sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"O noir do noir" por Clarice Monteiro


Poucos filmes começam tão bem como Pacto de Sangue, e talvez esse seja o seu grande truque, o que faz dele um filme tão delicioso de se ver. Logo nos primeiros minutos, através de uma fala magnífica, cínica e extremamente ousada para a Hollywood daquela época, conhecemos o nosso protagonista e também a sua triste história: “Matei um homem por dinheiro e por uma mulher. Não consegui o dinheiro. Também não terminei com a mulher”, diz Walter Neff (Fred MacMurray) o nosso herói, ou melhor, anti-herói. Com essas palavras Neff não resume apenas o filme, mais todo um estilo de se fazer cinema nos Estados Unidos na década de 40, o estilo Noir, do qual Pacto de sangue é um dos exemplares mais genuínos.

Noir, que significa escuro, negro em francês, é basicamente uma derivação, ou mesmo uma evolução dos filmes de gangestes da década de 30. O termo foi criado por críticos franceses, após a Segunda Guerra Mundial, para se referirem aos filmes policiais americanos produzidos a partir de 1940. Espelho de um país mergulhado em uma depressão, o filme noir refletia um momento específico dos Estados Unidos, quando a criminalidade atingia níveis elevadíssimos e nem a moral, nem a honestidade estavam lá muito em voga. Fruto de todo esse contexto social conturbado, a estética noir surgiu assim para quebrar aquela divisão simplista entre bons e maus, cedendo espaço à decadência e ambigüidade moral dos personagens. Dessa forma, a atmosfera sombria, uma fotografia em preto e branco, a femme fatale, o anti-herói, o ambiente urbano escuro e perigoso, o detetive particular durão e desconfiado, a mulher manipuladora e os diálogos cortantes e inteligentes eram algumas das principais características desse estilo.
Essa estética teve como inspiração a literatura policial de vários escritores como Raymond Chandler, Dashiel Hammett e James M. Cain e muito deles trabalharam também como roteiristas em Hollywood. Raymond Chandler é um exemplo deles. Escreveu scripts para filmes que se tornaram clássicos do noir, como é o caso de Pacto de Sangue.

Noir legítimo, lançado em 1944, Pacto de Sangue foi a peça que faltava para que a carreira de seu diretor Billy Wilder decolasse. Depois desse filme Wilder se tornaria um dos grandes diretores e roteiristas de cinema dos EUA, produzindo obras primas como Farrapo Humano (1945), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Montanha dos Sete Abutres (1951), O Pecado Mora Ao Lado (1955), Quanto Mais Quente Melhor (1959) e Se Meu Apartamento Falasse(1960). Pacto de Sangue, que é uma adaptação do livro "Three of a Kind" de James M. Cain, foi o seu terceiro filme americano e legitimou "gênero noir", fazendo com que fosse reconhecido e admirado.
Mas voltemos ao filme. A primeira cena inicia-se com Neff entrando de madrugada na empresa onde trabalha, ferido, sentando na mesa do chefe e ditando em um gravador, para ele, uma confissão, é aí que ele solta aquela frase magnífica já citada a cima. Neff não é um detetive como a maioria dos heróis noir (mas bem que poderia ser), é um simples corretor de seguros que se apaixona por Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), a mulher de um cliente. Ela é a femme fatali que o envolve em um jogo de sedução, convencendo-o a planejar o assassinato de seu marido, antes, porém, fazendo para ele um seguro de vida. O crime é cometido e vai tudo indo bem até que Barton Keyes (Edward G. Robinson), o amigo de Walter na seguradora que tem um instinto fenomenal para descobrir fraudes, começa a desconfiar que existe alguma coisa errada nessa história. Desde o começo, portanto, já sabemos que algo não aconteceu como o planejado.
Todos os elementos do cinema noir estão lá: os adultérios, a femme fatale, o anti-herói, as reviravoltas espetaculares, o flashback, a narração em off, os ambientes soturnos e fumaças de cigarro. Contudo, de todos esses elementos, talvez a narração em off seja o mais excitante. Walter Neff começa o filme antecipando o final logo na primeira frase, para em seguida contar todos os acontecimentos que o levaram a esse fim. Fica assim a pergunta: Em plena década de 40, quantos filmes teriam a ousadia de contar uma historia com enredo em retrospectiva? De desvendar quem é o assassino logo de cara, na primeira cena? Pouquíssimos com certeza. Pacto de Sangue é assim um filme de vanguarda, extremamente inovador e Billy Wilder um homem genial por essa audácia e coragem cinematográfica.

Mesmo com o final revelado na primeira cena, o filme consegue manter o suspense do inicio ao fim, prendendo o telespectador. Faz isso através de um enredo bem construído com base em diálogos cínicos, mordazes, inteligentes, bem ao gosto de Wilder. A forma como o roteiro conduz o desmascaramento dos envolvidos no assassinato também é um dos pontos fortes da narrativa. O telespectador sofre ao ver a agonia do protagonista tendo que ajudar o seu chefe a descobrir o que realmente aconteceu e vendo que ele esta cada vez mais perto da verdade.
Em relação a atuação de Barbara Stanwyck como Phyllis Dietrichson ,digamos que ela não possui aquela beleza arrebatadora, não é exatamente bonita, mas consegue exercer bem o seu papel de femme fatale e chamar a atenção de quem assiste. É extremamente dramática, às vezes beirando ao exagero (talvez influência ainda da estética do cinema mudo), se faz de vítima como ninguém e possui uma áurea convincente de decência e dignidade.

A crítica negativa a Pacto de Sangue vai para o entrosamento do casal principal. Declaram-se apaixonados um pelo outro, mas o público não tem muita certeza se estão realmente apaixonados. Há certa frieza em tudo, eles parecem cultivar a própria relação como se fosse um negócio. É claro que Phyllis não amava Neff, afinal, ela é a femme fatale, uma mulher fria, calculista e dissimulada. Mas Neff, teoricamente, estava apaixonado por ela, tanto que cometeu um crime por isso. Esse amor não está muito transparente no filme. No fundo, o casal parece cometer o crime apenas pela excitação de praticá-lo. Fica a dúvida: será que foi pelo dinheiro que Neff cometeu o assassinato? Acredito que não. Ao longo do filme o dinheiro é citado poucas vezes, não chega a ser uma obsessão do casal. Na verdade, em todo o filme tem-se a impressão de que Neff é mais vítima de sua rotina, que parece cansá-lo, do que propriamente do seu amor por Phyllis. Talvez quisesse algo novo, mais excitante para sua vida e Phyllis é a primeira pessoa que propõe isso a ele. Pecou, contudo, pela ingenuidade: acreditou numa mulher em que não poderia confiar. Esta, aliás, é uma das principais características do filme noir.

Pode ser também um pouco cansativo para o telespectador o fato de haver muitos diálogos que descrevem as cenas, criando certa redundância. No entanto, tenho dúvidas de que essa sensação seja mais um problema de quem assiste ao filme do que propriamente do filme. Afinal, é sempre difícil ver algo do passado com os olhos do presente. Ainda mais no meio cinematográfico, onde tantas coisas já mudaram.

Pacto de Sangue tem um enredo simples, mas não é, por isso, um filme simples. Sua condução é complexa e cheia de reviravoltas. Um filme excelente e não é a toa que recebeu sete indicações ao Oscar. Possui diálogos geniais, com um humor irônico fabuloso, credito de Billy Wilder, que conseguia enxergar o que havia de pior e melhor na vida cotidiana americana. Pacto de sangue é, assim, um clássico extremamente moderno, tanto que a sua fórmula já foi copiada diversas vezes e pode ser vista em inúmeros filmes da atualidade. “Instinto Selvagem”, “Corpos Ardentes” são alguns exemplos deles, todos clichês ou inspiração do próprio Pacto de Sangue. .

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