À luxúria e à ganância some-se o prepotente desejo de engendrar e consumar o crime perfeito. Eis a trina essência pecaminosa em que consiste Pacto de Sangue (Double Indemnity, Paramount Pictures, 1944, 106’). Neste filme, o diretor Billy Wilder conseguiu, mais do que transpor para as telas com excelência o romance policial de James M. Cain, lapidar as bases de todo um estilo cinematográfico — o noir, que quer dizer escuro.
“Eu fiz tudo por dinheiro e por uma mulher. Eu perdi o dinheiro e perdi a mulher”, confessa Walter Neff (interpretado por Fred MacMurray), um corretor de seguros qualquer, por meio de um ditafone. O tom é de lamento e orgulho. Encerra tanto a arrogância da autoria do crime perfeito quanto o sentimento de culpa pelo mesmo motivo. A cena, com cara de fim de filme, é, no entanto, uma das primeiras. O diretor Billy Wilder nos revela sem a menor hesitação o sempre tão esperado criminoso. Esperto ele. A partir de então, Neff narra, com a voz em off, a sua história infame desde o início, relembrando como se perdeu — estilo de narração tipicamente noir. E o espectador, intrigado, é convidado a acompanhá-la. Convite irrecusável.
As vidas de Neff e de Phyllis Dietrichson — uma esposa diabólica cansada do marido e ávida por dinheiro, representada por Barbara Stanwyck — começam a se entrelaçar numa casual manhã ensolarada em que ele, a trabalho, bate à porta dela a fim de vender uma apólice de seguro de carro. A loira — que encarna a figura da femme fatale, tão presente nos filmes noir — o recebe e, como já estivesse articulando um plano, atiça-lhe os instintos ao explorar a própria sensualidade. Começa um jogo de sedução que vai levá-los ao fim da linha.
Atração e interesse se confundem nesse relacionamento erigido em torno da ausência do marido de Phyllis, regado à base de provocações que fomentavam, nos dois lados, uma volúpia contida, num primeiro momento, e, depois, exacerbada. A esposa adúltera, entretanto, tinha um objetivo claro: livrar-se do marido e tomar-lhe o dinheiro. Apesar de Neff inicialmente ser contra o assassinato, a paixão pela loira e, sobretudo, o desejo de cometer o crime perfeito sem ser pego — o que também lhe provocava implacável excitação — falaram mais alto, calando-lhe a voz da razão. No entanto, não se pode atribuir-lhe o rótulo de vítima, na medida em que ele não só se torna cúmplice como também assume a condução do esquema, ao arquitetar, passo a passo, a “morte acidental” do marido de Phyllis, para que ficassem com o dinheiro do seguro de vida. Ambicioso, mira alto: a indenização dupla, concedida em caso de morte por queda de um trem em movimento. Daí o título original do filme: Double Indemnity (indenização dupla).
Não lhe faltaria, todavia, sensatez na realização do crime. Nem poderia faltar, pois era crucial driblar o chefe de Neff, Barton Keyes (Edward G. Robinson), extremamente arguto em suas análises, seja usando a lógica, seja dando ouvidos ao “homenzinho” interior, de infalível instinto antifraude. A extrema perspicácia do investigador é superada pela artimanha do casal. Para o azar deles, contudo, o mais difícil não era exatamente enganarem Keyes, e sim se manterem afastados para não atraírem suspeitas. Nessa hora, o ego falou mais alto. Cada um foi pro seu lado. Não obstante, o pacto de sangue já estava feito. Não havia escapatória. Como relembra Phyllis, eles estavam juntos “até o fim”. E o fim, como em um bom film noir, não haveria de ser feliz.
É difícil dizer o que mais chama a atenção: a narrativa ágil e coesa, as interpretações irrepreensíveis ou a maestria da direção. A despeito desse fato, seria justo apontar este último item como o mais proeminente, pois a obra veio a se tornar referência entre os melhores filmes noir de todos os tempos. Pacto de Sangue é fundamental para a consolidação de certos aspectos que caracterizam esse estilo de fazer cinema. O primeiro, logicamente, é a deliberada exploração do escuro, por meio de recursos de filmagem e fotografia, com excepcional exploração de grandes contrastes de luz e sombras — além da predominante seleção de cenas noturnas. Outro é a presença da femme fatale, personagem loira, sedutora e de intenções um tanto sórdidas, capaz de tudo (geralmente mais bela que a nada esplêndida Barbara Stanwyck). É também um traço noir o fato de o protagonista, ao se ver perante uma encruzilhada moral, escolher o “mau caminho”, movido por desejos concernentes à luxúria e à ganância.
Por abordar a questão da sexualidade e a da violência nos remotos e ainda conservadores anos 1940, o film noir possui também uma relevância histórica. Revela uma mudança na forma de ver fatos sociais presentes no cotidiano das cidades contemporâneas, do qual golpes, como o de Phyllis e Neff, fazem parte. De certo modo, ainda reflete o contexto conseqüente à grande crise econômica de 1929, em que, nos Eua, crescia o crime organizado, tornando-se um meio rápido de ascensão social. Assim, a moral maniqueísta, com a divisão simplista entre “bons” e “maus”, dá lugar à decadência e a ambigüidade dos personagens. O que pode ser visto na relação do casal vil de Pacto de Sangue.
Um suspense que revela assassino e vítima numa das primeiras cenas sem, no entanto, atenuar a tensão nem deixar de ser suspense é, por si só, digno de nota. Um filme que prescinde do quê para se concentrar no como, na forma como a trama se desenvolve — e o faz com qualidade —, tem de ser respeitado. Em Pacto de Sangue, Billy Wilder consegue isso (e mais) de uma forma tão bem feita que lhe rendeu elogios de Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, que afirmou — logo após assistir ao filme — ter finalmente encontrado alguém capaz de fazer par à sua obra.
Pacto de Sangue serviu de parâmetro para uma série de filmes noir. Está presente em qualquer lista de 10 melhores filmes deste gênero, provavelmente no topo. A propósito de premiação, foi eleito pelo American Film Institute um dos 100 maiores filmes do cinema americano. Não por acaso. Nem o relativamente baixo orçamento para a produção do filme pôde comprometer a qualidade final. A pouca verba, aliás, explica a utilização de poucos ambientes de filmagem e, também, inicialmente, a escassez de luz, o excesso de escuridão. Contudo, sem dúvida, o fato de essas terem se perpetuado como características do film noir não se explica por questões financeiras, mas, sim, pela influência direta de filmes como Pacto de Sangue, tão obscuro quanto brilhante.