sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"Profissão: repórter: a filosofia de Antonioni sobre o homem contemporâneo" por André Antônio




As cenas de "Profissão: repórter" (1975) não têm trilha sonora. Trilhas sonoras geralmente são usadas para que nós sejamos tocados pelo drama interior dos personagens. Mas não. Antonioni não quer que nós entremos na pele dos personagens, vivamos seus conflitos e portanto nos emocionemos com eles. A câmera cruelmente se mantém sempre à distância, como um cientista num laboratório. A falta de trilha sonora e o distanciamento nos apresentam cenários sobre os quais um personagem do filme, Robertson, faz um comentário (que se refere, na verdade, apenas a uma paisagem da África, mas nós podemos expandi-lo sim para os outros cenários do filme): “É tão parado.... como se estivesse... esperando”. E o que essa paisagem espera? A ação dos homens. E, se no filme várias ações se desenrolam nesses cenários, Antonioni não defende ou toma o partido de nenhuma delas. Ele faz um cinema de filosofia. Sua intenção é esquadrinhar com precisão científica o ser humano, suas atitudes e seus dilemas.

De maneira geral, nos livros de filosofia, postulados universais são formulados e, eventualmente, exemplos que confirmam esses postulados são dados. Em Profissão: repórter, pelo contrário, parte-se de um exemplo. Parte-se do particular. Parte-se do concreto. E para isso, Antonioni utiliza-se de um naturalismo absurdo, descrito dessa forma, uma vez, por Orson Wells[1]: “I don't like to dwell on things. It's one of the reasons I'm so bored with Antonioni – that belief that, because a shot is good, it's going to get better if you keep looking at it. He gives you a full shot of somebody walking down a road. And you think, 'Well, he's not going to carry that woman all the way up that road.' But he does. And then she leaves and you go on looking at the road after she's gone”. É fácil nossa mente se desconectar dessas filmagens silenciosas, longas – um registro diferente do que costumeiramente vemos no cinema. É como se Antonioni nos dissesse: “vocês devem estar dispostos a acompanhar a história dessa pessoa. Não ser a pessoa, mas olhá-la e à historia dela” – história que, por esse naturalismo, ganha a concretude de nosso cotidiano real. No entanto, raramente percebemos, no filme, câmeras na mão, isto é, ares de documentário. A câmera é firme e os enquadramentos são muitas vezes geometricamente pensados – porque, embora se parta do concreto e do particular, se almeja chegar ao geral, ao universal.

O caso particular de Profissão: repórter, que Antonioni nos convida a analisar, é o seguinte: o jornalista David Locke (Jack Nicholson) vai à África, visando a captar algumas imagens para um documentário. No hotel, conhece um homem que fala inglês (o Robertson citado acima), com quem toma alguns drinks e que lhe diz não ter família ou amigos – apenas vive “um dia de cada vez”, vagando pelo mundo. Quando Robertson morre de ataque cardíaco, Locke veste nele suas roupas, traz o corpo dele ao seu quarto e troca as fotos entre seu passaporte e o dele. Todos pensam que Locke morreu. Mas ele agora é Robertson. E assim vai a Londres, onde se envolve com os obscuros negócios – tráfico de armas – do falecido e vive de maneira solta, flutuante, essa nova vida. Como Antonioni, partindo desse caso, formula postulados filosóficos sobre o ser humano? Da seguinte maneira: pondo, no filme, algumas imagens de uma força arrebatadora (três, precisamente) e, nos personagens, algumas falas e atitudes que podem ser abstraídas filosoficamente – que podem ser libertadas do naturalismo atrás do qual se escondem – de acordo com a temática do longa.

Antonioni deixa tal temática, aliás, clara na primeira das imagens referidas há pouco. David Locke pega um bondinho aéreo, embaixo do qual há o mar. Ele se debruça na janela, com uma expressão de plenitude no rosto, e começa a movimentar os braços, como se fosse um pássaro voando. A câmera se posiciona em cima e a tela é preenchida pelo mar e por Locke batendo as asas (em uma sutil câmera lenta). Essa pequena poesia de alguns segundos é tão destoante do resto do filme que é como se Antonioni desse um soco em nossos estômagos e gritasse: “ESSE FILME É SOBRE LIBERDADE!”.

Paulatinamente e em flashbacks, vamos conhecendo um pouco mais sobre Locke. Ele dividia sua rotina entre um casamento a caminho da falência (segundo sua própria mulher, Rachel, “não éramos felizes”) e a profissão, na qual era respeitado, mas na qual era obrigado a seguir regras (em um diálogo, ele mesmo afirma isso quando Rachel critica a falta de veracidade e envolvimento numa entrevista). A morte de Robertson foi uma chance para escapar dessa rotina sufocante e aprisionadora. Há um flashback através do qual conhecemos mais a personalidade de Locke: no quintal de sua casa, ele queima plantas secas fazendo um fogo alto e voraz, para o qual olha fascinado. Rachel pergunta se ele enlouqueceu. Ele, numa gargalhada alucinada (que lembra um pouquinho o Nicolson de O iluminado, 1980), responde que sim. Foi para poder fazer quantos fogos quisesse – para se libertar de uma “normalidade” imposta – que Locke fez o que fez com o falecido Robertson. E é impossível não pensar que Antonioni diz que não só Locke olha para as chamas fascinado – todo mundo o faz.

Uma dessas falas que podem ser abstraídas como discursos filosóficos ocorre no final do filme. Locke, deitado num quarto de hotel, conversa com uma estudante de arquitetura (Maria Schneider) que conhecera enquanto fugia de um ex-amigo seu, que procurava Robertson para conseguir mais informações sobre o supostamente morto Locke. Ela, jovem e despreocupada, resolve acompanhá-lo na nova liberdade dele. Pois bem, a fala dele para ela funciona como uma “conclusão em retomada” do filme. Ela resume o filme e o fecha. Locke diz que conheceu um homem que era cego e, perto dos 40 (a idade dele e, portanto, o cego de que fala é ele), operou a vista e voltou a enxergar (isso é, Locke se libertou). No início, foi o êxtase! Ele via cores, paisagens...

Esse período de êxtase do ex-cego pode ser representado pela “cena do vôo”, descrita acima e por outra, em minha opinião mais bela que a primeira. Locke e sua jovem amiga estão num carro sem capô, numa estrada em cujas margens há árvores plantadas a distâncias regulares. Ela pergunta a ele: “do que você está fugindo?” Ele responde: “vire-se de costas para o banco da frente”. Ela o faz e, com a velocidade do carro, as árvores passam e distanciam-se rapidamente, criando uma visão abstrato-psicodélica, enquanto ela abre os braços e, sorrindo, sente o vento no rosto, cabelos e roupas. Antonioni concentra nessa imagem o lastro imenso e profundo que é o tema “liberdade” na cultura ocidental. A cena dura pouco, assim como o êxtase do cego.
Voltando a ele: ninguém havia lhe dito quão horrível o mundo era. O quanto de feiúra havia nele. Antes, ele conseguia atravessar a rua sozinho, com o apoio de uma bengala. Agora, ele tem medo. E não quer mais sair de seu quarto, da escuridão. Locke, o cego em questão, já devia conhecer essa feiúra do mundo. Há uma cena em que sua mulher assiste, numa pequena TV, a uma reportagem que ele havia feito. As imagens na telinha mostram um homem sendo cruelmente fuzilado. Mas Locke era cego. Ele só pode ver essa feiúra (a natureza humana ou a configuração social de seu tempo?) agora. Feiúra que está inevitavelmente ligada à sua liberdade. Em outra conversa com a personagem de Schneider, num restaurante a beira da estrada, ele, depois de dizer que fugiu “da esposa e de uma profissão bem sucedida, mantendo apenas alguns maus e velhos hábitos”, afirma: “e agora eu financio armas para uma guerra em algum lugar obscuro do mundo”. Não adiantou o cego curar-se. Ele permanece na escuridão. Locke se liberta, mas Antonioni não pára de filmar as grades da ampla janela no quarto de hotel em que Locke está hospedado.

A terceira imagem de que falei antes é o momento em que Locke descobre-se na escuridão – entre as grades de novo. Nicholson, de vermelho, está sentado numa calçada de rua, atrás da qual há uma parede branca. Ele ocupa o quarto direito inferior do enquadramento. Ele está desoladamente triste e sozinho. É a primeira vez no filme em que ouvimos trilha sonora: uma música baixa de um violão melancólico. Cena lindíssima. Eis a tragédia do homem. Mas, em minha opinião, do homem atual. Do homem que vive a conjuntura social contemporânea – já em voga, obviamente, na época de feitura do filme. Nicholson – em outra cena-síntese do filme – arranca do chão uma florzinha vermelha e a coloca na parede (a flor é ele na calçada). Depois desfere nela um golpe esmagador. O desfecho da história do cego: ele se mata. E Locke, no quarto de hotel, depois de concluir sua fala, se vira para o lado na cama, como quem está muito cansado para pensar qualquer coisa, como quem, depois de um dia árduo, desiste. Pouco tempo depois, uns traficantes de arma chegam e o matam.

Eis Locke, o homem contemporâneo: insatisfeito com sua realidade, prefere fugir dela a tentar modificá-la. Quando vê que a fuga não adiantou, que sua liberdade se faz a custa do mal de outros, que a feiúra do mundo vai continuar incomodando-o como uma sombra perturbadora, ele escolhe a apatia como a melhor solução. E, ao tematizar dessa forma esse homem, Antonioni, que sempre se disse marxista, atinge, por caminhos diferentes (mas, artisticamente melhores), aquele objetivo que o guiava quando fez Gente del Po (1943), seu primeiro filme – um curta metragem neo-realista, que retratava miseráveis e era explicitamente engajado.


[1] Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Michelangelo_Antonioni>. Acesso em: 25 Novembro 2007.

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