É notória a influência do realismo no
cinema de Satyajit Ray desde seus primeiros filmes. É importante lembrar que ele inclusive iniciou-se
no mundo cinematográfico após ter contato com Jean Renoir, durante as gravações
de "O Rio Sagrado”. Por tratar de forma tão
simples e delicada de temas cotidianos tão comuns e universais, como a miséria,
Ray torna seus filmes atemporais e impactante em qualquer cultura, expandindo
seu cinema até mesmo para o ocidente, onde é aclamado.
A
Canção da Estrada, primeiro e talvez o mais tocante da trilogia, foi um dos
filmes pioneiros no que diz respeito a romper com as tradições indianas mais fantasiosas e conseguir sucesso internacional. Ray levou ao ocidente uma visão
muito viva da cultura indiana. A história que terá
como personagem central Apu, relata a vida de uma família extremamente pobre
que vive numa aldeia em Bengali, interior da Índia. Ray revela muita sutileza em sua. É
possível identificar facilmente o interesse que Ray demonstra ter com seus
personagens A mãe, pai, irmã e bisavó são apresentadas
paulatinamente nesse filme que exige paciência para perceber a construção e
evolução de cada personagem. O destaque
neste filme está nas personagens das mulheres marcantes. Mãe, irmã e bisavó.
Enquanto o pai que é um pregador, está procurando, sem muito
sucesso, realizar seus sonhos profissionais, a mãe sofre os percalços de cuidar
sozinha da filha rebelde e impulsiva, Durga, que é o destaque deste primeiro
filme. A trama deixa em primeiro plano um relato realista e de tom documental do
dia a dia desta pequena família, que sobrevive à pobreza, expectativas frustradas
e tragédias naturais com muita força de espírito. Em meio a esse cenário, Apu
nasce e com o passar do tempo inicia seus estudos. Vários momentos ficam
guardados na memória. Em uma das cenas mais belas cenas deste filme, os dois
irmãos, brigados por conta de um pedaço de papel que pertencia a Durga,
conciliam-se em torno do local que mais despertava a curiosidade do menino e
que sempre pedia para ser levado lá: A linha de trem. É possível notar que há
nisso uma simbologia de explorar o “mundo lá fora”, representa uma nova
perspectiva de realidade num futuro distante. O trem irá levar Apu um dia
consigo, mas não Durga. Há a iminência de uma tragédia que percorre todo o
filme, mas não de uma forma angustiante. Em uma sequência bastante emblemática,
a menina declama os versos “Não se aproxime, menina, da água, fique quieta,
olhe que eu sou a morte” como que prevendo a fatalidade vindoura. Logo em
seguida há um corte com fusão para outra sequencia, onde a mesma é mostrada
doente em seu leito. Doença está que culminará com sua morte.
A resignação andará
concomitantemente com uma esperança tênue de uma vida futura melhor. Em O
Invencível, segundo filme da trilogia, a família mudou-se para outra
cidade e Apu, que agora possui cerca de 10 anos, se tornou uma criança bastante
astuta. O personagem de Apu é mais bem desenvolvido nesta segunda parte,
provocando forte empatia no público.
Outra tragédia acontece: Após perder a irmã,
ele precisa lidar com a morte do pai. Apu e a mãe veem-se forçados a retornar
para o interior e viver sob os cuidados de um parente, onde a situação é mais
insatisfatória que nunca, uma vez que após ter contato com a cidade grande, a
vida simples na aldeia não agrada mais o menino, que almeja um mundo maior. Ele
que seguia os passos do pai trabalhando como pregador, consegue convencer a mãe
a matriculá-lo em uma escola local. Lá se destaca entre os demais e após alguns
anos, forma-se no ensino médio. O
conflito entre mãe e filho se instaura quando surge a oportunidade do rapaz
estudar em uma universidade em Calcutá. Sua mãe que perdeu Marido e filha,
temendo a solidão e a miséria, se contrapõe, chegando inclusive a agredi-lo
fisicamente. No entanto, esperando o melhor para seu filho, ainda que
relutante, logo em seguida abre mão da companhia do mesmo, para sempre, uma vez
que a mesma, acometida por uma doença também falece, deixando Apu “sozinho” no
mundo. É o fim de todos os laços do menino com
um mundo passado, que morreu junto com ela.
Na última parte da Trilogia, intitulada O
Mundo de Apu, deparamo-nos com um Apu recém-formado em seu curso superior,
no entanto ainda enfrenta muitas dificuldades, como o atraso no aluguel da casa
onde mora, ainda assim não desanima. Em um diálogo com seu ex colega de classe,
Apu conta que está escrevendo um livro, e ao narrar a história acaba deixando
transparecer que é uma auto biografia: “É sobre um rapaz do interior. Pobre,
mas com sensibilidade. Seu pai é sacerdote. Ele morre o rapaz vai para a cidade, não quer ser sacerdote,
quer estudar, tem ambições. Estuda. A educação, as dificuldades, alargam sua
mente e aguçam o seu intelecto. Mas além desse pendor fortemente intelectual, tinha imaginação e sentimentos. Sentia que havia dentro dele as sementes da grandeza,
mas não as fez brotar, mas isso para ele não era uma grande tragédia, suas
dificuldades não terminavam, continuava na pobreza, mas isso não o desanimou.
Um dia se deu conta que deveria enfrentar a realidade. Ele não quer fugir da
vida, não quer escapar. Ele está realizado, quer viver”. Tal descrição dada pelo próprio Apu resume sua
própria vida e denota sua grande resiliência. O destaque deste filme está na
belíssima atuação de Soumitra Chatterjee, que encena o
protagonista.
Apu foi visitar a casa do seu amigo e lá se vê em
uma estranha situação em que é forçado a se casar com a prima de seu melhor
amigo, imediatamente. Para não desonrar o nome da família dela, e para que a
mesma não torne-se amaldiçoada pela vida, segundo a crença local. Já que o
pretendente da noiva era louco. Relutante a princípio, justamente porque tal
crença é oposta aos seus princípios, medieval segundo suas próprias palavras,
Apu com toda sua sensibilidade, acaba casando-se com Aparna. Mas a vida feliz
do casal está fadada a ser breve, uma vez que outra desgraça ocorre: Aparna
morre no parto, deixando como herdeiro um menino. Menino este que é rejeitado
por Apu, por atribuir a morte de sua esposa a seu nascimento.
Há ainda dois pontos importantes presentes nos três
filmes a serem comentados. O primeiro diz respeito à mise-en-scène do diretor, que
além do trabalho intenso com o conteúdo imagético e detalhes como expressões corporais,
planos-detalhes dos olhares, mãos sofridas e outros, tem na natureza um
elemento na narrativa. Seja para dar carga lírica e poética acrescentando tom
contemplativo ao filme, seja para exercer função de motivação composicional,
sendo praticamente um personagem, já que a mesma faz avançar a trama do filme,
como na tempestade que danifica a casa e no resfriado que culmina com a morte
de Durga. O outro ponto importante diz respeito à crítica sócio comportamental.
Em muitos momentos da trama vemos o abandono sendo praticado por parte dos
personagens. A bisavó que sofre descaso por parte de seus parentes, chegando a
ser expulsa e por conta disto acaba morrendo na floresta. O pai que determinado
a consegui dinheiro, passa meses fora de casa e ao voltar encontra sua filha
morta e situação semelhante ocorre com Apu nas mortes de sua mãe e esposa.
Fazendo uma alusão à ambição e ânsia por dinheiro que torna as pessoas máquinas
de trabalhar, de certo modo insensíveis e nos remetendo à pobreza de
experiência elucidada por Walter Benjamin.
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