sábado, 4 de janeiro de 2014

"Otto e Mezzo", de Federico Fellini, por Carlos de Lima Ribeiro Junior


Em 1992 a revista Sight and Sound promoveu sua enquete com renomados diretores de cinema (incluindo Martin Scorsese e Francis Ford Coppola) e profissionais da área, perguntando-os quais eram os maiores nomes do cinema mundial de todos os tempos. Federico Fellini apareceu em primeiro lugar. Este mesmo grupo também indicou Otto e Mezzo como um dos dez melhores filmes feitos no último século. Por que razão será que este diretor de cinema e este filme alcançaram tal status? Não é possível responder essa pergunta em poucos parágrafos. Porém, acredito que muito se deve a uma característica marcante e presente em quase toda a obra de Fellini: o universo onírico de sonhos, lembranças e devaneios que ele conseguiu criar de maneira tão brilhante e inovadora em seus filmes. A sequência inicial de Otto e Mezzo, por exemplo, já anuncia a importância que o elemento onírico terá na narrativa do filme.

O enredo traz a história de Guido, um aclamado diretor de cinema italiano que se encontra no meio da produção de seu novo trabalho, um filme de ficção científica. No entanto, Guido passa por um grande bloqueio criativo, não sabendo ao certo o que pretende filmar. Ao mesmo tempo, sua vida pessoal parece estar bem conturbada, e todos ao seu redor não cessam em cobrar dele respostas e atitudes. Essa linha narrativa é interrompida ao longo do filme, tendo sua linearidade quebrada por sonhos, lembranças de infância e devaneios decorrentes do personagem principal.

Percebe-se que para alcançar essa estética tão peculiar que proporciona ao espectador uma sensação onírica nas sequencias dos sonhos, lembranças e devaneios, Fellini utiliza recursos técnicos que fogem do óbvio. Não se tem uso de filtros ou flashes, nem mudança de cor, por exemplo. Em vez disso, nota-se certa sutileza na anunciação da mudança de tempo/espaço, que muitas vezes é feita através da sonoplastia. Uma das características sonoras mais recorrentes nas sequências de sonhos, lembranças e devaneios nos filmes de Fellini é um barulho que soa como o vento. Em Otto e Mezzo é possível identificar mais de uma cena/sequência em que tal ruído está presente.

Em outras passagens, a trilha sonora se encarrega de transportar o espectador para outro universo, como é o caso do início da lembrança que Guido tem de sua infância, sendo banhado e posto para dormir. Ao sair do tempo linear e entrar na lembrança, ouve-se uma música que transmite nostalgia e remete à inocência e à doçura da infância. Essa trilha muda de acordo com a intenção do diretor. Ao final de outra cena de lembrança da infância, aquela em que Guido vai visitar a Saraghina sozinho, ouve-se a rumba, tocada anteriormente em ritmo alegre, sendo executada de maneira tão lenta que chega a ser agridoce, deixando sensação de tristeza e despedida.

Não se pode deixar de citar a forma com que Fellini apresenta a figura feminina não só em Otto e Mezzo, mas acredito que no seu conjunto de obras em geral. Quando não tratada de maneira profana, a mulher é representada com ar maternal. Neste filme especificamente a Saraghina, a sua amante Carla, e quase todas as outras mulheres são carregadas de libido e sexualidade, enquanto que a sua esposa, sua mãe, tia, avó e irmã trazem uma carga de pureza materna. Ainda sobre as mulheres, vale lembrar das sobrancelhas altas que as personagens erotizadas geralmente possuem.

Como de costume, o grotesco e o bizarro que caracterizam o estilo do diretor também estão presentes em Otto e Mezzo, vide a personagem Saraghina, de seios fartos, sobrancelhas expressivas, cabelos desarrumados e de penteado extravagante, isto sem citar a sequência do harém, em que além do grotesco percebem-se claramente as influências da psicanálise na obra de Fellini.


Dentre outras características importantes desta película, o fato dela tratar sobre o cinema por meio do próprio cinema sem dúvidas precisa ser destacado. Juntamente com o caráter autobiográfico, Fellini imprime em sua obra o metacinema de maneira brilhante, de forma que ao fim tem-se uma ideia de infinito, como se a obra realmente fosse um ciclo. A genialidade deste filme transcende cinema, e como falei inicialmente, responder às perguntas levantadas no primeiro parágrafo não é algo fácil de fazer em poucas palavras. Para não me estender, paro por aqui, mas consciente das inúmeras possibilidades de se analisar um filme como Otto e Mezzo.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

"Terra de Silêncio e Escuridão", por Guilherme David Silva Carvalho


Em Terra de Silêncio e Escuridão, Werner Herzog nos apresenta Fini Straubinger, que perdeu a visão e a audição ainda na adolescência. Sua história nos é contada através de uma conversa entre ela e duas senhoras que são portadoras da mesma deficiência. Por meio de um interessante instrumento – as suas mãos – elas conseguem se comunicar.
            Fini Straubinger conta como perdeu a visão, depois de uma queda da escada e dois anos depois perdeu a audição. Devido à debilidade ficou acamada por vários anos, até que, por uma dose de força de vontade surpreendente, ela passou a ajudar pessoas que vivem em situação semelhante a sua.
            O documentário é uma verdadeira lição de humanidade. A personagem principal é um legítimo instrumento para levar luz à escuridão e sons ao silêncio, medidas as proporções. Através dela, nos são apresentados outros portadores das mesmas deficiências, mostrando um mundo de solidão, onde as possibilidades de comunicação são quase inalcançáveis.
            Tudo é muito bem explorado por Herzog: um encontro de Fini e seus colegas, com direito a uma declamação de poesia e um passeio por um jardim com cactos. Dessa forma, o mundo vai apresentando maior amplitude através das descobertas.

            Fini Straubinger cruza o seu país para levar, com um grande comprometimento, acolhida e atenção para seus semelhantes. Mais uma vez Herzog trabalha, como se pode ver em toda a sua obra, seja ficção, seja documentário, com personagens outsiders, que estão de certa forma à margem da sociedade, muitas vezes por inadequação. No caso de Terra de Silêncio e Escuridão, temos uma limitação física, e, antes de tratar apenas dessa limitação ou marginalização, Fini Straubinger aparece como um meio que tenta transcender esses problemas.

“A terra do silêncio e da escuridão, lá só pode emanar um rio negro”, por Tatiana Quintero

Vemos quase tudo, enxergamos quase nada,
escutamos quase tudo, não nos interessa nada.
Uns por muito, outros por nada.
Tatiana Quintero.


           Terra do silêncio e da escuridão é um filme de Werner Herzog, que sempre foi associado com o cinema novo alemão e que já tinha uma relativamente bem reconhecida carreira quando decidiu fazer este documentário que trata sobre os surdos-cegos.
            O diretor logra entrar na vida e na intimidade desta comunidade de um jeito natural, e não digo isto porque afirme que os surdos-cegos pertençam a uma comunidade fechada, senão porque já foram exibidos filmes que mostram a impossibilidade de ver e escutar com superficialidade e sensacionalismo.
           Que é o caso contrário de Terra do silêncio e da escuridão, que desde seu primeiro plano foi uma proposta direta, sem espaço para rodeios ou introduções tranquilas que fariam com que o espectador fosse caindo na sensibilidade aos poucos. Inversamente, Herzog tenta reproduzir por meio de imagens o que seria a representação de um cinema cego, é dizer com uma tela preta em sua totalidade junto com uma narração da personagem principal que é a que vai direcionando o percurso e o desenvolvimento do filme.         
            Acompanhar com a imaginação a descrição que Fini Straubinger faz para detalhar como ela pintaria um quadro onde estivesse refletida a condição de cegueira é muito inspirador e tocante, principalmente quando começa apontando que seria “um rio negro fluindo lentamente como uma suave melodia”. Straubinger porta esta incapacidade, mas não sempre foi assim, ela sofreu uma queda quando tinha nove anos de idade e parcialmente foi perdendo o sentido da vista e a escuta. Passou quase 30 anos em cama quando decidiu se levantar e lutar por uma melhor comunicação e evoluções dentro do meio e junto aos seus pares.
          Quando o documentário é assistido por um público que não tem muito contato ou que nunca criou laços por perto com pessoas surdas ou cegas, de certa forma representa novas descobertas em relação a línguas e formas de se comunicar entre eles, que não são muito divulgadas e também não muito procuradas. Às vezes pode parecer que é forte demais, que é chocante na sua expressão audiovisual, mas repensando os modos como Herzog mostra as situações e personagens, é consequente e aberta.
            Penso, contudo, que o diretor exagera em planos muito longos para exibir um comportamento, como por exemplo, quando mostra Vladimir Kokol, surdo-cego de nascença.  O jovem de vinte e dois anos não conseguia caminhar, nem mesmo se equilibrar bem.  Este plano sequência tão duradouro pode chegar a incomodar, principalmente porque  se percebe a informação logo nos primeiros momentos, o demais me parece um prolongamento desnecessário.
            Em termos dos espaços onde foi filmado e a iluminação que foi procurada, encontramos um estilo bem naturalista, o diretor talvez quisesse chegar ao ponto de menor tratamento nos aspectos técnicos no documentário, sem descambar para o descuido da visual e do som. Na escolha dos planos com que trabalhou mostrou preocupação por captar as reações das personagens, com a frequente utilização de primeiros planos nos rostos e fechados nas mãos.
            Quando assisti ao filme pela primeira vez, tive a sensação constante de incômodo e um desejo de abandoná-lo. Posteriormente dei-me conta que foi um filme que me jogou fora da minha zona de conforto, me fez tomar posição sobre um tema que não é comumente trabalhado e uma verdadeira vontade de ir além do documentário e pesquisar um pouco mais.
              
           




"Holy Motors (Leos Carax – 2012)", por Leslie Clifford Noronha Araújo



Holy Motors é o  filme mais recente do diretor Leos Carax (2012). O filme conta a história do ator vivido por Denis Lavant (Sr. Oscar) que é transportado durante todo o dia para diversos compromissos por uma limousine branca. Enquanto vai de um compromisso a outro, o ator vai se produzindo para sua próxima performance dentro do carro.
         O Sr. Oscar passa por diversas situações durante o dia, vivendo entre a realidade e a ficção, assumindo as mais diversas identidades, tais como um mendigo, um pai jovem, um ladrão, sempre com pequenas estórias sem conexão entre elas.
         Uma das características mais intrigantes do filme é a simples falta de explicação para os acontecimentos e a mistura de elementos que propositalmente confundem a realidade com a ficção, tais como na cena de suicídio na parte final da película e o último compromisso do Sr. Oscar que fica em uma casa tomando conta de um macaco.
         Leos Carax faz uma critica a banalização do cinema em algumas cenas importantes, como, por exemplo, a morte de um dos personagens em plena rua em Paris, que logo após se levanta e retorna para a limosine. Ou aquela em que Lavant contracena com Eva Mendes, onde Sr. Oscar aparece com uma ereção. Diga-se de passagem desnecessariamente, pois na bela cena a presença de tal evento fisiológico causa apenas impacto e choque moral sem qualquer outro objetivo específico.
         O final do filme explica o que realmente significa holy motors, que na verdade são as limousines dos diversos artistas ligados a atuação cinematográfica. Como se em suas diversas situações pouco importasse a qualidade intrínseca do ator, se ele anda de limousine, então ele é bom, claramente criticando os critérios de qualidade impostos pela indústria cinematográfica.

         O filme possui uma boa direção com boa escolhas de planos e enquadramento, montagem bem adequada para as situações criadas pelo diretor,  porém sem conexão entre as episódios, portanto, não havendo uma  complementação clara pela montagem.

"A vida cantada com amor", por Aline Mariz


Quando se perde alguém que se ama, mesmo que já – aparentemente – no fim de um relacionamento, o que é que sobra? O que é que falta? Perguntas como essas surgem, principalmente, a partir dos primeiros trinta minutos de filme – parte que se intitula “A partida” -, no momento em que a namorada de Ismael (Louis Garrel), Julie (Ludivine Sagnier), sofre uma parada cardíaca repentina e morre.
Les chansons d’amour (2007), de Christophe Honoré, é um musical francês que trata muito mais de amor e dos caminhos que a vida pode seguir após uma morte, do que um drama que teria como motor esta tragédia. Em seus pouco mais de noventa minutos, divide-se em três partes, cada uma com canções voltadas para suas temáticas: I – A Partida, II – A Ausência, III – O Regresso. Não é um musical espalhafatoso, pelo contrário: suas canções são carregadas de sinceridade e naturalidade, tanto que não fosse por certo ritmo dado, tudo poderia ser facilmente confundido com um diálogo entre os personagens.
Ismael e Julie passam por certo sufocamento (de modo aparente) a partir do momento que trazem uma terceira pessoa para a relação, Alice (Clotilde Hesme). De ambas partes, sente-se um desconforto e insegurança, apesar da concordância na decisão de ser um ménage a tròis. Muitas coisas são ditas, jogadas – quando talvez nem se quisesse -, e outras tantas passam caladas, sem esclarecimentos. O ponto importante aqui é mostrar a importância de viver, sentir; amor não foi feito pra ser questionado ou entendido. É um filme de relacionamentos entre as pessoas: verdadeiro.
A câmera, sempre atrás ou simplesmente acompanhando o andar dos personagens, corre e balança em tons cinzas e azulados por Paris. Numa de suas andanças e pensamentos sobre Julie, Ismael conhece Erwann (Grégoire Leprince-Ringuet), que encherá ainda mais sua cabeça de dúvidas. Mas, ao mesmo tempo, Erwann consegue mostrar para Ismael uma nova forma de viver, de sentir e demonstrar o amor.

Para quem não conseguia sequer dizer ‘eu te amo’ para quem ele posteriormente descobre ter sido o grande amor da sua vida, Ismael, na última canção do filme, aceita a palavra e os gestos do amor – devido aos caminhos que percorreu até e com Erwann. Suas últimas palavras são, além de extremamente tocantes, resumos de seus medos e desejos: “Ama-me menos, mas ama-me por muito tempo”.

"O Enigma de Kaspar Hauser" - Herzog, Werner (Alemanha, 1974), por Jennifer Silva

  
Uma pequena sinopse poderia ser esta: garoto é criado em um porão, longe de qualquer contato com outro ser humano, até um dia, já adulto, é finalmente libertado. Sem saber falar, andar ou sua própria identidade é levado para a cidade, onde é objeto de curiosidade e desprezo pela população local.
   O enigma de Kaspar Hauser conta a história de um homem que desde seu nascimento foi mantido em cárcere, sendo privado de uma "vida", sem contato com a sociedade. Graças a isso Kaspar não desenvolvera a sua linguagem, não conseguia andar e nem se comunicar, após ser retirado do lugar no qual foi mantido preso durante sua vida toda, foi deixado em uma cidade, onde causou grande estranhamento nos cidadãos locais por sua forma de agir. O mais interessante no filme, além de observar a evolução do personagem, é perceber como a educação tardia que lhe foi oferecida  agiu na moldagem de uma concepção diversa do mundo.

   A partir do filme podemos tirar muitas lições, entre as quais, aquela que afirma que o homem para ser o que é, necessita ter contato com outros homens. Ele por si só, é apenas um animal, tão quanto todos os outros. Outra poderia ser que o homem é o único animal que mesmo ficando como Kaspar Hauser, sem contato com a sociedade, mesmo demorando, aprende as primícias do homem, o falar, o raciocinar. Uma história que causa muita reflexão sobre o humano em nós. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

"Do silêncio e da escuridão, o que resta é sentir", por Amanda Guimarães



                Land des Schweigens und der Dunkelheit, título original do longa-metragem lançado em 1971 por Herzog, dedica-se a mostrar, a partir de cenas reais, um pouco da vida das pessoas que sofrem de deficiência auditiva e visual. No início do filme, o público é apresentado a Fini Straubinger, senhora já de idade avançada que, depois de um acidente ocorrido na infância, perdeu gradativamente os dois sentidos mais fundamentais para o contato com o mundo exterior. Depois de anos mergulhada num isolamento profundo, Fini reaprende a interagir com o que a rodeia. O que se vê nesta película de Herzog é a Sra. Straubinger vivenciando as mais diversas situações com outras pessoas que partilham da mesma condição que ela.
            Entre imagens gravadas para o filme, fotos de arquivo e raras vozes em off, esta obra de Herzog é capaz nos transportar, de fato, para um outro mundo. A incapacidade de ouvir e enxergar dos personagens expostos em tela parece se converter numa solidariedade quase palpável que aperta o miocárdio de quem assiste ao filme. Cada nova história contada faz crescer o descompasso que guia o expectador por um caminho de surpresas e agonias pulsantes que surgem ao longo do documentário de Herzog.
            Surpreendentemente, este não acaba por ser um filme melodramático e piegas – caminho óbvio que o diretor alemão poderia ter seguido; apesar da temática difícil e comovente, o documentário consegue transmitir algo do que existe além do silêncio e da escuridão: um mundo ocupado por ruídos, rastros de cor e, inevitavelmente, solidão. O que se vê ao assistir ao filme são histórias que, mais do que entristecer, desconcertam; tiram do lugar comum, fazem a visão enturvecer e um zunido abalar a consciência. Talvez pela sua personalidade, talvez pelo sucesso que teve em se readaptar à sua nova condição, Fini consegue trazer o expectador para o seu mundo de forma contida e impactante na medida certa.
            Na escolha dos planos que compõem o filme, Herzog parece ter sido muito feliz: planos longos em que a câmera ora mostra uma visão geral, ora se deixa levar pela curiosidade e atenção do expectador, muitas vezes se transformando num plano detalhe que mostra exatamente aquilo que se quer ver. Na cena em que o jovem Harald, surdo-mudo de nascença, entra numa piscina, não existe corte entre o plano em que o mostra de corpo inteiro descendo pela escada e o momento em que se vê Fini e sua intérprete à beira da piscina: tudo se dá através do movimento de câmera associado ao zoom.
           
Ao final do filme de Herzog – quando se lê uma frase graficamente sem assinatura, porém mental e inevitavelmente atribuída aos personagens do filme –, se tem a certeza de ter apreciado uma obra de arte. Não se trata de um documentário comum. Não se trata apenas de um documentário sequer, na verdade. Terra do Silêncio e da Escuridão acaba por transformar-se num ensaio sobre a sensibilidade e incomunicabilidade humana, atravessado por aproximações improváveis. Sentimos nossa mão tocada pelos personagens – talvez pela repetição desta cena ao longo do filme –, como forma de convite à descoberta e interação.

Medeia, de Pier Paolo Pasolini, por Joelton Alves e Silva


Entre muitos de seus escritos sobre cinema, Pasolini certa vez discursou sobre montagem cinematográfica, em “Observações sobre o plano-sequência”:
[a montagem mostra] uma multiplicação de ‘presentes’, como se uma ação, em vez de se desenrolar uma única vez diante dos nossos olhos, se desenrolasse várias vezes. Esta multiplicação de ‘presentes’ abole, na realidade, o presente, esvazia-o, postulando a cada um dos presentes a relatividade dos outros, o seu imprevisto, a sua imprecisão, a sua ambiguidade.

Em Medeia, Pasolini apresenta o trágico como o conflito entre razão e sentimento existente no interior do homem. Nota-se que o filme tem duas partes principais: antes e depois da segunda aparição do Centauro. Após essa cena, há o encontro entre o texto de Eurípides e o de Pasolini e o filme se assemelha a tragédia de Eurípides.

No início do filme de Pasolini, o personagem Centauro discursa para o espectador e para Jasão, em três fases da vida dele: na infância, na adolescência e depois na sua vida adulta. Na primeira cena, o Centauro narra para o menino o mito do velocino de ouro. Na segunda, o Centauro afirma: “tudo é santo! Não há nada de natural na natureza. Quando a natureza te parecer natural, isso será o fim de tudo e o começo de outra coisa”


Na terceira cena, o Centauro expõe para Jasão o significado “para o homem antigo” do mito e dos rituais. Em seguida, o Centauro diz a Jasão que ele deverá ir até o tio dele, Pélias, para recuperar seu reino e que, para isso, o tio imporá a ele “uma empresa heróica”: recuperar o velocino de ouro. Com o objetivo de realizar a tradução para o cinema da tragédia Medéia, de Eurípides, Pasolini desconstruiu as ideias formadas pelo pensamento moderno acerca das obras trágicas, que geralmente as reduz a melodramas que apelam para sentimentos de simpatia ou de antipatia.

"Moonrise Kingdom", por Walyson Florêncio de Morais


Narrando os acontecimentos envolvendo os habitantes de uma ilha fictícia chamada New Penzance, filme de 2012 dirigido por Wes Anderson se torna uma obra sobre puberdade e liberdade. Moonrise Kingdom acompanha a história de Suzy Bishop, uma garota de temperamento instável, e Sam Shakusky, escoteiro adotado e rejeitado pelos companheiros de acampamento. Na trama, os dois decidem abandonar suas rotinas para viverem juntos.

Com protagonistas claramente desajustados, Moorise Kingdom os coloca como os únicos personagens a perceber os fatos ainda que não os ajude a enfrentá-los, optando por encaminhá-los para uma fuga onde ambos possam ser felizes. Como no caso de Suzy que, ao contrário dos seus irmãos, consegue ver que a mãe tem um caso extraconjugal com o policial da ilha. Nesse caso, há uma inversão de papéis. Pois as crianças do filme estão sempre a expor a verdade e a demonstrar maturidade, enquanto os adultos se escondem em mentiras e tomam atitudes infantis.

 Essa ideia fica evidente em uma das cenas quando o policial admite que Shakusky é mais inteligente. A fuga das duas crianças é rodeada pelos fatores que indicam puberdade. Um romance se desenvolve entre os dois, culminando na cena do primeiro beijo e partindo para a ereção do garoto e o toque nos seios ainda não desenvolvidos da garota.

A trama se desenvolve a partir da busca pelos dois jovens amantes em contraponto com a possibilidade de enviar Shakusky para um “orfanato”. O garoto precisa ser encontrado, mas se for, corre o risco de sofrer tratamento de choque. Essa é uma das várias situações que beiram o ridículo e o impossível. Essa jornada, por fim, se faz essencialmente necessária para Suzy e Sam. É uma forma de transição, como a própria puberdade. Só que contém significados diferentes para cada um. Para Suzy a jornada a transforma no que mais condenava: uma versão jovem de sua mãe. No caso de Sam, não significa só o encontro de um lar ao lado do policial, mas também o mergulho numa vida de mentiras em que ele mantém um relacionamento secreto com Suzy. Nada mais natural num filme de Wes Anderson, onde crianças e adultos têm papéis invertidos, que as personagens percam a maturidade ao deixarem a infância de lado.

"Acossado", por George Santos


O que resta de Acossado nos dias de hoje? O que ele comunica a um público contemporâneo – quando jump cuts aparecem em quase mandatoriamente todo comercial de TV; quando seus protagonistas estão há algum tempo mortos ou no crepúsculo de suas carreiras; quando comédias contrapondo americanos e europeus são mais do mesmo; e quando é mais provável que a mistura de um enredo solto envolvendo gângsteres, uma atitude “esperta” e um compendium de citações de alta e paracultura seja atribuída a Quentin Tarantino do que a seu predecessor , Jean-Luc Godard?

 Surpreendentemente, para um iconoclasta artístico cuja evolução foi tão rápida e ambiciosa, Acossado é uma estréia humilde. Há algo parecido com um enredo de thriller, que é completado por uma traição, perseguição policial e um tiroteio ao fim. Há uma trilha sonora de Jazz com uma veia de filme noir encantadora, porém convencional. Há a verborragia , quase em forma de rap, perturbador e ligeiramente ofensivo, que sai dos diálogos incessantes de Belmondo, porém mesmo assim não chega a contradizer a tradição de Chandler de conversa de detetive durão “good cop bad cop”.

 Contudo, até hoje os prazeres sutis e formais de acossado não foram plenamente reconhecidos pelo público geral. Seja por acidente ou de propósito, o estilo de filmagem apressado, de baixo orçamento, de Godard produziu inovações marcantes.

Evitar a gravação de som direto e optar por fazer tudo relacionado ao áudio na pós produção, não apenas levaram uma velocidade à Orson Welles e a uma maneira inventiva de transmitir diálogos como também abriram caminho para uma mixagem radical na qual não se percebe a diferença entre o som diegético e o som imposto pelo cineasta. Da mesma forma , filmar em ambientes fechados e pouco espaçosos levou a uma nova forma de contemplação cinematográfica: o “estudo visual”, no qual uma sequencia de pontos de vista apenas ligeiramente diferentes oferece um mosaico dos muitos humores e aspectos dessas estrelas de presença extraordinária.

 No entanto, é como uma história de amor moderna que Acossado retém seu imersivo charme para os membros de outras e novas gerações. Esses anti-heróis tratam o amor como um jogo e suas próprias atitudes como máscaras descartáveis. Estão presos entre os valores tradicionais que rejeitam e as maneiras do futuro que ainda não se materializou . Soa bem atual..

"Holy Motors", por Filip Matheus Pereira de Lima


Um filme para ser analisado e desvendado a cada momento que é assistido, isso é Holy Motors. Apesar de difícil, é um filme que vale a pena tentar interpretá-lo, não possui respostas fáceis e por isso nos instiga.

 Logo no início temos imagens em preto e branco de um garoto correndo e um homem que arremessa algo no chão. Arrisco dizer que, essas imagens buscam também, dentro do contexto do filme criticar aqueles que veem no cinema um passatempo, espectadores que estão perdendo o encanto por essa arte. Após alguns letreiros e essas imagens, o filme se inicia com uma plateia dormindo no cinema. O som que sai do filme acaba passando pelas paredes do cinema e acorda alguém que dormia em um quarto. Esse, digamos ‘’dorminhoco’’, é o diretor, Leos Carax.

Em seguida, ele busca saber de onde vem esse som e somos presenteados com uma cena surreal e descobrimos que ele estava apenas a uma parede da sala de cinema. Podemos pensar que esse cinema que nos provoca uma indiferença com que se passa na tela, nos faz entrar em um estado letárgico e assim faz com que nosso diretor reflita, ora nostalgicamente, ora tentando elaborar um filme de vanguarda, fazendo com que pensemos como estamos vivendo um cinema ‘’mais pobre’’ e como os cineastas devem também pensar no que fazer para realizar um cinema novo.

Logo depois desse momento surreal somos apresentados ao Sr.Oscar (Denis Lavant), que após se despedir aparentemente de sua família, vai trabalhar. Só que seu trabalho é acompanhado por uma motorista, que dirige uma limusine, que o leva a vários locais de Paris, para ele se transformar em outra pessoa, ou porque não dizer, em outro personagem. A partir desse momento entramos na montanha russa que é a vida do Sr.Oscar. Como sua motorista lhe diz, neste dia ele terá nove encontros.

Cada um desses encontros, ele será outra pessoa, e cada encontro podemos tentar desvendar o que nosso diretor quer nos passar. Na verdade acho que aqui não cabe uma única interpretação, e sim várias. Cada espectador pode interpretar da maneira que quiser, pois na verdade ele quer nos provocar a pensar e sair daquele estado letárgico de que falei. Então, embarcamos em pequenas histórias que podem significar muito, pouco ou até nada. Logo no início a senhora pedinte diz que está cansada de olhar para o chão. Talvez, seja aí uma crítica aos cineastas que não conseguem vislumbrar algo maior em termos de cinema, acabam repetindo fórmulas e realizando um tipo de arte repetitiva, os famosos: ‘’clichês’’.

Vemos muito esses tipos de filmes, que não mexe com nossos neurônios e passamos o filme todo olhando para aquela imensa tela, sem demonstrarmos qualquer tipo de emoção. Logo adiante temos a parte do filme que aborda um pai a busca de sua filha em uma festa. Após um intervalo que nos apresenta uma canção excelente e mais uma história, temos a conversa com o homem da marca da nascença - um dos melhores diálogos do filme. Quando Oscar e ele conversam, fala-se muito do poder de interpretar alguém. Ofício, em minha opinião, difícil. Aborda que o ator não está conseguindo que os espectadores acreditem mais em cada papel. Ainda se pergunta o porquê de Oscar continuar atuando. E a resposta é excelente: A beleza do gesto. Realmente, quando há uma boa atuação ficamos maravilhados. Mas há uma contra resposta. A beleza está nos olhos de quem a vê e se ninguém a vê? Nesse diálogo vejo duas considerações: A primeira a respeito da atuação do ator, como já citei, e a segunda referente a espectadores que não conseguem enxergar além de uma projeção sobre uma tela grande. O cérebro se desliga ao assistir a filmes. É apenas um momento para relaxar e dessa maneira, não se consegue enxergar a beleza do gesto de atuar.

Quem realmente ama o cinema, não pode ficar embriagado com aquelas imagens, não pode ficar passivo com tudo que está assistindo. Pois, o cinema é muito mais que um simples passar de tempo. Para mim, Holy Motors foi uma ótima experiência cinematográfica! Uma homenagem ou uma crítica ao cinema? Muito provavelmente as duas coisas, e esse é um dos pontos mais marcantes dessa obra, Holy Motors não se resume em um único ponto de vista e nos permite várias leituras, fazendo alusões ao consumismo, ao conformismo deprimente, ao vazio existencial, a frieza das relações, e sem falar nas máscaras que o homem moderno se vê obrigado a usar para se "encaixar" numa sociedade devidamente amparada e iludida pela tecnologia, mídia e indústria. Oscar é, ao mesmo tempo, todos e ninguém; aliás, muito impressionante a atuação de Denis Lavant, uma das mais incríveis que já vi! Também são impressionantes como tantos simbolismos foram traçados de forma surreal, mística e subversiva em um único personagem. Muitas informações e muitos significados, mas talvez o significado maior seja sua metalinguagem, que, pelo menos a meu ver, mostrou o quanto o cinema atual (a maioria comercial) reflete esse tal vazio existencial (e por que não intelectual?) que consome o homem moderno.

"8 ½ - Federico Fellini", por Wellington Júnio dos Santos


Perturbação. 8 ½ de Fellini é uma obra perturbadora tanto em seus elementos cinemáticos quanto nos elementos fílmicos. O filme aborda a crise criativa de um diretor de cinema que está vivendo sob uma tremenda pressão para delinear suas escolhas profissionais e amorosas. Guido (Marcello Mastroianni) é um aclamado diretor e se encontra acuado pelos seus colegas de trabalho, os quais insistem em conhecer sua nova empreitada. Porém ele ainda não sabe o que irá realizar, mesmo possuindo uma espécie de esboço de produção e passa a construir uma viagem.

A viagem onírica de Guido é uma confusão subversiva. Ora ele vive em uma conexão de indagações e cobranças, ora em uma imersão ao seu âmago em busca de ideias benevolentes. A condição conflituosa em que Guido se encontra o faz flutuar em seus compromissos. Sua feição é pouco permutável, o que revela seu estado de transe imaginativo, e suas atitudes são de esquiva. Feline deixa um sinal de preocupação no personagem quando o coloca em situações dramáticas e desconexas, contraponto com a sua aparência física sã, pois embora ele o apresente doente logo no inicio, Guido mantém um semblante neutro até o final. 

Com cenários suntuosos e atuações muito expressivas, Fellini pôde ousar com elementos teatrais e completamente ficcionais. A escolha das luzes incidentes, a mistura do presente com o passado, as alegorias marcantes são extremamente importantes para a associação realizada entre o delírio e a sanidade, entre vida pessoal e profissional. O filme é bastante sensual, provocativo e envolve diversas esferas sociais que compuseram a vida de Guido. A formação religiosa, o pecado, os desejos carnais insaciáveis, a relação familiar, entre outros, são os temas que Guido procurou transforma-los em roteiro. Contudo, o fracasso advindo do bloqueio que ele construiu o faz desistir de fantasiar sua incapacidade criativa. Por fim, todo devaneio se junta para compor a obra que ele constituiu involuntariamente, sua vida.

“Blue Velvet escancara como os ricos adoram a violência”, por Roberto França


Como vários filmes de David Lynch, Blue Velvet (Veludo Azul) provoca emoções distintas: por um lado, sentimos o drama dos personagens e sofremos com eles, em contrapartida; ficamos distantes, como se o drama fosse apenas um sonho de uma classe suburbana americana e que nada que tinhamos visto até então tenha realmente acontecido. Esta narrativa onírica, aliás, também sarcástica, pode retirar um pouco do impacto das imagens e dos acontecimentos dramáticos que ocorrem no filme. Os acontecimentos violentos do filme aparecem um delírio de um subúrbio americano, que anseia por um momento espetacular, uma acontecimento fora do comum, que os retire da inércia. A violência, claro, é um prato cheio para isso.

 É interessante observar como cada um dos personagens reage de forma diferente a este mundo fantástico do crime. Jeffrey está eufórico, determinado em salvar a donzela em perigo. Sandy está relutante e acaba sendo a arma da narrativa que antecipa acontecimentos posteriores da trama, provocando medo no espectador em relação ao destino do personagem. Embora Sandy esteja com medo e ansiosa, ela também acaba se infiltrando neste mundo, mais por amor por Jeffrey, do que curiosidade ou sentimentos benevolentes. Dorothy, tão acostumada com a dor, é incapaz de concluir o ato sexual sem pedir um pouco de violência. A figura de Frank é a do mal que todos os outros personagens de alguma forma bebem. É um vilão riquíssimo em traços e particularidades instigantes. Com sua máscara de ar e sua psicopatia, ele realmente passa a ideia de um perigo constante ao longo da projeção, fazendo-nos temer pela vida do herói Jeffrey, principalmente na crise, o ponto mais perigoso para o personagem.

 O duelo entre bem e mal na história é explicitado por um contraste claro entre o bem e o mal. No entanto, mesmo com roupas de cores tão distintas: Sandy, rosa; Frank, preto, em Blue Velvet a visão irônica de David Lynch sobre aqueles personagens é de um claro deboche, que se tornam mais fortes no prólogo do filme. Estas indagações sobre a visão do Lynch sobre a história que conta surgem quando pensamos no epílogo e no prólogo do filme, pois são imagens que satirizam de alguma forma os bonzinhos da história. 

Mesmo trazendo uma narrativa intensa, um dos pecados do filme é a resolução rápida da história que, ao menos para mim, foi um pouco anti-climática, embora rica simbolicamente. Ao propor discussões a respeito da visão sobre a violência e como as vemos, é um filme que produz sensações fortes mesmo com uma trama demasiadamente onírica, e, por isto, é melhor do que uma grande parte das obras existentes por aí.

'Uma ficção do real", por Camila Purificação Van-Lume


A verdade dita, pronunciada, é sempre verdadeira? O que se apresenta, por mais direto que seja, expressa de fato a realidade? A relação entre o que é ou não real, é ou não verdade costuma se mostrar de forma bastante sutil. Está presente nos discursos narrativos, na ligação entre personagem e fabulador - por vezes a mesma pessoa -, presente em efeitos visualmente alterados e nos sons, utilizados tanto para a imersão em mundos fictícios como para a quebra da ilusão para o real.

 Em Um Alguém Apaixonado (2012), de Abbas Kiariostami, a construção da realidade não é um fenômeno isolado; é feita por meio, principalmente, de quem a vive diariamente, em uma constante metamorfose. Não raro, a realidade no filme se confunde com ilusão, onde as personagens são personagens das situações - mentiras são frequentemente contadas, omissas ou compartilhadas, de personagem para personagem ou para si mesmas.

O filme começa ambientado em um bar, cheio pela noite. Akiko é uma estudante universitária que trabalha como garota de programa. Através do telefonema do namorado, o qual ela tenta convencer estar em outro lugar diferente do seu atual - a primeira fala do filme, carregada de ironia: "Não estou mentindo. Quando menti para você?" -, somos parcialmente introduzidos à sua realidade. As conversas, entre ela e uma amiga e o namorado, incitam uma construção que reforça significados no filme; a insistência em defender a verdade escorregadia, por parte de Akiko, revela um pouco do seu mundo, e as máscaras são trazidas à luz. Assim como o interlocutor do telefonema, também somos enganados pelas diversas caracterizações da personagem e da realidade.

 Kiarostami apresenta essa diversidade por meio de vidros, janelas, reflexos; a imagem - dividida, disfarçada, não só de uma Akiko delicada, mas também de uma verdade volátil. Tal delicadeza encontra abrigo no programa arranjado da noite, um velho professor universitário aposentado chamado Takashi. O encontro dos dois possui características românticas - o jantar à luz de velas, o vinho -, apesar das intenções quase paternais do professor e da recusa de Akiko em aceitar o programa. Tão logo foi o encontro, tão logo o professor e a estudante são confrontados pelo namorado dela - na verdade, noivo. Confundindo-o como avô da protagonista, Noriaki acaba por concretizar uma nova realidade, realidade esta falsa, envolvendo os três; à medida que mostra a sua superproteção sobre Akiko, também bastante irônica - "Ela não sabe nada da vida. [...] nós vivemos em uma selva", quando na verdade quem não sabe de nada é ele -, a amizade e empatia, até cumplicidade, entre ela e Takashi se aprofundam.

As identidades variam, e entre as situações, há um constante embate de dualidades - realidade x ilusão, verdade x mentira, analogicamente à vida dupla da protagonista. Assim como alguém apaixonado, que costuma não enxergar/aceitar certas verdades, inclusive as deturpando, o filme conduz a sua narrativa. Mas afinal, Kiarostami nos pergunta, quem está apaixonado? Esse alguém, uma variável, imerso pela paixonite romântica, frequentemente distorce a realidade que o cerca; essa ilusão, não tão ilusória para os criadores da ficção, faz parte da sua própria realidade. Novamente, quem está apaixonado? O namorado da protagonista, a velha que espia o professor universitário, o espectador?

Essa ligação dual, presente nas relações interpessoais do filme - e porque não, do nosso cotidiano? - é de uma sutileza que de tão crua acaba se tornando frágil, quebrável. O abrupto fim da obra nos assusta em certo ponto, a quebra da ilusão que, por um instante, acreditamos ser real. A música Like Someone In Love, interpretada por Ella Fitzgerald, cai como uma luva ao fim e como título original; como alguém apaixonado, somos seduzidos pelas realidades, nem sempre verdadeiras, apresentadas.

“Fahrenheit 451” (1966, François Truffaut), por Luiza Chimendes da Silva Neves


O filme é baseado na obra literária de mesmo nome do autor Ray Bradbury. A história se passa num futuro alternativo no qual, basicamente, ler é proibido. Por isso, os bombeiros nessa realidade são responsáveis não por apagar incêndios, mas por queimar livros e carregam em seus uniformes o número 451 o qual indica a temperatura, em Fahrenheit, que o papel queima. Um desses bombeiros, Montag, um dia ao voltar do trabalho, é abordado por uma vizinha, Clarisse, que fica responsável por questionar a queima dos livros.

Desse momento em diante, a curiosidade de Montag aumenta e ele inicia a leitura das mais diversas obras, o que o leva a questionar seu trabalho, principalmente após o “suicídio” de uma senhora que não queria viver sem os livros, seu casamento e, por fim, aquela sociedade totalitária na qual ele estava inserido.

 O comprometimento com a temática está em cada detalhe, presente no roteiro, na edição e na direção de arte do filme. Os créditos são narrados e não escritos, na cidade inteira não há placas, nomes de ruas ou de estabelecimentos, os arquivos dos indivíduos não contêm nada mais do que fotos e símbolos, os jornais contêm apenas figuras, até mesmo a explicação no quadro negro não apresenta palavras ou letras de qualquer tipo. É constrangedoramente difícil acreditar que uma sociedade seria capaz de se articular sem a escrita. É quase contraditório, pois apesar da ausência de letras, o mesmo não se pode dizer do letramento dos cidadãos. Todos são bem alfabetizados e capazes de engajar na leitura facilmente, a exemplo da cena em que Montag ler seu primeiro livro.

 Outra característica sempre presente na narrativa de Fahrenheit 451 é o controle exercido por esse Estado totalitário sobre os cidadãos, que são manipulados a acreditar que todos fazem parte de uma grande família. A grande maioria das casas tem antenas para televisão, o que é ressaltado nos “créditos” do filme e no decorrer dele. Na TV, principal responsável pela alienação, há sempre uma figura constante determinando o que se deve vestir ou como se comportar e que a lei está certa. Há também diversas pílulas responsáveis por controlar as emoções dos indivíduos.

Obviamente não poderia faltar, o controle das mídias que, após a fuga de Montag, apresentam uma perseguição seguida de morte forjada, buscando passar uma falsa sensação de conforto para a população e uma falsa aparência de herói para o Estado. Em seu final, quando Montag encontra-se com as “pessoas livros” há uma mudança quase que total fluir do filme, tornando-se mais leve e menos mecânico como era na cidade. A cena final, em que os atores circulam pela floresta recitando seus livros, suas identidades, é praticamente uma celebração à leitura.

 Além disso, Fahrenheit 451 é carregado de críticas à sociedade, como no que se trata do abandono a leitura e a devoção à televisão, e aborda também questionamentos políticos e sociais ainda muito atuais.

“Era uma vez em Tóquio”, por Francesco Credidio


“Era uma vez em Tóquio” (Tokyo Monogatari) é genuinamente considerado como um dos maiores filmes já feitos. Ele aparece regularmente no topo da maioria das pesquisas de cinema credíveis e há um número infinito de críticos e cineastas que o discutem em completo espanto e admiração. Enquanto o diretor Yasujiro Ozu não era conhecido fora do Japão até muito mais tarde do que outros diretores japoneses importantes, como Akira Kurosawa, ele é agora considerado um dos cineastas mais importantes do mundo.

É importante notar que os filmes de Ozu são distintamente diferentes das grandes narrativas dos filmes de Kurosawa e tendem a preocupar-se com questões de família, casamento e vida doméstica. Eles também têm pouca semelhança com os melodramas de Hollywood que exploraram questões similares com um excesso de emoção e estilo. Em vez disso, as histórias de Ozu são assuntos simples e calmos, tingidos com nostalgia. Com espírito Zen e triste, os filmes de Ozu oferecem ao público a oportunidade de refletir e contemplar a sua própria vida e como ela reflete os personagens na tela.

O tema dominante de “Era uma vez em Tóquio” é o conflito de gerações entre pais e filhos. Ele descreve a visita de um casal de idosos que vêm para Tóquio, onde pretendem passar algum tempo com seus filhos adultos, suas famílias, e a viúva de outro filho, que foi morto na guerra. Apesar das boas intenções, as crianças descobrem que a visita de seus pais é um fardo para suas vidas ocupadas, algo que os pais, em seguida, se sentem mal a respeito. Viagem a Tóquio é o exemplo perfeito da abordagem suave de Ozu para contar histórias. É uma narrativa aberta, em que não há nenhuma grande resolução abrangente, e nenhum dos personagens são delineados como sendo "bom" ou "ruim", com a possível exceção da nora viúva Noriko (interpretada pela atriz regular de Ozu, Setsuko Hara), que é uma das personagens mais dolorosamente amáveis e generosas de todos os tempos. O desejo de Ozu de garantir que o público foque nas pequenas nuances de interação dos personagens é evidente examinando o que é deixado de fora do filme.

Apesar de sua importância para o filme, a cidade de Tóquio mal é representada. Há os ocasionais planos de indústrias para distinguir o ambiente urbano do rural, onde o filme começa e termina, mas a única vez que o público realmente pode ver a cidade é junto do casal de idosos, durante a sua breve turnê de ônibus. Em termos de desenvolvimento da trama, os principais pontos decisivos que um filme com uma narrativa mais conduzida teria incluído são simplesmente deixados de fora. O público nunca vê qualquer uma das viagens de trem que os pais fazem e os principais eventos para o final do filme ocorrem todos fora da tela. Ozu se concentra em como os personagens reagem e interagem uns com os outros em vez dos momentos realmente dramáticos.

A qualidade meditativa de“Era uma vez em Tóquio” é ainda reforçada pela abordagem de Ozu ao estilo do filme. Conversas em filmes normalmente são filmadas no padrão campo contra campo, onde a câmera está colocada sobre o ombro do personagem que está falando. Isto dá a impressão de uma conversa que flui naturalmente a qual o público testemunha de uma posição isolada. Ozu, por outro lado, coloca a câmera no meio das duas pessoas que conversam e filma cada pessoa diretamente, para que o público sinta que estão em pé no meio da conversa e sendo tratados diretamente pelas personagens. Além disso, Ozu filma de uma altura muito menor do que o público está acostumado. Esta técnica tem sido descrita como “plano tatame”, já que a câmera é colocada como se fosse uma pessoa ajoelhada sobre um tapete de tatame. Esta técnica aumenta a sensação de o público estar dentro do espaço do filme e, portanto, torna-o muito mais receptivo aos personagens. Talvez a abordagem mais inovadora do Ozu em “Era uma vez em Tóquio” tenha sido despir todos os dispositivos estilísticos associados com o movimento de câmera e edição.

A câmera de Ozu é estática; uma vez que um plano começa a câmera não se move, exceto em ocasiões muito raras, como o lento, constante e discreto plano de rastreamento que vai junto a uma cerca, revelando os pais que esperam Noriko do lado de fora voltar para casa. Ozu também descartou técnicas de edição, e em vez disso usa cortes diretos e simples. Esta atitude minimalista de abordagem no cinema aumenta a qualidade reflexiva dos filmes de Ozu e traz a humanidade dos personagens para o primeiro plano. “Era uma vez em Tóquio” é uma obra-prima que deixa o espectador em um estado sereno de reflexão muito tempo depois de o filme terminar. É um filme distintamente japonês, descrevendo a triste inevitabilidade que as crianças desenvolvem um grau de egoísmo a fim de se tornarem independentes de seus pais. “Era uma vez em Tóquio” pode até ser um tipo de filme que trata apenas de uma fatia da vida, mas mesmo assim evoca algumas das grandes questões da vida, tais como a forma como lidamos com o sofrimento, a morte, o envelhecimento e a mudança.

"Moonrise Kingdom", por Iago Fernandes


Com todas as peculiaridades e estilos únicos de filmar já conhecidos do diretor Wes Anderson, Moonrise Kingdom conta a história de um jovem casal que foge de suas rotinas diárias e de suas famílias e amigos para viverem e experenciarem o primeiro amor longe da sociedade. Talvez uma sinopse básica como essa já nos direcionasse para um filme de romance adolescente comum, isso se essa história não fosse situada na realidade à parte criada pelo diretor, onde a fantasia e a improbabilidade fazem parte do contexto.

 Moonrise Kingdom tem como protagonistas os jovens Sam Shakusky, escoteiro órfão marginalizado pelos colegas e pelos próprios pais adotivos, e de Suzy Bishop, que também não tem dos melhores relacionamentos com seus pais e seus irmãos. Os dois se apaixonam, e decidem fugir, para viverem juntos em um acampamento. Até que os outros escudeiros, assim como os pais de Suzy, percebem o desaparecimento, e partem numa busca para encontrar os dois. Sam e Suzy, apesar de serem praticamente crianças, possuem um relacionamento quase adulto, e durante o tempo que passam sozinhos, passam por fases que mostram que o amor que há entre os dois já é um sentimento mais maduro. Os diálogos e o próprio crescimento da intimidade entre os dois prova isso. Eles dividem seus sonhos, se beijam e descobrem seus corpos, e até tentam se casar mais para frente no filme. São atitudes que parecem ser obrigatórias para que que eles se consolidem como um casal. Tudo acontece num local e época que ficam indefinidos para o espectador, a história parece se desenvolver num universo paralelo à nossa realidade, onde as pessoas vivem e agem de formas diferentes.

Além do estilo de filmar peculiar do Wes Anderson, a fotografia também possui grande importância em Moonrise Kingdom, com uma amarelo bem intenso predominando, principalmente na primeira metade do filme, quando Suzy e Sam estão felizes juntos. Dependendo da situação e do clima da história e dos personagens, a paleta de cores muda, e pode-se perceber isso, por exemplo, na cena em que o chefe da polícia liga para o serviço social, e a tela fica dividida enquanto os dois conversam. No lado do chefe da polícia, predomina o marrom e amarelo, enquanto no outro lado, se tem uma paleta mais neutra, com azul e cinza. O elenco do filme é de peso, com Bruce Willis, Edward Norton, Tilda Swinton e Bill Murray nos papéis principais, mas são a Kara Hayward e o Jared Gilman, interpretando Suzy e Sam, que realmente brilham no filme. Em Moonrise Kingdom, Wes Anderson mostra, com toda sua originalidade, uma certa solidão e amargura com que os adultos lidam com um jovem primeiro amor.

"Cinema Soberano", por Rafael Felipe Machado


Há, envoltos e simultaneamente compondo o que se chama de cinema, vários conceitos de cunho narrativo e imagético. Tomando a história da sétima arte como tradicionalmente é contada por base, pode-se identificar, em geral, uma certa valorização dos aspectos narrativos em prol do outro. Mesmo não concordando com essa valorização é impossível negar a sua existência, e, acima de tudo, a sua pré-existência nas experiências cinematográficas do público – especialmente do grande público, leigo. Ora, é completamente comum a expectativa, colocada por um espectador, de uma história desenrolada a partir e dentro de uma determinada lógica, com algum sentido expresso, mesmo que fora dos padrões maniqueístas.

Esse tipo de esperança é frustrada, ao menos sob um primeiro olhar, ou fortemente deturpada, no último longa do diretor francês Leos Carax, Holy Motors, de 2012. Enquanto estava no cinema assistindo ao filme, me peguei inúmeras vezes com o mesmo pensamento, mais frequente quanto mais se aproximava do final, que me perguntava quando é que aconteceria uma cena explicativa, dando sentido a todo o anterior visto, ou que ao menos deixaria uma certa mensagem geral subentendida. A sessão terminou sem me dar essa resposta, ficou só a inquietude que me forçou a assistir mais algumas vezes.

Apesar desse vazio incômodo eu sabia, desde a caminhada de saída da primeira sessão, que acabava de ver algo fora do comum, algo diferente, e, provavelmente (iria comprovar depois), acima da média. Tinha a íntima certeza de que nenhuma sequência era vã e a sensação imutável de ter assistido a uma obra-prima do cinema, não o contemporâneo, mas de todo o cinema, de toda sua história.

Uma breve sinopse para os que não viram pode facilmente provocar uma impressão equivocada, e trazer a dita pré-valorização da narrativa à tona. Em linhas narrativas gerais, o filme acompanha um dia do Sr Oscar, que interpreta, na vida real, diversos papeis diferentes e dicotômicos entre si, em lugares de uma Paris muito bem fotografada, sempre se transportando na luxuosa limusine-camarim guiada por Céline (Edith Scoob).

Mas Holy Motors não pode ser contemplado por uma sinopse porque não é um acontecimento, não é redutível, e não há, sobretudo, uma só sequência passível de supressão em prol de um pontuar mais curto da história. Aliás, esse é o grande ponto esclarecedor e precursor de tudo: Holy Motors não é uma história; é um filme. E sim, há uma substancial diferença entre um e outro. Um filme é, retomando, um conjunto de vários conceitos de cunho narrativo e imagético, sendo assim, a história é apenas uma das partes que o compõe.

Desde sua primeira sequência, quando a sala de cinema lotada dorme frente à tela; passando pelo diálogo do protagonista Sr Oscar (Denis Lavant) com o que parece ser seu chefe (Michel Piccoli), quando, ao ser perguntado o motivo pelo qual continua no ramo, Oscar diz a máxima “pela beleza do gesto”; e por todos as situações e personagens de Oscar (uma soberba homenagem ao ofício de ator), Holy Motors é a exaltação e a soberania do cinema, desprendido da necessidade de lógica e temporalidade, bastando-se e reivindicando-se. Ademais, é também um manifesto contra a domesticação e, usando de neologismo, idiotização do público geradas pela mesmice dos roteiros do cinema dualístico e rasteiro dos grandes estúdios.

Carax vem nos falar de cinema pelo cinema, e para ouvir plenamente é preciso estar atento e livre das necessidades narrativas a qual estamos acostumados. Vem, como só os grandes mestres podem, nos fazer não só assistir ao seu filme, mas senti-lo, incômodo, cinema puro e soberano, que grita-nos lembrando que não existe só para contar histórias facilmente compreensíveis.