sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"O ano passado em Marienbad: quando o tempo é uma verdade inventada" por Fellipe Fernandes



A epígrafe do livro Água viva, de Clarice Lispector, traz algumas palavras de Michel Seuphor, crítico de arte especialista em abstracionismo: “tinha que existir uma pintura completamente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência”. É assim, como quem se deixa envolver por uma melodia, que devemos assistir ao filme O ano passado em Marienbad (Paris, 1961), cujo diretor, Alan Resnais, recusa-se a limitar sua arte à linearidade e leva sua obra ao extremo da linguagem cinematográfica.

O longa-metragem, um dos frutos da Nouvelle Vague, tem como narrador um personagem – o qual talvez se chame Frank, talvez não – que durante sua estadia num hotel tenta convencer uma bela mulher que eles tiveram um romance há exatamente um ano. Ela recusa-se a acreditar nesse encontro, negando o fato. O extraordinário se dá quando o filme afunda-se tanto na narrativa que as imagens tornam-se o próprio pensamento de Frank. Passamos então a acompanhar a história de dentro da mente do personagem, que, humano como todos nós, possui mais desejos e suposições que verdades absolutas. Assim, embarcamos numa viagem sem definições claras, onde o limiar entre o real e o irreal é tão estreito quanto o fio que nos protege do inconsciente. Ao assumir a temporalidade do pensamento de um personagem, Resnais abre mão da linearidade narrativa e temporal e cai na lógica instintiva da mente humana, assumindo os riscos e falhas que a própria memória pode cometer. Como acontece na literatura, acompanhamos aqui um fluxo de consciência. Nada é certo e preciso em Marienbad, são apenas indagações e incertezas.

Para contrapor tanta imprecisão narrativa, o filme tem seus quadros meticulosamente estruturados. Tanto o contraste entre o preto e o branco quanto a própria composição dos quadros seguem uma estética formalista. Usam-se, então, com sucesso, todos os recursos capazes de tornar a fotografia do filme a mais bela possível. Brinca-se com retas e curvas, com o preto e o branco, com realidade e projeção. Essa última dicotomia se dá através de espelhos que permeiam todo o cenário. Em certos momentos a própria personagem parece ser parte do cenário destinada apenas a compor o quadro, tornando-o ainda mais belo.

As imagens, juntamente com a trilha sonora e a narração, parecem levar o espectador a um estado de espírito: é um filme de sensações e climas, que para cumprir seus objetivos abre mão da lógica. Ao descrever o hotel onde se passa todo o enredo o narrador repete várias vezes a mesma frase, mostrando assim o quão enfadonho e solitário são aqueles inúmeros corredores. Não importa para ele repetir a frase, saindo então da progressão convencional, porque ele não quer ser entendido – ele vai além: ele quer que os espectadores sintam o que ele está falando. Por isso deve-se assistir como quem ouve uma melodia, sem buscar lógicas ou convenções, apenas sentindo o filme.

Marienbad atinge um dos limites da linguagem cinematográfica. Belas imagens, seguindo uma estética formalista, e texto cuidadosamente pensado e igualmente belo, resultam em algumas das mais belas cenas da história do cinema, que se extraídas uma a uma poderiam fazer parte dos mais convencionais filmes franceses. No entanto, um outro elemento cinematográfico é nesse filme explorado de maneira singular: o tempo. As cenas acontecem fora de ordem, seguindo, supostamente, a ordem que aparecem na mente do personagem – um tempo próprio e único – que entra em contradição com o próprio texto. O tempo aparece também como tema do filme, já que muitas das conversas giram em torno do que teria se passado há um ano e o que aconteceu nesse intervalo. Além disso, é um importante elemento para construção do filme, tendo em vista a importância das lembranças.

A certa altura do livro Água viva, Lispector diz : “não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas o que é passível de fazer sentido. Eu não: quero a verdade inventada. E o que te direi? Te direi os instantes.” O ano passado em Marienbad fala dos instantes: os instantes vividos, revisitados pela memória; os instantes presentes e passados transformados cenas que são por si só obras de arte completas; os instantes que se eternizaram nos corredores e jardins daquele hotel, como estátuas imóveis que recusam-se a acompanhar os verões. Mas não são apenas os instantes que compõem o filme. Resnais vai além e inventa uma realidade – confusa como o espírito de um vanguardista, porém livre e completa – como a obra que cria e através da qual atinge o real.

E todos esses instantes se misturam numa das maiores obras de arte do cinema, sendo o tempo, a grande verdade inventada, o maior responsável pela confusão dos instantes. Afinal, parafraseando Clarice, “nessa história o tempo é quanto dura o pensamento”.

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