Comentar “Profissão: repórter” é reviver a cena em que o jornalista Locke, durante a filmagem de seu documentário, tem a câmera virada para si por um líder guerrilheiro. Assim como o combatente afirma que as perguntas de Locke dizem muito mais sobre ele do que as respostas que se poderia dar a elas, qualquer análise da obra serve para expor fortemente a visão de quem a escreve, em vez de interpretar o filme.
Ainda assim se corre o risco. Se alguém se pergunta o porquê de continuarem a falar do filme de Michelangelo Antonioni 32 anos depois de sua realização, sem dúvida não o viu. A história é do jornalista David Locke (Jack Nicholson), que toma a identidade de um traficante de armas quando este morre no hotel em que está hospedado. Locke não hesita em abandonar sua vida tediosa e acomodada nos braços de sua profissão e de sua mulher para quase reencarnar como Mr. Robertson.
O filme é tão metafísico quanto concreto: mescla as tensões da realidade com os significados mais abstratos e amplos. Se a narrativa soa atual é em parte porque algumas coisas não mudaram nada, em parte justamente por esses questionamentos mais abrangentes. Tirar o crédito de Antonioni, contudo, por abordar com sutileza e atemporalidade os temas da obra é injustiça desmedida. Talvez não seja o caso de dizer “sutileza”, já que a obra se trata de um tipo de realismo; está muito mais para uma precisão no que se diz, mesmo que quase nunca o diretor aposte no óbvio.
As cenas se arrastam. No deserto africano, qualquer espectador sua com as tomadas amplas e a pouca ação. Mesmo nas fugas de Locke - agora já Robertson - com sua amante universitária (vivida pela atriz de “O último tango em Paris”, Maria Schneider) as ações são lentas e o filme pára para vê-las como se fossem o mais essencial - e só assim já se tornam mais belas e importantes. É, ainda que não intencionalmente, uma homenagem a cada gesto que fazemos e vivemos sem dar nenhuma atenção.
Essa lentidão não é um defeito: é a principal característica do filme e importantíssima para obter-se o efeito final. Não é a toa que basicamente todas as críticas sobre o vão citar o majestoso plano-seqüência de 7 minutos que simultaneamente omite e revela o final da narrativa: é uma cena lenta, contemplativa e bela. Antonioni, basicamente, pega um thriller, suprime sua velocidade e sua tensão excessiva e o transforma em imagens a serem pacientemente assistidas, com um conteúdo aprofundado que vai supera muitos filmes filosóficos, densos e complexos.
A atuação de Jack Nicholson atinge um nível que até mesmo ele terá dificuldades de repetir em sua grande carreira. Locke assume a identidade de Robertson para abandonar sua vida viciada no tédio - mesmo sendo um jornalista com bastante liberdade - e não pára de fugir de seu passado. Não há como deixar de ser Locke, ainda que por meio e uma negação de si, e não há como ser inteiramente o traficante de armas, alguém frio e disposto a conviver com os perigos da atividade. Sua vida passada o persegue por meio de sua mulher e do seu chefe, que, mesmo sem saber quem ele realmente é, buscam Robertson para falar sobre Locke. A tensão típica de um grande suspense é combinada com a calma para observar as cenas: a pouca pressa do filme em passar mostra o cansaço do personagem de Jack Nicholson que, mesmo quando muda de identidade para escapar do mesmismo da sua vida anterior, encontra na nova atividade um rotina pouco diferente. A fuga interminável é uma morte lenta para o agora Robertson: ele corre e quando pára para descansar, sofre um ataque cardíaco - assim como havia sofrido o Robertson verdadeiro. Quem os mata é a vida cansativa e tediosa.
Ao contrário do Bergman faria - subtrair o máximo possível da realidade tangível para exaltar as sutilezas e as grandes questões por trás da vida -, Antonioni fala do concreto e não se permite, ainda assim, um filme político ou limitado. Realiza uma mistura extremamente eficaz para extrair das pequenas coisas os grandes significados, tanto metafísicos quanto reais. “Profissão: repórter”, em meio às narrativas atuais, recheadas de velocidade e tramas mirabolantes, nos permite uma experiência diferente: ao invés de observar um roteiro emendado e cenas corridas, contemplamos a lentidão e o cansaço. Paramos para ver o filme e, quando menos esperamos, estamos nos pondo no meio dele, emprestando-lhe significados e sensações.
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