sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"O que restou da juventude" por Mariana de Souza Alves


Uma criança desajustada, que sentiu na pele a rejeição e a inadequação: teve uma série de problemas com sua família – não conhecera o pai e era ignorada pela mãe e pelo padrasto–, aplicou pequenos golpes e acabou confinada num reformatório juvenil, crescendo para tornar-se um jovem que ingressou no exército francês mas acabou desertando, passou um período na prisão e se envolveu em uma série de aventuras amorosas e traições. Essa curta biografia refere-se a duas pessoas: Truffaut, o famoso crítico de cinema e expoente da Nouvelle Vague, e seu alter-ego, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), protagonista de cinco de seus filmes.

Doinel “se apresentou” ao público em Os Incompreendidos (1959), com apenas 13 anos de idade, filme no qual acompanhamos a vida do garoto em suas aventuras por Paris. O nome original do filme, Les 400 Coups – uma expressão que pode ser traduzida como “pintar o sete” – faz juz aos acontecimentos do filme: Antoine mata aulas, mente dizendo que a mãe morreu, quase incendeia uma casa, rouba, é preso e foge. Três anos depois, reencontramos Doinel em Antoine e Colette (1962), um curta no qual o jovem, agora com 17 anos, é apaixonado por música e por livros, trabalha na Philips e se apaixona por Colette (Marie-France Pisier), mas acaba rejeitado.

Truffaut retomou a saga de Doinel em Beijos Proibidos (1968). O filme começa mostrando lindas cenas da Cidade Luz e nos perguntando através de uma canção de Charles Trenet, entitulada Que Reste-t-il de nos Amour, “o que restou do nosso amor,o que restou daqueles belos dias? Uma foto, velha foto da minha juventude [...]. Felicidade perdida, cabelos voando com o vento, beijos roubados, sonhos mutantes, o que restou de tudo isso? Me diga”. É exatamente isso que ele vai nos mostrar no filme. Vemos Doinel com 24 anos, dando baixa do serviço militar após ser expulso por ter personalidade incompatível com o serviço militar. Ele vai buscar apoio na acolhedora família Darbon. Antoine tem interesse na jovem Christine Darbon (Claude Jade), que a princípio não parece muito receptiva às investidas do rapaz. Antoine salta de emprego em emprego e acaba se envolvendo com uma mulher mais velha, a Sra. Tabard (Delphine Seyrig). Acompanhamos suas aventuras nas investigações, com as mulheres, os casos interessantes de alguns clientes de Antoine, como o senhor que quer descobrir onde está o antigo amante e descobre que ele está casado e tem um filho. É exatamente isso que ficará da juventude de Doinel: as aventuras dos tantos empregos – detetive particular, assistente de reparos em televisores, recepcionista de hotel –, os amores inconstantes – Sra. Tabard, Christine –, as experiências se os beijos roubados – que aparecem duas vezes no filme, com Christine e uma prostituta.

Truffaut disse que procurou construir a história como uma crônica, na qual a improvisação poderia ter a última palavra. Nesse modo de construção de um filme, o ator tem um peso e uma importância fundamental; dele depende o sucesso ou o fracasso da obra. O diretor francês sabia muito bem disso, e disse que a razão de ser, o pivô do filme era exatamente o jovem Jean-Pierre Leáud, que era, em sua opinião, “o melhor ator de sua geração”. A ligação entre os dois foi tão intensa que Truffaut dedicou a ele o filme O garoto selvagem (L'enfant sauvage – 1970).
Beijos proibidos é um filme que tem um toque um pouco saudosista e melancólico. “Uma vez terminados, percebo que meus filmes são sempre mais tristes do que eu pretendia. Faço sempre a mesma constatação. Eu queria Beijos proibidos engraçado”, declararia Truffaut. De fato, algumas cenas da montagem são cômicas: Antoine competindo com outros embaladores para a loja de sapatos do Sr. Tabard, para poder investigar as funcionárias do local; a cena em que a Sra. Tabard se insinua para o protagonista e ele parece uma criança encurralada em sua cama, coberta até o pescoço com seus lençóis; e o homossexual fazendo um escândalo ao descobrir o que seu “amigo” anda fazendo.

O filme não tem nenhuma história mirabolante, efeitos especiais, cenários ou situações muito elaboradas, e isso é justamente o interessante, o diferencial da obra. A obra mostra a vida de uma pessoa comum, coisas que poderiam acontecer no cotidiano de todos nós. Por isso alguns dizem que Truffaut tem o poder de transformar o dia-a-dia em poesia. O diretor declararia justamente que suas “fitas – e mais particularmente Beijos Proibidos – são cheias de recordações e se esforçam em ressuscitar as recordações de juventude dos espectadores que o vêem". Acompanhamos o dia-a-dia de Doinel e também o nosso.

Talvez o fato mais notável de Beijos Proibidos seja o de que, junto com os outros quatro filmes da saga Doinel, ele nos permita acompanhar praticamente toda a vida de um personagem. Geralmente vemos um filme, chegamos ao “final feliz” – ou não – e nunca teremos conhecimento do que acontecerá depois: o casal vai ficar junto? Eles terão filhos? Esses filhos trarão problemas? Vai haver traição por parte do casal? As perguntas são quase infinitas. Esse é um diferencial imenso: acompanhamos Antoine dos 13 aos cerca de 40 anos. Um outro ponto interessante sobre eles, entretanto, é que é possível ver só um deles, ou pular do primeiro para o terceiro, por exemplo, sem que isso comprometa a qualidade e a integridade dos filmes; ao mesmo tempo em que eles são ligados, são independentes.

Em Domicílio Conjugal (1970), encontramos Antoine casado com a violinista Christine e pai de Alphonse. Ele trai a esposa, mas acaba se cansando da nova conquista e tenta recuperar o amor de Christine, mas não consegue faze-lo. Em 1979, O Amor em Fuga, considerado o filme mais fraco dos cinco, encerra a série de filmes. Antoine está na meia-idade, trabalhando como escritor e tentando manter um relacionamento com Sabine, uma jovem vendedora de discos. Nesse meio tempo, ele reencontra várias pessoas de seu passado. A proposta do filme era ousada: mesclar o presente de Doinel com cenas dos outros filmes. Até A Noite Americana, em que Jean-Pierre interpreta um personagem diferente, entra no meio da dança.
Esse é Beijos proibidos, assim como os outros quatro filmes da série Doinel, é um filme que deve ser visto por todos; realmente o “cotidiano transformado em poesia”. Reconhecemos a nós mesmos em Antoine, solitário, anti-social, inseguro, romântico, apaixonado e apaixonante; até suas falhas de caráter contribuem para que gostemos mais deles, pois elas o tornam mais humano. É interessante notar que, ao reconhecermo-nos em Antoine, estamos nos identificando com Truffaut, pois poucos vezes vida e obra se relacionaram de forma tão intensa.

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