sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"Reflexões a partir do luxo da bonequinha" por Breno Lemos Pires



Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) — adaptação cinematográfica do livro homônimo de Truman Capote — é uma mistura de drama, comédia e romance estrelada pela magnífica Audrey Hepburn e que faz enorme sucesso com o grande público. Imersa em um mundo de inocência, ambição, superficialidade e muita sofisticação, Holly Golightly (Audrey) — jovem que largou a família no interior para ganhar a vida em Nova York — torna tenros os corações mais duros. O filme, em que pese seu tom brando, dá ensejo a temas mais interessantes, e a reflexão a partir dele pode ser — ao contrário da protagonista — mais profunda. E mais proveitosa.

A quase totalidade dos textos concernentes a Bonequinha de Luxo invariavelmente trata do glamour e da sofisticação de Audrey Hepburn. De fato, é quase impossível não tocar nesse assunto, dado o encanto etéreo que a atriz naturalmente exala, capaz de inebriar mesmo os espectadores mais sóbrios. Deve-se a isso, em grande parte, a existência de uma espécie de culto a Audrey Hepburn — que personifica a genuína elegância feminina — e, do mesmo modo, a Holly e a Bonequinha de Luxo. Esses alvos de adoração são como que instituições da sociedade ocidental contemporânea, a qual necessita de ídolos para fomentar o ideário capitalista e liberal. Nesse contexto, certamente é conveniente prestar tributo esses mitos.

Em certa medida, os ideais e os sonhos nada modestos de Holly Golightly extrapolaram as telas e penetraram no imaginário da sociedade ocidental contemporânea. Filmes como este — por sublimar assuntos polêmicos mesmo em uma época em que o conservadorismo puritano era mais repressor e, ainda assim, repercutir satisfatoriamente — tiveram papel relevante no processo de libertação sexual e psicológica das mulheres que estava em curso desde a metade do século XX. Além disso, contribuíram para consagrar o papel e a compreensão do luxo nessa sociedade.

O fato de a palavra luxo ter, como acepções atualmente predominantes, “magnificência” ou “aquilo que apresenta especial conforto” — e ser considerada algo benéfico, algo que envolve méritos, sinônimo de sucesso — revela, por si só, o quanto ele é desejado pelas pessoas. Luxo também quer dizer “coisa dispendiosa ou difícil de se obter, que agrada aos sentidos sem ser uma necessidade” ou “o que é supérfluo, que passa os limites do necessário”; ainda assim, é a outra definição — a que compreende essa palavra como algo benéfico — que prevalece no imaginário coletivo, para o qual Bonequinha de Luxo é como música para os ouvidos.

Foi o conceito de luxo que se transformou? Não por si só. O provável é que tenha sido transformado pela redefinição de um termo que lhe determina o sentido: necessidade. Séculos após as grandes navegações, muitas especiarias e iguarias de terras distantes, outrora artigos de luxo, tornaram-se parte do cotidiano urbano, graças à expansão do mercado global. Mais recentemente, com o universo do consumo e da moda — reforçado por filmes como Bonequinha de Luxo e O Diabo Veste Prada — incidindo implacavelmente sobre as mentes das pessoas, estas se encontram diante de novas necessidades, antes supérfluas.

Talvez seja justamente pelo fato de o simples, o mediano e o modesto não mais serem o bastante que palavras como medíocre e vulgar, embora polissêmicas, têm sido utilizadas predominantemente no sentido pejorativo, em detrimento dos outros significados divergentes que carregam em si. O termo medíocre, por exemplo, não necessariamente implica “pouco talento, pouco valor”, mas assim é usado no dia-a-dia; as acepções “médio”, “mediano” e “que está entre bom e mau” são parcamente utilizadas.

Outro ponto presente em Bonequinha de Luxo digno de reflexão é a questão do desapego às paixões como forma de resguardar a liberdade. O que é muito mais representativo da personalidade de Holly. Ela se considerava livre e selvagem e via o amor como uma jaula, por isso não dera nome ao gato que criava nem mobiliara a própria casa, ciente de que poderia, subitamente, ter de partir, deixando para trás o passado recente — o que, decididamente, faria, assim conseguisse conquistar um milionário que a levasse ao altar.

Não obstante o desapego ao universo ao redor, havia duas exceções: a Tiffany’s e seu irmão Fred Só uma visita à joalheria que admirava podia dissipar-lhe as névoas de um dia “red”, ou seja, em que “você tem medo e não sabe de quê”. A Tiffany’s era o único lugar onde seu espírito errante poderia repousar. Por sua vez, o apego ao irmão Fred, militar servindo o exército, era tão grande, que ela, mesmo em uma relação de quase-paixão com o escritor-gigolô Paul Varjak (George Peppard), apelidou-o de Fred.

Numa cultura que superestima o superficial e em que o excesso urge, Bonequinha de Luxo sempre gozará de grande prestígio. Contendo elementos latentes no ideário feminino que encantam também os homens, é ameno o suficiente para não despertar críticas mais ácidas. Com o imprescindível suporte de Moon River — uma das mais famosas canções da história do cinema mundial, composta pelo multipremiado músico Henry Mancini e por Johnny Mercer especialmente para Audrey —, o filme cativa o público, mimando crianças e acalentando sonhos da juventude esquecidos pelos mais crescidos, na correria do dia-a-dia. Enfim, embalando momentos de entretenimento agradável. Necessidades supérfluas? Quem se atreveria a dizê-lo?

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