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sábado, 15 de novembro de 2014

Trilogia de Apu, por Jonas Menezes




É notória a influência do realismo no cinema de Satyajit Ray desde seus primeiros filmes.  É importante lembrar que ele inclusive iniciou-se no mundo cinematográfico após ter contato com Jean Renoir, durante as gravações de "O Rio Sagrado”. Por tratar de forma tão simples e delicada de temas cotidianos tão comuns e universais, como a miséria, Ray torna seus filmes atemporais e impactante em qualquer cultura, expandindo seu cinema até mesmo para o ocidente, onde é aclamado. 
 A Canção da Estrada, primeiro e talvez o mais tocante da trilogia, foi um dos filmes pioneiros no que diz respeito a romper com as tradições indianas mais fantasiosas e conseguir sucesso internacional. Ray levou ao ocidente uma visão muito viva da cultura indiana. A história que terá como personagem central Apu, relata a vida de uma família extremamente pobre que vive numa aldeia em Bengali, interior da Índia.  Ray revela muita sutileza em sua. É possível identificar facilmente o interesse que Ray demonstra ter com seus personagens A mãe, pai, irmã e bisavó são apresentadas paulatinamente nesse filme que exige paciência para perceber a construção e evolução de cada personagem. O destaque neste filme está nas personagens das mulheres marcantes. Mãe, irmã e bisavó.
Enquanto o pai que é um pregador, está procurando, sem muito sucesso, realizar seus sonhos profissionais, a mãe sofre os percalços de cuidar sozinha da filha rebelde e impulsiva, Durga, que é o destaque deste primeiro filme. A trama deixa em primeiro plano um relato realista e de tom documental do dia a dia desta pequena família, que sobrevive à pobreza, expectativas frustradas e tragédias naturais com muita força de espírito. Em meio a esse cenário, Apu nasce e com o passar do tempo inicia seus estudos.  Vários momentos ficam guardados na memória. Em uma das cenas mais belas cenas deste filme, os dois irmãos, brigados por conta de um pedaço de papel que pertencia a Durga, conciliam-se em torno do local que mais despertava a curiosidade do menino e que sempre pedia para ser levado lá: A linha de trem. É possível notar que há nisso uma simbologia de explorar o “mundo lá fora”, representa uma nova perspectiva de realidade num futuro distante. O trem irá levar Apu um dia consigo, mas não Durga. Há a iminência de uma tragédia que percorre todo o filme, mas não de uma forma angustiante. Em uma sequência bastante emblemática, a menina declama os versos “Não se aproxime, menina, da água, fique quieta, olhe que eu sou a morte” como que prevendo a fatalidade vindoura. Logo em seguida há um corte com fusão para outra sequencia, onde a mesma é mostrada doente em seu leito. Doença está que culminará com sua morte. 
A resignação andará concomitantemente com uma esperança tênue de uma vida futura melhor. Em O Invencível, segundo filme da trilogia, a família mudou-se para outra cidade e Apu, que agora possui cerca de 10 anos, se tornou uma criança bastante astuta. O personagem de Apu é mais bem desenvolvido nesta segunda parte, provocando forte empatia no público.
 Outra tragédia acontece: Após perder a irmã, ele precisa lidar com a morte do pai. Apu e a mãe veem-se forçados a retornar para o interior e viver sob os cuidados de um parente, onde a situação é mais insatisfatória que nunca, uma vez que após ter contato com a cidade grande, a vida simples na aldeia não agrada mais o menino, que almeja um mundo maior. Ele que seguia os passos do pai trabalhando como pregador, consegue convencer a mãe a matriculá-lo em uma escola local. Lá se destaca entre os demais e após alguns anos, forma-se no ensino médio. O conflito entre mãe e filho se instaura quando surge a oportunidade do rapaz estudar em uma universidade em Calcutá. Sua mãe que perdeu Marido e filha, temendo a solidão e a miséria, se contrapõe, chegando inclusive a agredi-lo fisicamente. No entanto, esperando o melhor para seu filho, ainda que relutante, logo em seguida abre mão da companhia do mesmo, para sempre, uma vez que a mesma, acometida por uma doença também falece, deixando Apu “sozinho” no mundo. É o fim de todos os laços do menino com um mundo passado, que morreu junto com ela.
Na última parte da Trilogia, intitulada O Mundo de Apu,  deparamo-nos com um Apu recém-formado em seu curso superior, no entanto ainda enfrenta muitas dificuldades, como o atraso no aluguel da casa onde mora, ainda assim não desanima. Em um diálogo com seu ex colega de classe, Apu conta que está escrevendo um livro, e ao narrar a história acaba deixando transparecer que é uma auto biografia: “É sobre um rapaz do interior. Pobre, mas com sensibilidade. Seu pai é sacerdote. Ele morre  o rapaz vai para a cidade, não quer ser sacerdote, quer estudar, tem ambições. Estuda. A educação, as dificuldades, alargam sua mente e aguçam o seu intelecto. Mas além desse pendor fortemente intelectual, tinha imaginação e sentimentos. Sentia que havia dentro dele as sementes da grandeza, mas não as fez brotar, mas isso para ele não era uma grande tragédia, suas dificuldades não terminavam, continuava na pobreza, mas isso não o desanimou. Um dia se deu conta que deveria enfrentar a realidade. Ele não quer fugir da vida, não quer escapar. Ele está realizado, quer viver”.  Tal descrição dada pelo próprio Apu resume sua própria vida e denota sua grande resiliência. O destaque deste filme está na belíssima atuação de  Soumitra Chatterjee, que encena o protagonista.
Apu foi visitar a casa do seu amigo e lá se vê em uma estranha situação em que é forçado a se casar com a prima de seu melhor amigo, imediatamente. Para não desonrar o nome da família dela, e para que a mesma não torne-se amaldiçoada pela vida, segundo a crença local. Já que o pretendente da noiva era louco. Relutante a princípio, justamente porque tal crença é oposta aos seus princípios, medieval segundo suas próprias palavras, Apu com toda sua sensibilidade, acaba casando-se com Aparna. Mas a vida feliz do casal está fadada a ser breve, uma vez que outra desgraça ocorre: Aparna morre no parto, deixando como herdeiro um menino. Menino este que é rejeitado por Apu, por atribuir a morte de sua esposa a seu nascimento.


Há ainda dois pontos importantes presentes nos três filmes a serem comentados. O primeiro diz respeito à mise-en-scène do diretor, que além do trabalho intenso com o conteúdo imagético e detalhes como expressões corporais, planos-detalhes dos olhares, mãos sofridas e outros, tem na natureza um elemento na narrativa. Seja para dar carga lírica e poética acrescentando tom contemplativo ao filme, seja para exercer função de motivação composicional, sendo praticamente um personagem, já que a mesma faz avançar a trama do filme, como na tempestade que danifica a casa e no resfriado que culmina com a morte de Durga. O outro ponto importante diz respeito à crítica sócio comportamental. Em muitos momentos da trama vemos o abandono sendo praticado por parte dos personagens. A bisavó que sofre descaso por parte de seus parentes, chegando a ser expulsa e por conta disto acaba morrendo na floresta. O pai que determinado a consegui dinheiro, passa meses fora de casa e ao voltar encontra sua filha morta e situação semelhante ocorre com Apu nas mortes de sua mãe e esposa. Fazendo uma alusão à ambição e ânsia por dinheiro que torna as pessoas máquinas de trabalhar, de certo modo insensíveis e nos remetendo à pobreza de experiência elucidada por Walter Benjamin. 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Canção da Estrada (Pather Panchali, 1955) de Satyajit Ray, por Gibran Khalil


A Canção da Estrada é o projeto inaugural do mais importante diretor hindu de todos os tempos, Satyajit Ray. Incorporando elementos do neorrealismo italiano e elementos fundamentais da cultura e tradição da Índia, Ray desenvolve um trabalho singelo sobre a infância, o feminino, o amor e a família.

Em um pequeno vilarejo no interior da Índia, uma mulher cuida da casa e da filha, Durba, tendo ainda que suportar os sonhos do marido e os caprichos de uma sogra na beira da morte. É neste universo repleto de tradição que nasce Apu, uma pequena criatura, o filho homem de uma casa predominantemente feminina.

Uma pequena trama se desenrola durante o filme que em sua maior parte se resume a um relato realista do dia a dia desta família, as dificuldades da mãe, o sofrimento final da avó e as descobertas e experiências dos irmãos Durba e Apu.

Satyajit Ray, com tendências neorrealistas ao estilo de “A Terra Treme” (Lucchino Visconti, 1948), busca com seu filme muito mais que um entretenimento onde a trama evocada é superior aos personagens. É impossível negar, todavia, a face trágica da vida simbolizada pelas forças da natureza – a tempestade e a morte. A morte é dada, ela entristece, mas ao mesmo momento chama a necessidade de um novo recomeço. Os personagens devem continuar independente da tragédia que os abate e essa continuidade da vida, do crescimento - do tempo - é um maravilhoso recurso trabalhado por Ray para
desenvolver a subjetividade dos personagens frente as dificuldades da vida.

Com um realismo que beira ao etnográfico, Ray se aprofunda na individualidade de cada membro da família envolvendo-os em um suave e lento vagar pela tela. Do trabalho doméstico diário da mãe de Apu às meninices da velha que rouba comida na dispensa, tudo é imensamente real e profundamente singelo.

Tecnicamente o filme demonstra o contexto histórico no qual ele foi desenvolvido. Os avanços com o som e a câmera mais viva que nos grandes estúdios (movimentos de câmera na mão, panorâmicas, etc) , as filmagens em locação com atores não profissionais, as panorâmicas leves, as atuações menos melodramáticas que as habituais, tudo isto possibilitou ao filme não só a sua existência por torná-lo mais barato, mas também o seu realismo, sua vivacidade, o seu caráter único, histórico, social. Vemos na tela uma vida, não imortalizada, mas sim, um pai que já faleceu, uma mãe que deixou boas memórias, um jovem que agora é um adulto ou um velho. Assistir A Canção da Estrada é quase como presenciar o fenômeno da criação.

Enfim, tudo é imensamente simples em um realismo profundamente marcando pela simplicidade do povo o qual a história representa. Uma bela aliança de Ray entre técnica, narrativa e atuação.

O olhar sobre a infância transforma as descobertas dos irmãos Apu e Durba em novas descobertas também para os espectadores. Cabe dizer que este é o primeiro filme da trilogia da vida de Apu e alguns acontecimentos marcam imensamente as atitudes do Apu adolescente em “O Invencível” (1957) e o Apu adulto em “O Mundo de Apu” (1959).
Por último, vale ressaltar a grande importância do feminino neste filme. Por mais que seja o ponto de vista de Apu que vai importar nos filmes seguintes, em A Canção da Estrada são a mãe, a irmã e a avó que desempenham os papéis principais da narrativa. A mãe é símbolo de força e de resignação ao lar, a avó é a sabedoria e a irmã o amor ingênuo e o prolongamento da família.

Já o marido é visto como um homem ausente, fraco, indeciso e em alguns momentos egoísta. Em um momento do filme, A mãe de Apu questiona o porque da vida ser tão difícil ao mesmo tempo que reconhece nos sonhos do marido as causas das dificuldades.
Depois da tragédia final, essa sensação da fragilidade do homem fica mais latente.

Narrativamente o pai atua através de sua ausência. Apu não é fruto de uma educação paternal, ele cresce e amadurece diante dos cuidados femininos, e estes traços serão carregados e trabalhados de forma brilhante por Ray nos filmes posteriores.

Enfim, A Canção da Estrada é uma estreia maravilhosa de um dos reinventores do cinema hindu. Singelo, corajoso, belo e bem construído. A família como tema central é uma família que vive, e este “viver a vida” é um dos pontos altos e um dos motivos pelo qual o filme deve ser assistido.