sábado, 15 de novembro de 2014

"A hora do lobo", por Thaís Sales


Foi depois da estréia de uma de suas melhores obras, talvez a melhor de todas, “Persona”, em 1966, que Ingmar Bergman passou a deixar de lado os temas religiosos de seus filmes passados, e se dedicar ao ser humano e suas angústias interiores. Na película em questão, “A Hora do Lobo”, as perturbações do personagem principal Johan Borg nos fazem entrar num campo fantasioso, elas criam uma linha tênue entre o real e o imaginário. No começo do filme, ouvimos Bergman e sua equipe nos preparativos para começarem as gravações, o que nos parece ser um simples depoimento de uma mulher, nos remete a uma entrevista de documentário. A partir daí, vemos Alma Borg (personagem de Liv Ullmann) relatando a história que presenciou com o seu marido, e acreditamos nela, quase como se ela fosse à representação do que seria verdadeiramente real no filme, e seu marido apresentaria tudo que fosse imaginário, irreal, e imagético de suas alucinações. A história conta que o casal se refugiou em uma ilha isolada, por causa das crises de Johan, e que como pintor, tentava cura-las através de sua arte, e Alma o acompanhava como boa esposa que era. Ao decorrer do filme, chega ao nosso conhecimento que a ilha é habitada por uma estranha família, dona de um belo, porém, macabro castelo. Johan se aproxima mais da família que, de certa forma, incomoda Alma. Uma cena passa Johan mostrando a sua esposa esboços que fez sobre esses personagens misteriosos, e suas habilidades diferenciadas. O casal começa a frequentar o castelo dos “estranhos seres” e descobrir um pouco mais sobre eles.

    O filme é divido em duas partes. A primeira mostra Alma lendo e nos contando sobre as anotações do diário do marido, com seus medos e agonias. Nessa parte do filme, temos cenas de diálogos estáticos, câmera parada, beirando o tédio. Na segunda parte, quando o título reaparece na tela, avisando que a partir desse momento veremos “outro filme”, passamos a assistir a exata hora do lobo, a hora em que “as crianças nascem, a maioria das pessoas morrem, os pesadelos acontecem, e quem está acordado teme o mais ínfimo ruído”. A câmera passa a ser uma câmera mais nervosa e inquieta, menos estática, dando destaque a cena do jantar no castelo, em que o movimento de câmera é completamente diferente do que está presente nas primeiras cenas da obra.  Durante todo o filme, a fotografia é cheia de contrastes, e sua iluminação é predominantemente de primeiro plano, fazendo com que a imagem mais afastada fique cada vez mais escura, na penumbra, aumentando o ar de mistério em todas as cenas, truque frequente em filmes de terror/suspense, fazer com que o fundo dos planos seja sempre mais obscuro, pois o escuro é duvidoso e amedronta. Os rostos dos personagens são quase sempre sombreados, trazendo a eles um ar de mistério e medo.

    Quanto mais os personagens principais se envolvem com os misteriosos do castelo, mais começam a se tornar estranhos e duvidosos. Johan se encontra encurralado por histórias e segredos do seu passado, enquanto os seres estranhos do castelo o fazem passar por situações cada vez mais esquisitas e inquietantes. Ele é tomado por cada uma das figuras do castelo, conduzido por elas, e por suas angústias interiores, que aos poucos vão se externando, das formas mais diferenciadas. Bergman nesse filme não está atrás de respostas, mas sim de perguntas. O espectador durante a obra se indaga sobre várias questões, mas nenhuma delas é explicitamente explicada durante toda a película, tornando o filme extremamente intrigante, pelas milhões de interpretações que podem ser dadas para as cenas e diálogos que acompanhamos.

    Parafraseando Friedrich
 Nietzsche: “Quem enfrenta monstros deve ficar atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo também olhará para dentro de ti”. Ou seja, com o passar do tempo, Alma, que se apresentava como a personagem centrada da obra, que contava a história de alguém que havia enlouquecido, e nos representava veracidade, torna-se uma personagem extremamente duvidosa. Como ela mesma cita no filme, quando um casal é tão apegado ao outro, se completam e compartilham seus medos, pensamentos e aflições, tornam-se um só ser. Alma e Johan tornam-se um só ser humano. Ao ponto que de tanto querer cuidar do marido que se tornava um “monstro”, Alma torna-se um. A personagem passa a ser tão duvidosa quanto todos os outros personagens do filme. Seus últimos minutos são os mais inquietantes, pois o espectador não entende mais o que está diante dos seus olhos. É quase impossível distinguir os acontecimentos. Não sabemos se o que vemos são cenas dos relatos do diário de Johan, alucinações dele ou de Alma, pesadelos, ou tudo que se passa está realmente acontecendo. Nos envolvemos tanto com a história, a ponto de, aos poucos, mergulharmos na loucura de Johan junto com Alma, e quando menos percebemos, não conseguimos mais apontar os acontecimentos, apenas nos prestamos em frente à eles, e acompanhamos intrigados pelo que se sucede, em busca de um final com todas as respostas que nunca chegará. Pois, como já comentei acima, a obra é ausente de respostas, mas regada de perguntas. O filme não passou de um pesadelo, devaneio da personagem principal? Ou tudo aquilo realmente aconteceu na ilha?

    A genialidade da obra está em sua dualidade, e das diversas interpretações que ela pode lhe proporcionar. Fica a critério do espectador acreditar ou não em tudo que lhe foi apresentado.


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