ser e o mundo os perseguindo sem razão. Os dois são, ao mesmo tempo, o central e o irrisório, com esposa, produtor, polícia, guerrilha orbitando ao seu redor e o nada nas imediações.
Daí se compreende porque tão criticado o título em português. The Passenger, certamente, adequa-se melhor à condição do personagem, em transição de uma identidade para outra, de uma vida para outra, passageiro em um trem escolhido ao acaso e impulsivamente, mas cuja velocidade torna-se tal que é impossível pular. Pular, contudo, pode ser, enfim, o único modo de libertar-se de fato.

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