Conhecer O Ano Passado em Marienbad é como descobrir os corredores de um edifício. O narrador imprevisto toma as rédeas de guia (supérfluo?) e carrega o espectador pela mão. O olho, atento a cada detalhe, aproveita-se da maciez da cinematografia para agregar-lhe pompa, tornando-a, por si só, uma lente de luxo. Mas é perante a luxúria do espaço astronômico, em Marienbad (ou em qualquer outro lugar?), em meio aos salões do hotel misterioso e libidinoso, que o espectador é abandonado. Permanecer na obra de Alain Resnais exige disposição para encontrar-se, por esforço próprio, de uma espécie de perdição humana, em que escapam todas as referências temporais e espaciais – embora haja também, para os remanescentes, em qualquer vértice de cômodo, toda resposta.
Ou seriam as indagações a melhor certeza necessária? O passo fundamental do roteiro de Alain Robbe-Grillet é entornar um tempo de vidro e mobilizar os pedaços como que numa ultra-movimentação. É fazer agir um motor transcendental que se utilize do presente efêmero e do espaço limítrofe para lhes aniquilar qualquer imprescindibilidade. Entre a troca engasgada (mas fluida) de locações e figurinos, e a construção potencial de um tempo desconhecido a imiscuir-se, vem emergir a genialidade particular da obra: aqui, tudo é alegórico, à exceção de um discurso possível entre os personagens.
É esse o discurso que atribui valor a toda espécie de coadjuvância. De um lado, Delphine Seyrig, interpretando a mulher. Do outro, Giorgio Albertazzi, interpretando o homem. Os personagens centrais discorrem num texto desprovido de uma factualidade realista. Nestas lacunas, acomodam-se (embora não durem para sempre) os elementos audiovisuais que poderiam servir como âncora de uma narrativa confortável. Assim, a figura do narrador, por exemplo, a despeito de um potencial efeito explicativo (para alguns, anti-cinematográfico), não orienta, mas confunde o espectador, uma vez que contribui para misturar elementos referenciais de um enredo. O cenário, do qual ordem e sentido são subvertidos na montagem, faz perder, em vez de achar. A trilha e a adequação dos sons às imagens, estranhamente, conduzem a um produto em que o que se espera se desespera. A música vem de um órgão mórbido, mesmo que se assista a uma camerata.
A linguagem implica ainda numa estética marcada por uma questão política. A todo tempo, subsiste a estrutura hierárquica de um sexismo patriarcalista, uma vez que o personagem masculino é também o narrador, e, mais que isso, condutor das resoluções narrativas. O homem conta a mulher, como se a conhecesse mesmo antes de conhecê-la. Se se cumprimentam, então, é para que ele a funde, em traje da memória confusa (ou da projeção?) de uma vida a dois. Não importa o tempo em que se suceda (ou se anteceda) cada passagem, o ponto de coesão de uma história a ser contada é o poder decisivo do homem em (re)montar um histórico junto à mulher, de forma a persuadi-la a ser sua amante, e, ademais, personagem de sua criação. Cabe a ela, então, libertar-se de um casamento indesejado para fugir com ele? Talvez aí repouse sua liberdade, ainda que ele seja capaz de desfazer até sua morte. Ou, é possível, o desfecho ambíguo seja mais um mecanismo para incitar interpretações possíveis, sempre sob o punho do contador, amante, invasor.
Em O Ano Passado em Marienbad, a fotografia de apelo clássico, a arquitetura refinada, a escultura simbólica do jardim, quase encarnada como personagem, a beleza e a perfeição estética são artifícios fundamentais para a fomentação do contraste. Se o arcabouço visual é entusiasmante, um fluxo de consciência notável dá liberdade maior ao sentido de tudo que se vê. Assim, de cada coisa será feito o que os personagens quiserem.
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