sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"O ano passado em Marienbad" por Helena Alencar







O mote é, aparentemente, banal – o reencontro de um casal de amantes, um ano após se conhecerem, no mesmo hotel. O ponto de vista é tudo. Ao contar tal história lançando mão de todos os recursos possibilitados pelo vídeo, Resnais constrói o reencontro enquanto, simultaneamente, revela lembranças do fato ocorrido. Na contramão na linearidade temporal, expõe o presente e deixa dúvidas sobre o passado. Aquele encontro realmente aconteceu? O homem insiste em convencer a mulher, que nega freneticamente, permitindo-se, contudo, eventuais momentos de contemplação que nos fazem considerar veracidade na insistência do suposto amante. E as cenas passam diante dos olhos dos espectadores sem preocupações lógicas ou cronológicas.

Talvez o pensamento livre de cobranças pelo encontro de um significado seja o pressuposto essencial na contemplação e compreensão da obra. Os eventos se sucedem, à primeira vista, desconexos e nada coesos. As falas dos personagens se repetem – ele garantindo que já se encontraram, contando passagens dos momentos que viveram juntos, mostrando fotos, exigindo que ela recorde; ela negando, pedindo que a deixe em paz. O filme é a ótica dela. Sua confusão interior transparece na mistura de imagens – a mesma cena ocorre em locais diferentes, com figurinos distintos, às vezes, a mesma situação tem desfechos variados. O contraste se faz, então, essencial na revelação da quebra de linearidade proposta pelo diretor. Roupas pretas ou escuras aparecem em momentos que remetem ao presente, o branco é a cor predominante nas memórias do ano anterior. Mesmo esse fio de lógica, entretanto, se desvanece no desenrolar do filme. Ela não sabe mais o que foi ou o que é, não percebe o que houve ou o que ela imagina ter havido, não sabe se crê nele ou não, é, aos poucos, convecida. E o jogo de imagens traz ao espectador todas as suas dúvidas. O homem mente?

O marido é mero figurante. E os figurantes pouco falam, em verdade qualquer gesto seu é solicitado pelos protagonistas e entra como complemento a ação da cena. O filme é organizado aos moldes dos pensamentos, se é que há, neles, qualquer ordenação. Algo que nos remete, inevitavelmente, ao conceito de “fluxo de consciência” associado à obra de Clarice Lispector – mistura de memórias, idéias e uso de linguagem que percorre os caminhos cheios de idas e vindas, curvas e atalhos, do pensamento.

Abrem-se também, durante o filme, múltiplas possibilidades de explicações metafóricas ou figurativas. O jogo, que o amante sempre perde e o marido sempre ganha, a estátua – o homem protege a mulher de algo ou ela o alerta para qualquer coisa?-, as fotos, inúmeras, que aparecem na gaveta da mulher, como se, repentinamente, encontrasse as recordações produzidas pelo amante, outrora escondidas.

Em O ano passado em Marienbad, Alain Resnais abre mão do conteúdo em prol da forma – e ela é, sem dúvida, o que dá densidade ao filme. A fotografia clássica, a montagem e as técnicas inovadoras associadas a uma temática recorrente em sua obra – a memória – convergem em uma película que se tornou um marco da nouvelle vague. O segredo é se deixar levar.

"A história de um amor que se viveu sozinho" por Paulo C. S. de Azevedo


O filme todo parece um fluxo de consciência, talvez essa impressão fique tão marcante por causa da narração do personagem principal durante toda a história. Além do narrador, existem apenas mais dois personagens relevantes: a mulher, à qual o narrador faz referência constante; e o seu acompanhante no hotel no qual a história se passa.

Os cenários são sempre muito bonitos, grandes salões, jardins, sacadas, corredores. As pessoas também são elegantes, elegância apropriada à festa onde estão. No entanto, a festa que é vista no filme não parece acontecer. Os sons que uma festa normal teria, a música da banda, ou até mesmo as conversas das pessoas, tudo se passa em silêncio, sem nenhum som. Ou pelo menos sem nenhum som diretamente ligado à imagem, já que a música da banda às vezes aparece como parte da trilha sonora, por mais que ela não esteja presente.

A impressão que se tem é que as pessoas do filme, fora, obviamente, os três personagens principais, fazem parte apenas da composição da imagem, quase como se fossem elementos cenográficos. Seus diálogos, suas ações, nada parece ter relevância na história.
História essa que, do meu ponto de vista, é retratada exatamente como quando nós nos lembramos de um amor do passado. Nós provavelmente não lembramos das pessoas que estavam na festa, nem dos assuntos sobre os quais falavam, mas sabemos o que falamos com quem amávamos no momento. É isso que o filme retrata, e retrata do mesmo jeito que a lembrança, com diálogos confusos, repetidos e organizados de uma forma não-linear. Só são retratadas as cenas, os diálogos e os sons que foram importantes para o personagem principal.
Os diálogos fazem referência ao ano anterior ao qual se passa a história. O narrador insiste que encontrou-se com a mulher nesse determinado ano, e que ela lhe pediu para que esperasse por mais um outro. No entanto, a mulher não parece lembrar-se do narrador no princípio do filme, por mais que sua postura vá mudando ao longo da história.

Esse é um outro indício do fluxo de consciência retratado no filme, onde o personagem principal tem problemas em relatar o que realmente aconteceu, já que, como na maioria das paixões antigas, é difícil de separar o que aconteceu dos desejos sobre o que deveria ter acontecido. Como quando, antes de deitar, ficamos nos perguntando o que poderíamos ter feito de diferente, ou o que poderia ter acontecido diferente.
Além das declarações do narrador, fica clara a paixão que ele sentia também através das imagens. O figurino e a maquiagem da mulher são sempre mais marcantes do que os das outras personagens. Sem contar que não são figurinos comuns, são sempre mais extravagantes e com cortes diferentes; a atenção dada, não só pelo narrador, mas por todos os personagens, em relação à mulher é diferente das outras mulheres da festa. Como se ela fosse a única que importasse.
No fim das contas, se trata, mesmo, de uma história de amor. A história em si não é muito
diferente dos amores hollyoodianos, nem o filme, visualmente falando. A real diferença entre O Ano Passado em Marienbad e os outros filmes de amor é a forma que a história é contada, sob a ótica exclusiva do personagem principal. Diferentemente de Hollywood, a história não é contada, e sim sugerida pelo que se passa pela cabeça do narrador. E por mais que exista uma narração, o personagem não conta a história, é como se ele apenas se lembrasse dela.

"Faces" por Hugo Carneiro Coutinho


O homem é o ponto de partida para Faces, de John Cassavetes (1968). Richard Frost, ou Dickie (John Marley) é um empresário de sucesso que vai tentar um investimento no ramo cinematográfico. É casado com uma bela mulher (Maria Forst, vivida por Lynn Carlin) e mantém relacionamento com uma prostituta de luxo, Jeannie (Gena Rowland). Faces é o primeiro filme do diretor que aborda o tema conflito de casamento, que seria repetido em vários de seus próximos filmes. Paralela e concomitantemente, trata da vida íntima de personagens da high society americana. No final das contas, discute amizade e solidão, da forma mais crua possível.

A introdução de Faces mostra Dickie recebendo um grupo de empresários lhes oferecendo um produto, que é um filme. Eles então começam a tergiversar sobre otal produto, para convence-lo a patrocinar a empreitada, uma clara ironia à produção independente a qual o filme está inserido. Um deles diz que é a “Doce Vida do cinema comercial”, e o outro nega, dizendo que todos já perderam muito tempo falando de números (referência às tramas fragmentadas de tantos diretores), e que agora procuravam algo mais sincero, mas também bem feito. Após todas as considerações, o filme começa.

Em Faces, cenas longas, poucos cortes e diálogos precisos tiram o fôlego do espectador. Cassavetes vem da tradição do teatro e ele mesmo atuava nos palcos antes de começar escrever e fazer filmes. Daí justifica-se a digníssima direção de atores, provavelmente muito ensaio e entendimento do texto incidental. Há cumplicidade, sendo ele muitas vezes amigo de quem representa seus personagens. O exemplo mais notável é a deslumbrante Gena Rowland, que trabalhou nada menos que dez vezes com o diretor.

A crueza do filme se traduz em sinceridade. Através dos diálogos é possível identificar-se com facetas de praticamente todos personagens, porque eles são tão reais. Não dá pra encontrar um supérfluo dentro da trama. Apenas eles estando em cena, lhes são revelados características íntimas. Isso é uma constante.

Dickie é um homem rico visto de perto, em sua vida fora do trabalho. Tem um senso de humor incrível, mas guarda consigo angústias que são só suas. Mantém um casamento aparentemente estável e sem filhos, com uma mulher bem mais jovem. Extravasa na bebida, mas sabe beber, e tem em Jeannie sua parceira e amiga. A bebida, inclusive, perpassa todo o filme, trazendo à tona as vontades e sentimentos mais latentes de cada figura.

Em um de seus extensos diálogos, Dickie fala que amigos nunca se levam a sério. Os personagens nunca são quem eles mostram ser à primeira vista e é fascinante descobrir quem é cada um a cada minuto do filme, e de perto. Cassavetes abusa usa closes. Como Bergman, seus filmes têm poucos personagens, e no caso de Faces, as filmagens são praticamente todas em ambientes internos, geralmente interior de casa, mas diferentemente do diretor sueco, seu cinema é o mais real cotidiano que surreal. Cassavetes tem o ímpeto de ser mais realista ao dizer que tudo é filme antes do filme começar, fazer uma avaliação de sua obra antes de mostra-la, e deixar avisado que tudo é real, verossímil e possivelmente causará angústia em um casal de meia idade qualquer.

"Viva a futilidade!" por Roberta Dornelas


Uma loira, bela , glamourosa e ingênua prostituta de luxo, vivida por Marilyn Monroe. Essa é a personagem principal do filme Bonequinha de Luxo que passava na mente de Truman Capote. Ao escrever o romance Ao Começo do Dia, em 1958, Capote tinha uma idéia precisa de como aquela novela poderia ser adaptada ao cinema. Alguns anos mais tarde, porém, a Paramount adquiriu os direitos para filmar a obra e a escolhida foi a jovem e menos famosa Audrey Hepburn.

Bonequinha de Luxo (1961) conta a história de Holly Golightly, moça que ganha a vida sendo acompanhante de homens ricos e vive com a esperança de que possa encontrar, entre eles, seu futuro marido milionário. Holly é uma jovem bem amalucada que possui um apartamento bagunçado, um gato sem nome e tem como hobby tomar café da manhã admirando as peças da joalheria Tiffany’s. Certo dia, um novo vizinho aparece em seu prédio. Era Paul Varjak, escritor que possui apenas uma obra e que tem como fonte de renda uma rica senhora casada, a quem “acompanha”. Holly e Paul começam como amigos, mas logo se apaixonam e ela tem que tomar uma difícil decisão: ficar com o pobre homem que ama ou continuar em busca de um marido rico.
A estranha escolha de Audrey Hepburn para o papel de Holly Golightly não podia ser mais acertada. Todos viam em Audrey apenas uma moça esguia de rosto angelical. Até a própria Audrey tinha suas dúvidas quanto ao papel. “Eu não tinha nada a ver com ela, mas eu sentia que podia interpreter Holly. Eu sabia que o papal seria um desafio, mas queria de qualquer forma. Sempre me pergunto se me arrisquei demais.” disse Audrey. O diretor Blake Edwards, no entanto, conseguiu extrair da atriz uma personagem inigualável. Ao final do filme, é preciso parar e pensar bem para lembrar que Holly é, na verdade, uma prostituta. O look cheio de glamour e, ao mesmo tempo, de inocência de Audrey transformou a personagem de Truman Capote numa verdadeira princesa.
Uma curiosidade desse filme é a parceria de Audrey Hepburn com o estilista Hubert de Givenchy, iniciada em 1954 durante as filmagens de Sabrina, do diretor Billy Wilder. O engraçado é que, para Givenchy, tudo começou com uma pequena decepção. Foi dito que a “Srta.Hepburn” viria vê-lo e ele esperava encontrar a famosa, ganhadora de vários Oscars, Katharine Hepburn. Após a decepção, porém, Givenchy encontrou em Audrey a musa perfeita, e a parceria entre os dois durou até o fim da vida da atriz. O trabalho do estilista em Bonequinha de Luxo ficou famoso. Mesmo que não se saiba que é de Givenchy, mesmo que nunca se tenha visto o filme, não há quem não conheça o pretinho básico e a elegância do visual de Holly Golightly.

Capote pode não ter achado que o filme fez jus ao seu romance. Bonequinha de Luxo é, porém, um filme adorado por milhares de pessoas. Talvez por ser desprovido de segundas intenções, cenas chocantes, conteúdo político ou dramas profundos. É uma verdadeira “ode à futilidade”, uma obra cheia de humor. Um humor que chega a ser bobo, como é o caso do personagem Sr.Yunioshi, um vizinho a quem Holly vive importunando para abrir a porta, pois ela sempre perde suas chaves. É, sim, um filme fútil e bobo. Ainda assim, um filme que diverte, que ditou modas que duram até hoje e que fez de Audrey Hepburn uma atriz inesquecível. Afinal, quem poderia, hoje, imaginar Marilyn Monroe interpretando nossa adorável bonequinha de luxo?

"Saudações a Antoine Doinel" por Fellipe Fernandes


Em fevereiro de 1968 – o ano em que tudo aconteceu – Truffaut filmou Beijos Proibidos, terceira aparição do incompreendido Antoine Doinel, personagem vivido por Jean-Pierre Léaud em Os incompreendidos (1958), Amor aos vinte anos (1962) e Domicílio Conjugal (1970). Nesse mesmo fevereiro Henri Lamglois foi destituído do seu cargo na Cinemateca Francesa. Daí em diante aconteceria em Paris a grande revolução da segunda metade do século XX: liderado por estudantes, o episódio de maio de 1968 é o símbolo maior dos jovens daquela geração. Esperava-se então que François Truffaut, membro do Conselho de Administração da Cinemateca Francesa, materializasse essa inquietude revolucionária no filme que estava gravando, tendo em vista que o protagonista fazia parte de tal geração, ao menos de acordo com sua faixa etária. Mas Truffaut estava em busca daquilo que vai além do contemporâneo.

Certa vez ele afirmou que Antoine Doinel era ele mesmo até o momento que o entregou a Jean-Pierre Léaud, com isso o personagem tomou vida própria. Em Beijos Proibidos vemos a saída de Doinel do serviço militar e sua carreira como detetive particular, condição que o faz viver acontecimentos únicos. O filme encontra sua graça na poética melancolia da vida de Antoine, que parece estar sempre a procura de seu lugar – aí também reside a tristeza da história, já que um espírito errante como o do jovem Antoine Doinel jamais será compreendido. Assistimos a um filme de personagens, pois esses prevalecem às situações, aos fatos e ao enredo: entendemos a história através de sensações.

Beijos Proibidos não é moderno, uma vez que o verdadeiro desejo de Truffaut é eternizar seu olhar sobre o mundo. Sendo assim ele faz uma obra embriagada de nostalgia, sobre uma juventude que sempre existirá mas que nunca será verdadeiramente nova. Uma nostalgia melancólica como aquela música inicial que pergunta numa melodia suave o que restará do nosso amor. Assim também faz Truffaut com Antoine Doinel, ele aprecia os olhos inquietos dos jovens de todas as eras e pergunta, num suave longa-metragem : o que restará da nossa juventude?

"Reflexões a partir do luxo da bonequinha" por Breno Lemos Pires



Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) — adaptação cinematográfica do livro homônimo de Truman Capote — é uma mistura de drama, comédia e romance estrelada pela magnífica Audrey Hepburn e que faz enorme sucesso com o grande público. Imersa em um mundo de inocência, ambição, superficialidade e muita sofisticação, Holly Golightly (Audrey) — jovem que largou a família no interior para ganhar a vida em Nova York — torna tenros os corações mais duros. O filme, em que pese seu tom brando, dá ensejo a temas mais interessantes, e a reflexão a partir dele pode ser — ao contrário da protagonista — mais profunda. E mais proveitosa.

A quase totalidade dos textos concernentes a Bonequinha de Luxo invariavelmente trata do glamour e da sofisticação de Audrey Hepburn. De fato, é quase impossível não tocar nesse assunto, dado o encanto etéreo que a atriz naturalmente exala, capaz de inebriar mesmo os espectadores mais sóbrios. Deve-se a isso, em grande parte, a existência de uma espécie de culto a Audrey Hepburn — que personifica a genuína elegância feminina — e, do mesmo modo, a Holly e a Bonequinha de Luxo. Esses alvos de adoração são como que instituições da sociedade ocidental contemporânea, a qual necessita de ídolos para fomentar o ideário capitalista e liberal. Nesse contexto, certamente é conveniente prestar tributo esses mitos.

Em certa medida, os ideais e os sonhos nada modestos de Holly Golightly extrapolaram as telas e penetraram no imaginário da sociedade ocidental contemporânea. Filmes como este — por sublimar assuntos polêmicos mesmo em uma época em que o conservadorismo puritano era mais repressor e, ainda assim, repercutir satisfatoriamente — tiveram papel relevante no processo de libertação sexual e psicológica das mulheres que estava em curso desde a metade do século XX. Além disso, contribuíram para consagrar o papel e a compreensão do luxo nessa sociedade.

O fato de a palavra luxo ter, como acepções atualmente predominantes, “magnificência” ou “aquilo que apresenta especial conforto” — e ser considerada algo benéfico, algo que envolve méritos, sinônimo de sucesso — revela, por si só, o quanto ele é desejado pelas pessoas. Luxo também quer dizer “coisa dispendiosa ou difícil de se obter, que agrada aos sentidos sem ser uma necessidade” ou “o que é supérfluo, que passa os limites do necessário”; ainda assim, é a outra definição — a que compreende essa palavra como algo benéfico — que prevalece no imaginário coletivo, para o qual Bonequinha de Luxo é como música para os ouvidos.

Foi o conceito de luxo que se transformou? Não por si só. O provável é que tenha sido transformado pela redefinição de um termo que lhe determina o sentido: necessidade. Séculos após as grandes navegações, muitas especiarias e iguarias de terras distantes, outrora artigos de luxo, tornaram-se parte do cotidiano urbano, graças à expansão do mercado global. Mais recentemente, com o universo do consumo e da moda — reforçado por filmes como Bonequinha de Luxo e O Diabo Veste Prada — incidindo implacavelmente sobre as mentes das pessoas, estas se encontram diante de novas necessidades, antes supérfluas.

Talvez seja justamente pelo fato de o simples, o mediano e o modesto não mais serem o bastante que palavras como medíocre e vulgar, embora polissêmicas, têm sido utilizadas predominantemente no sentido pejorativo, em detrimento dos outros significados divergentes que carregam em si. O termo medíocre, por exemplo, não necessariamente implica “pouco talento, pouco valor”, mas assim é usado no dia-a-dia; as acepções “médio”, “mediano” e “que está entre bom e mau” são parcamente utilizadas.

Outro ponto presente em Bonequinha de Luxo digno de reflexão é a questão do desapego às paixões como forma de resguardar a liberdade. O que é muito mais representativo da personalidade de Holly. Ela se considerava livre e selvagem e via o amor como uma jaula, por isso não dera nome ao gato que criava nem mobiliara a própria casa, ciente de que poderia, subitamente, ter de partir, deixando para trás o passado recente — o que, decididamente, faria, assim conseguisse conquistar um milionário que a levasse ao altar.

Não obstante o desapego ao universo ao redor, havia duas exceções: a Tiffany’s e seu irmão Fred Só uma visita à joalheria que admirava podia dissipar-lhe as névoas de um dia “red”, ou seja, em que “você tem medo e não sabe de quê”. A Tiffany’s era o único lugar onde seu espírito errante poderia repousar. Por sua vez, o apego ao irmão Fred, militar servindo o exército, era tão grande, que ela, mesmo em uma relação de quase-paixão com o escritor-gigolô Paul Varjak (George Peppard), apelidou-o de Fred.

Numa cultura que superestima o superficial e em que o excesso urge, Bonequinha de Luxo sempre gozará de grande prestígio. Contendo elementos latentes no ideário feminino que encantam também os homens, é ameno o suficiente para não despertar críticas mais ácidas. Com o imprescindível suporte de Moon River — uma das mais famosas canções da história do cinema mundial, composta pelo multipremiado músico Henry Mancini e por Johnny Mercer especialmente para Audrey —, o filme cativa o público, mimando crianças e acalentando sonhos da juventude esquecidos pelos mais crescidos, na correria do dia-a-dia. Enfim, embalando momentos de entretenimento agradável. Necessidades supérfluas? Quem se atreveria a dizê-lo?

“Jamais serei como você. Eu mudo o tempo todo” por Diogo Guedes Duarte da Fonseca


Persona, um filme de 1966, é muito mais do que qualquer voz individual poderia dizer. Não é sobre o homossexualismo, não é sobre o silêncio, não é sobre a culpa, nada disso e tudo isso. Nem mesmo o diretor de uma obra como essa tem o direito de esgotar seus significados: e olhe que ele não é nada menos do que Ingmar Bergman.

Antes de tudo, Bergman em Persona governa um ritmo. Os cortes frenéticos iniciais incrivelmente não destoam dos calmos e intensos diálogos ou das cenas silenciosas: são uma quebra antes mesmo do estabelecimento da “normalidade” do filme. Nada da obra é corrido ou lento demais, cada acontecimento e seu tempo estão medidos para obter o efeito desejado. O silêncio é um tipo de ritmo da obra, assim como também é uma estética, uma voz e o espaço de presença do espectador. Mas do silêncio há muito a falar.

Alma (Bibi Andersson) é uma enfermeira que foi designada para cuidar da ex-atriz Elizabeth Vogler (Liv Ullmann). Elizabeth decidiu não mais falar desde um incidente enquanto se apresentava em uma peça. Alma, ainda que fragilmente, transborda confiança e simpatia, enquanto a ex-atriz tem um semblante melancólico e perdido, ainda que na verdade não seja nada frágil. No filme, o silêncio de uma mulher se comporta como a antítese das constantes confissões da outra: Alma mesmo quando sozinha, continua falando.

O silêncio estrutura quase tudo. Os diálogos e a cumplicidade se estabelecem a partir da condição inicial de silêncio, e ele significa mais do que se calar: é uma rejeição ao mundo “encenado”. O convívio social típico, o marido, o filho, falar: tudo é um teatro que repetimos incessantemente, um constante parecer, não um ser. Alma interage justamente com esse isolamento de Elizabeth, vivendo uma verborragia. A relação das duas se desenvolve e beira em certos momentos o romance, de uma forma tão sutil que permite ao espectador imaginar parte da história. Felizmente, esse recurso é empregado diversas vezes no filme com maestria.

O filme diversas vezes remete a acontecimentos anteriores na vida das personagens, no entanto Bergman não organiza flashbacks convencionais. Excetuando a cena de Elizabeth no teatro – onde, ainda assim, a narração exerce a função de completar o sentido – todas as voltas ao passado são narradas, recurso considerado pobre para alguns diretores, que prefeririam sempre mostrar imagens que descrevê-las. Quando Alma vai contar sua experiência de uma “orgia”, a narração do acontecido não só preenche o vídeo como se fosse uma imagem, mas também acrescenta à lembrança a dor que Alma passa no momento que se recorda. A culpa e as lembranças, temas recorrentes do diretor em outras obras como “Morangos Silvestres”, são também uma marca forte do filme, que não pára para se dedicar aos sentimentos, mas os aborda profundamente sem que percebamos. Para todas essas construções do filme, como o silêncio, as sutilezas, as narrações e a culpa, contribui a excelente interpretação das duas atrizes: uma se compondo no silêncio, outra nas dramaticidades milimétricas.

Outra cena que mostra o encontro perfeito de um excelente roteiro, uma genial direção e grandes atuações é quando Alma narra para Elizabeth a história do ódio da ex-atriz por seu filho. O diálogo, que surpreendemente começa com Alma dizendo “Me conte, Elizabeth. Bem, então eu contarei”, tem duas perspectivas: a de quem conta e de quem ouve a própria história. Bergman, repudiando a possibilidade de sucessivos entrecortes mostrando a face de cada uma, passa a cena completa duas vezes: uma, com o rosto de Elizabeth testemunhando, outra com Alma contando-a. Além de um lirismo, há uma grande simbologia por trás dessa construção: Alma é parte de Elizabeth, já que narra com propriedade seu passado? Ou a ex-atriz fala por meio dela? E nós os espectadores somos Elizabeth, ouvindo alguém narrar uma história para tomarmos como nossa?

Essa confusão de quem é quem ou do que é cada coisa é talvez a maior concretitude do filme, o que mais perto chegaria de uma “definição” da obra. Em certo momento, parece-nos que Elizabeth simplesmente não fala porque tem a enfermeira para falar por si ou para falar através dela. Não são duas pessoas diferentes: são duas opções do mesmo eu: uma não que mais representar nessa vida, outra luta pela volta do eu para o mundo real. Numa ocasião, o marido cego de Elizabeth vem visitá-la e toma por engano Alma como sua mulher, que é encorajada pela ex-atriz a viver o fingimento. Um companheiro, mesmo cego, não conseguir identificar sua mulher certamente é um caso de uma semelhança enorme. Ou mais que isso: um caso de igualdade. Bergman posteriormente também junta uma metade da face das atrizes e as transforma em um único ser que incrivelmente parece harmonioso e comprova que, em sua ficção, elas são a mesma, numa cena belíssima.

Outra cena que se crava na imagem de qualquer um que veja Persona é a de Alma passando a mão em seu próprio cabelo ante o espelho. Como um fantasma da lembrança, aparece sobreposta a imagem de Elizabeth acariciando seu cabelo do mesmo modo. Não é só uma lembrança: é como uma represença, é o mais próximo da poesia que pode chegar uma imagem.
Por fim, essa obra-prima de Bergman ainda tem um certo toque metalingüístico nas cenas das películas rodando e em combustão, tanto no início como no fim do filme. Mas o que Bergman faz de melhor na obra é combinar simbologias amplíssimas e ao mesmo tempo sutis, um roteiro irretocável e grandes atuações com uma direção genial – com o perdão do exagero, pois não há como dizer menos. A fotografia, de Sven Nykvist, chegar a doer de beleza em certos momentos, juntando em uma mesma obra uma atmosfera sem muitos adornos, um ritmo indefinível e uma poesia imagética sublime. Persona é um clássico que todos e cada um devem ver porque nos faz buscar palavras para descrever o que sentimos ao ver o filme: a vontade de buscar certezas onde não as há, a pequena dor de ver o quanto representamos diariamente, as grandes culpas reprimidas, o silêncio constante que negamos, a beleza das imagens que não paramos pra ver e, finalmente, quem realmente somos nós e em quantos nos espalhamos e dividimos.

"Nas entrelinhas do silêncio" por José Bruno Marinho


Adepto e praticante de um cinema de sondagem psicológica, Ingmar Bergman é tido como um dos grandes mestres da arte cinematográfica devido à realização de obras-primas como Noites de Circo (“Gycklarnas afton”, 1953), O Sétimo Selo (“Det sjunde inseglet”, 1956) e Morangos Silvestres (“Smultronstallet”, 1957). No entanto, datam da década de 1960 as obras fílmicas mais experimentais desse cineasta sueco. E entre os filmes mais fascinantes de tal fase da trajetória cinematográfica de Bergman destaca-se, sobretudo, Persona (“Persona”, 1966). O filme – lançado no Brasil com o destoante título Quando duas mulheres pecam, que de tão péssimo e incoerente com o tema principal da história merece, no mínimo, ser ignorado – é um drama sobre o desespero, o silêncio e a solidão do homem. Com uma temática tão densa quanto pessimista, Persona convida os espectadores a descobrirem o terror indescritível que atinge a vida em todos os seus aspectos.

Nessa produção em P&B, Bergman nos apresenta Elisabeth Vogler (Liv Ullmann), uma atriz que, durante a encenação teatral da tragédia Electra, resolve emudecer. Devido ao seu mutismo total, isto é, em tempo integral e para com qualquer pessoa, tal personagem é internada numa clínica. Lá, fica sob os cuidados de Irmã Alma (Bibi Andersson), uma jovem enfermeira que recebe a missão de tratar de uma paciente que não está doente, e sim, apenas optou pelo silêncio. O tratamento de uma doença inexistente, obviamente, não se traduz em resultados concretos e, com isso, o conselho médico do hospital decide enviar a paciente e a enfermeira para passar algumas semanas em uma casa de praia numa ilha, a fim de encontrar no retiro assistido uma solução terapêutica eficaz para o inusitado caso clínico.

Elisabeth e Alma, uma vez isoladas na ilha, passam a desenvolver uma cumplicidade e uma intimidade crescentes que, com o decorrer da rotina e das conversas compartilhadas, resultam numa simbiose de personalidades e numa constante troca de identidades. Temerosa com a possibilidade de ter a sua personalidade diluída pela dos personagens que incorpora em sua profissão, Elisabeth opta por uma reclusão interna, na tentativa de recuperar a sua identidade original e verdadeira e de resgatar seu autoconhecimento. Irmã Alma, por sua vez, é uma mulher tranqüila, introvertida e sucinta nas palavras. O convívio forçado na ilha faz com que ocorra uma inversão de personalidades: a enfermeira, uma vez despida de seu uniforme, assume as características falantes e extrovertidas da atriz, e esta absorve daquela a introspecção de quem se comunica mais com gestos e olhares do que com palavras. É assim que ambas passam a manifestar as diversas facetas de uma única personagem: as personalidades de Elisabeth e de Alma se confrontam, se permutam e se fundem, transmitindo a idéia de que elas são partes complementares de um mesmo ser – conforme sugere o diretor na seqüência em que ele une o rosto das duas atrizes, juntando duas faces em apenas uma.

Persona propõe uma reflexão sobre a singularidade humana e sobre a condição terrestre do homem. Neste filme, Bergman nos relembra, por intermédio de imagens e monólogos igualmente soberbos, que a vida é inexplicavelmente cruel, uma vez que nos obriga a conviver com medos e ansiedade constantes, com sonhos não-realizados, com fracassos e frustrações. Em tal contexto, atos e palavras aparentemente incompreensíveis funcionam como verdadeiros gritos contra a escuridão na qual a solidão e a incomunicabilidade nos afundam. A personagem Elisabeth Vogler dispõe do desespero, mas não da coragem dos suicidas, e, portanto, se vê na necessidade imperativa de encontrar um outro meio de reagir à vida, a qual condiciona a certas renúncias a tentativa humana de preservar sua própria identidade. Opta, então, pela mudez, por confiar na vitória do silêncio, na capacidade da não-interação em imunizá-la do estilhaçamento de esperanças e ilusões que a vida e a realidade nos impõem. Mais do que um esconderijo, a apatia e a passividade da não-reação às palavras do outro tornam-se, para a atriz Elisabeth, um papel fantástico e, concomitantemente, salvador.

Percebe-se, então, que a temática central de Persona é o irrealizável sonho de existir de fato, ou seja, o desejo de viver através do “ser”, e não do “parecer”. É como se o filme – através dos complexos (e poucos) personagens, das situações de intensas crises e dos ambientes geralmente claustrofóbicos – questionasse a nossa passividade diante da falsa necessidade de adequação aos papéis sociais impostos ao longo da vida. Postura esta que, nos revela Bergman, é a principal responsável das pessoas terem se tornado indivíduos solitários, atormentados e indefesos. Persona é, enfim, um filme que nos descortina uma diversidade de interpretações. E que nos traz mais dúvidas do que respostas, mais sugestões do que certezas. Aqui, a única convicção possível é de que se trata de uma obra fílmica que esbanja arte, beleza e estímulos a inquietantes reflexões.

"Marienbad: imagem, interatividade e fuga" por André Antonio


Se O ano passado em Marienbad (1961, de Alan Resnais) fosse um filme comum, seu suposto enredo seria: uma mulher (Delphine Seyrig) que passa temporada de repouso num luxuoso hotel é abordada por um homem (Giorgio Albertazzi) que afirma ter vindo buscá-la para fugirem conforme ambos haviam combinado um ano antes naquele mesmo lugar. No entanto, vários elementos do filme perturbam essa trama aparentemente simples.
Em primeiro lugar: a mulher afirma não conhecer o homem nem lembrar de nada. “Deixe-me em paz, eu lhe peço”, chora ela, angustiada, para ele. E ainda assim sua expressão atordoada, seu olhar distante e seus suspiros inquietos talvez façam nos façam pensar que ela se lembre sim, mas reluta em admiti-lo.

“Talvez”. É a palavra-chave desse filme ambíguo. A história é narrada pelo homem repetitivamente, nostalgicamente, melancolicamente, enquanto a câmera passeia devagar pelos corredores barrocos do hotel. Parece um devaneio. Mas o eixo principal do filme é justamente essa incerteza entre fantasia e real. E não só a voz do homem é responsável pelo clima onírico. Alan Resnais tira da manga uma infinidade de truques estéticos que contribuem para isso.
A trila sonora perturbadora, por exemplo: um órgão estridente toca de forma insólita mesmo quando os personagens estão ouvindo a um concerto de violino. Também, enquanto a câmera passeia lentamente, as elegantes pessoas nos salões e corredores no hotel param, congelam. Depois voltam a conversar suas futilidades, mas nunca se ouve o desfecho das conversas – elas se perdem nos tetos altos entre os candelabros do hotel.

Contudo, a maior responsável por essa ambigüidade foi a forma como o filme foi estruturado: em três “linhas-patamares” principais que o tempo todo se interpenetram fluidamente. A linha da narração, quando se ouve a voz do homem e se passeia pelo hotel; a linha com as cenas em que eles - o homem e a mulher – conversam (aquele sempre tentando persuadi-la que de fato eles haviam combinado fugir); e a linha com as cenas de evocação – em que se mostra o que teria acontecido um ano antes.

O poder da imagem vai crescendo conforme o filme passa de um patamar a outro. No primeiro, o que mais importa é a linguagem falada – presta-se mais atenção ao que narra o homem. No segundo, palavra e imagem estão num mesmo plano: quer-se ouvir o que o homem tem a dizer à mulher e o que esta tem a lhe responder. E ao mesmo tempo se quer ver as reações dela, os gestos dela, os olhares dela, os meneios hesitantes dela. No terceiro plano, Alan Resnais estampa habilmente em nossa visão imagens de uma força surrealmente bela.

A maestria do filme está precisamente em que é impossível – e aí voltamos ao eixo principal da película – afirmar com certeza, ao se ver essas imagens da terceira “linha-patamar”, se os fatos realmente aconteceram; se são um sonho; se são produto da imaginação da mulher; se o são da do homem; se este é um dos fantasmas que povoam aquele hotel assombrado; etc; etc.
O ano passado em Marienbad foi todo costurado de modo a dar margem de múltiplas possibilidades de interpretação. É um filme, nesse sentido, “interativo”, e que por isso toca em cheio a sensibilidade do espectador contemporâneo, acostumado a escolher finais de programas de TV e a fazer seu personagem de videogame ter uma história própria.

Particularmente gosto de pensar que o homem de fato chegou ao hotel e, vendo a mulher, apaixonou-se. Para fugir com ela, inventa a mirabolante história do “ano passado”. Ela, de início hesitante, vai se envolvendo, construindo com a mente e a imaginação imagens advindas das palavras inebriantes daquele homem (imagens de composição clássica, linear, apolínea – expressão de quem por muito tempo conviveu com regras rígidas entre quatro paredes simétricas e limpas) e por fim toma a difícil decisão de fugir com ele.
Qualquer que seja, porém, a interpretação – qualquer que seja o caminho que o espectador trace para os personagens – o filme ainda assim se centra inescapavelmente na antiqüíssima temática da fuga. Fuga da prisão opressiva e rotineira da vida superficial em sociedade. Fuga para o desconhecido que sempre é estar acompanhado por um grande amor. Fuga das normas, emancipação da castração.

“Talvez seja picante também, mas só por acaso. É sobretudo agressivo, comovente, muito profundo e, no pior dos casos, promissor” por Mariana Alves


Domingo. 29 de fevereiro de 2004. Los Angeles. Teatro Kodak. Nesse cenário ocorria a setuagésima sexta edição da cerimônia de entrega do Oscar, um dos prêmios máximos do cinema. O ganhador do Oscar honorário pelo conjunto da obra já havia sido chamado, e Jim Carrey teria a honra de entregar tal prêmio a um grande diretor norte-americano: Blake Edwards, diretor de obras populares, como Victor ou Vitória (1982) e os sete filmes da série “pantera cor-de-rosa” (1963-1993).

Edwards foi, sem dúvida, responsável por uma quantidade razoável de “obras-primas”, mas nenhum outro filme conseguiu o mesmo reconhecimento se seu maior feito: Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961). Oferecendo como cenário uma Manhattan bem menos agitada e moderna que a qual nos acostumamos a ver nos filmes mais recentes, ele mostra a vida de Holly Golightly (Audrey Hepburn), uma jovem com problemas financeiros que trabalha como escort. O objetivo maior da garota é arranjar algum milionário que possa sustentar a ela e ao seu irmão, Fred, quando este acabar o período de serviço militar. As coisas mudam um pouco quando ela conhece seu novo vizinho, Paul Varjak (George Peppard), escritor que passa por um período de bloqueio e é sustentando por uma amante mais velha.

O filme tem um ar das comédias românticas às quais nos acostumamos tanto hoje: rapaz conhece moça, ambos se entendem perfeitamente, mas não se envolvem amorosamente por algum tipo de barreira – interna ou externa. Depois de alguns acontecimentos – alguns cômicos –, os dois acabam se desentendendo e, após lamentar a discussão, percebem que estão apaixonados. Ao final de mais uma série de conflitos, o casal acaba junto e feliz – à exceção de alguns casos. É mais ou menos isso que vai acontecer em Bonequinha de Luxo, somando uma característica especial: nesse caso os “mocinhos” não são pessoas ingênuas e honradas, são tipos marginais; ambos se prestam a praticar um certo tipo de prostituição. Hoje, após assistirmos a Uma linda mulher (1990) ou Moulin Rouge (2001), podemos não nos surpreender com isso, mas a sociedade de 1960 certamente o fez. A prova é que uma série de características do enredo original – um livro homônimo de autoria de Truman Capote – foram eliminadas no roteiro final, como a bissexualidade de Holly. O Paul Varjak literário, inclusive, é um homossexual que tem a vizinha como uma fonte de inspiração. As mudanças promovidas por George Axelrod no roteiro tiveram dois motivos principais: a adequação do papel a Audrey Hepburn, que ficou preocupada com a promiscuidade que o papel original emanava, e a tentativa de deixar o filme um pouco mais “familiar”, mais acessível a uma grande audiência.

O corte das partes mais polêmicas da história original de Holly Golightly não prejudicaram de modo algum a qualidade do filme. Bonequinha de Luxo é um filme leve, divertido e com relances de um humor pastelão – evidentes nas cenas da festa que a protagonista promove em sua casa e na construção do personagem do vizinho estressado da protagonista, o Sr. Yunoshi (Mickey Rooney), um asiático bastante estereotipado. Além disso, a trilha sonora da obra é impecável e ganhou dois Oscars – um pela “melhor canção original” do ano, Moon River – e um Grammy. Um pouco da desenvoltura original de Holly foi, inclusive, mantida: que mulher invade pela janela a casa do vizinho que acabou de conhecer trajando apenas um roupão e deita-se na cama com ele, que está despido?

O toque de sofisticação que emana do filme tem muito a ver com o figurino confeccionado pelo célebre estilista Givenchy – quem liga para o fato de uma garota falida estar usando roupas de alta costura? –, mas deve ainda mais a Audrey Hepburn. Elogiada mais pelo carisma e pela presença na tela que pela atuação em si, a atriz era modelo de vestir-se e portar-se de toda uma geração. Todas queriam ser como ela e como Holly, o que fez com que o estilo bonequinha de luxo invadisse os guarda-roupas das mulheres. O vestido preto original usado na abertura do filme foi, inclusive, a leilão e acabou arrematado pela “bagatela” de 807 mil dólares. Ao constatar a influência que Audrey e o filme exerceram sobre a década, fica difícil imaginar Marilyn Monroe no papel de Holly Golightly, como Truman Capote tanto queria.

Embora Bonequinha de Luxo não apareça no topo de listas dos “melhores filmes de todos os tempos”, ele é um dos filmes preferidos de um número grande de pessoas e um dos filmes menos criticados de que já tomei conhecimento. Sempre nos lembraremos com carinho da garota maluca que vivia num apartamento sem móveis, com um gato sem nome, deixava perfumes e batom na caixa de correio, cometia pequenos furtos inconseqüentes, tocava violão, usava janelas como portas, era incrivelmente linda e bem vestida, sonhava em casar com um milionário e decidiu dar uma chance ao amor. Bonequinha... é uma comédia romântica interessante, leve, gostosa de se ver, capaz de deixar um sorriso nos lábios de qualquer pessoa que se aventure a assisti-la – e todos têm o dever de fazê-lo.

Bilbiografia:
BERARDINELLI, James. Breakfast at Tiffanny’s. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://www.reelviews.net/movies/b/breakfast_tiffanys.html
BONEQUINHA DE LUXO. Adorocinema. Acessado em: 16 nov 2007. Disponívem em: http://www.adorocinema.com/filmes/bonequinha-de-luxo/bonequinha-de-luxo.asp
BONEQUINHA DE LUXO. 65 anos de cinema. Acessado em: 16 nov 2007. Disponívem em: http://www.65anosdecinema.pro.br/Bonequinha_de_luxo.htm
BREAKFAST AT TIFFANY’S: Bonequinha de Luxo. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://hapburn.tripod.com/breakfas.htm
FARIAS, Juliana. Bonequinha de Luxo. Café Colonial. 03 set 2006. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://cafecolonial.wordpress.com/2006/09/03/bonequinha-de-luxo/
FAUSTO, Juliana. Bonequinha de Luxo. Contracampo. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/71/bonequinhadeluxo.htm
GOMES, Moacir Moreira. Bonequinha de Luxo. A world apart. 04 jul 2004. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://moa.fezocaonline.com/archives/002081.html
LIMA, Tatiana. Bonequinha de Luxo. Colunas Diginet. 30 jun 2007. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://colunas.digi.com.br/tatiana/bonequinha-de-luxo/
ROCHA,José Roberto. Bonequinha de Luxo. Contracampo. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/74/dvdvhsbonequinhadeluxo.htm
SALDANHA, Beatriz. Bonequinha de Luxo. Cinema com rapadura. 28 ago 2007. Acessado em: 16 nov 2007. Disponível em: http://www.cinemacomrapadura.com.br/blog/2007/08/28/bonequinha-de-luxo/

"Simples, alienado, brilhante." por Roberta T. T. Dornelas



A vida não havia sido fácil. A infância, repleta de tristeza, sem conhecer o pai nem receber o amor da mãe; na adolescência, tornou-se ladrão e foi preso aos 16 anos. O jovem François Truffaut provavelmente não imaginava o futuro brilhante que o esperava. Com a ajuda de um amigo, tornou-se crítico de cinema e descobriu na arte um modo de mudar de vida. Alguns anos mais tarde, deu início à sua carreira como diretor de cinema com o filme Os Incompreendidos (1959), primeiro de uma série de cinco obras que contam a vida de Antoine Doinel, personagem criado para ser o alter-ego de Truffaut.

Os Incompreendidos narra a triste infância de Doinel (e também do próprio Truffaut). Foi seguido por Antoine e Collete e, em 1968, por Beijos Proibidos, considerado uma das obras-primas do diretor francês. Este último foi lançado numa época de grandes perturbações na França, com o país todo envolvido numa movimentação estudantil que dominava as ruas de Paris. Mas a obra de Truffaut se mantém distante de acontecimentos políticos e narra a vida quase monótona de Doinel, utilizando-se de fatos cotidianos da vida de um jovem alienado para construir uma narrativa romântica e com bastante humor.

O filme começa com a expulsão de Doinel do exército por mau comportamento. Desde o início, fica evidente a infantilidade do personagem, que não parece ter completado ainda sua transição da adolescência para a idade adulta. Sua ingenuidade (talvez alguns chamem de estupidez) o faz perder o emprego que arranja como porteiro noturno de um hotel. Logo depois, porém, consegue emprego numa agência de detetives, onde trabalha durante quase todo o filme. Antoine Doinel é o tipo de pessoa que não segue uma ideologia nem costuma trabalhar duro para conseguir o que quer. Tudo o que precisa é de tranqüilidade e não faz esforços além do necessário. Trabalha para comer e só.

Antoine ama uma jovem chamada Christine Darbon, que não demonstra ter muito interesse nele. Os pais de Christine parecem gostar mais do rapaz que ela mesma. Apesar desse amor, Antoine não resiste à sua forte veia de adolescente irresponsável e acaba em aventuras amorosas sem futuro. Primeiro, quando sai do exército e corre para os braços de uma prostituta; depois, quando vai trabalhar disfarçado em uma loja de sapatos (ainda em seu emprego como detetive) e acaba se envolvendo com a esposa de seu chefe, uma mulher bela e experiente, que o seduz até conseguir o que quer. Após essas experiências, entretanto, Antoine acaba descobrindo que prefere o conforto e a delicadeza de um amor adolescente a tórridos romances adultos, e volta para Christine, com quem viria a se casar no filme Domicílio Conjugal e se divorciar no último filme da série, Amor em Fuga.

Doinel não era um Don Juan, nem um revolucionário; além disso, Beijos Proibidos mostra uma fase pacífica e sem grandes perturbações de sua vida. Com um roteiro aparentemente simples, sem episódios muito significativos a serem narrados, Truffaut consegue ultrapassar o óbvio dos filmes que freqüentemente vemos e fazer uma obra interessante sobre a vida de um simples rapaz. Ele não precisou de catástrofes, crimes ou fatos bizarros. Afinal, para um grande diretor, pequenos acontecimentos bastam.

"Passageiro não-identificado" por Helena Alencar


Difícil imaginar um filme como Profissão Repórter atualmente. Suas imagens iniciais, a câmera passeando com o protagonista, David Locke (Jack Nicholson) por uma cidadezinha na África, pelas pessoas dessa cidade, negros retintos com turbantes brancos, as crianças assustadas, os guias duvidosos, uma imensidão desconhecida para o personagem, tudo isso leva a pensar, inevitavelmente, no tipo de filme que se faz atualmente na América Latina. Não na Europa. Esse cinema de interiores e subúrbios que placidamente capta realidades distantes das nossas e ganha notoriedade pelos seus retratos supostamente “fiéis” de sociedades marginalizadas. Contudo, não é essa a proposta de Antonioni, ainda que ele use de questões centrais da época em seus filmes.

Uma trama envolvente, talvez. Um recente companheiro de viagem de Locke, também de nome David, mas sobrenome Robertson, morre repentinamente no hotel onde os dois estavam hospedados. Locke, jornalista, casado, troca de identidade com ele, agora é Robertson e, descobre ainda, traficante de armas para a guerrilha daquele país. O cinema hollywoodiano vibraria com um roteiro como esse: cenas de ação, fugas tresloucadas, tiroteios, perseguições, mistérios, pistas, tudo que é solicitado pelos estúdios para garantir uma boa bilheteria sustentada por dublês e efeitos especiais. Mas não seria Antonioni, tampouco caberia na época de redescoberta e revalorização estética da qual ele fez parte. E o apelo à emoção, tão característico do cinema atual, em Profissão Repórter é quase nulo.

Continua o filme, para lá de suas proposições de trama e localização inicial cheia de elementos que poderiam ser utilizados para críticas políticas. A imagem domina. Locke, perdido no deserto, a paisagem transborda aos olhos: areia, céu e nada. Outras belas cenas virão ainda: ele de braços abertos em um bondinho na Espanha, visto de cima, como que voando livre... A menina, cujo nome não é mencionado no filme, interpretada por Maria Schneider, observando o longo caminho de ladeado por árvores que ambos deixam para trás – a explicação de David para sua necessidade de fuga. Retratos que convergem ao cerne do filme: fugir para libertar-se. Aí temos, enfim, o diretor.

Ao trocar de identidade com Robertson, Locke faz uma opção por abrir mão do seu passado, uma prisão composta por um trabalho difícil como repórter e um casamento mal sucedido. Ao conhecer alguém aparentemente livre, que viaja o mundo com seus “negócios”, que não deixa nada para trás, a identificação com seus desejos de mudança é imediata. A chance lhe é posta nas mãos quando Robertson morre; Locke muda a foto do passaporte, veste sua camisa, ocupa seu quarto no hotel - passa a ser Robertson.
O passado, no entanto, não se deixa ficar para trás tão facilmente. O produtor, para quem Locke trabalhava, procura por Robertson, supostamente o último a falar com o “falecido”; sua esposa entra na busca, descobre que seu marido não está morto. A polícia é envolvida e Locke se vê cada vez mais acuado pela vida que deixou. A personagem de Maria Schneider o acompanha, sempre com respostas simples aos seus problemas complexos demais. Viajam os dois por cenários que revelam a solidão de ambos naquele momento de fuga. Espaços amplos, estradas longas, lugares desconhecidos, o azul sobre suas cabeças, a imensidão. Eles mesmos tão ínfimos e pouco importantes, tão desejosos de ser e o mundo os perseguindo sem razão. Os dois são, ao mesmo tempo, o central e o irrisório, com esposa, produtor, polícia, guerrilha orbitando ao seu redor e o nada nas imediações.
Daí se compreende porque tão criticado o título em português. The Passenger, certamente, adequa-se melhor à condição do personagem, em transição de uma identidade para outra, de uma vida para outra, passageiro em um trem escolhido ao acaso e impulsivamente, mas cuja velocidade torna-se tal que é impossível pular. Pular, contudo, pode ser, enfim, o único modo de libertar-se de fato.

"O ano passado em Marienbad: quando o tempo é uma verdade inventada" por Fellipe Fernandes



A epígrafe do livro Água viva, de Clarice Lispector, traz algumas palavras de Michel Seuphor, crítico de arte especialista em abstracionismo: “tinha que existir uma pintura completamente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência”. É assim, como quem se deixa envolver por uma melodia, que devemos assistir ao filme O ano passado em Marienbad (Paris, 1961), cujo diretor, Alan Resnais, recusa-se a limitar sua arte à linearidade e leva sua obra ao extremo da linguagem cinematográfica.

O longa-metragem, um dos frutos da Nouvelle Vague, tem como narrador um personagem – o qual talvez se chame Frank, talvez não – que durante sua estadia num hotel tenta convencer uma bela mulher que eles tiveram um romance há exatamente um ano. Ela recusa-se a acreditar nesse encontro, negando o fato. O extraordinário se dá quando o filme afunda-se tanto na narrativa que as imagens tornam-se o próprio pensamento de Frank. Passamos então a acompanhar a história de dentro da mente do personagem, que, humano como todos nós, possui mais desejos e suposições que verdades absolutas. Assim, embarcamos numa viagem sem definições claras, onde o limiar entre o real e o irreal é tão estreito quanto o fio que nos protege do inconsciente. Ao assumir a temporalidade do pensamento de um personagem, Resnais abre mão da linearidade narrativa e temporal e cai na lógica instintiva da mente humana, assumindo os riscos e falhas que a própria memória pode cometer. Como acontece na literatura, acompanhamos aqui um fluxo de consciência. Nada é certo e preciso em Marienbad, são apenas indagações e incertezas.

Para contrapor tanta imprecisão narrativa, o filme tem seus quadros meticulosamente estruturados. Tanto o contraste entre o preto e o branco quanto a própria composição dos quadros seguem uma estética formalista. Usam-se, então, com sucesso, todos os recursos capazes de tornar a fotografia do filme a mais bela possível. Brinca-se com retas e curvas, com o preto e o branco, com realidade e projeção. Essa última dicotomia se dá através de espelhos que permeiam todo o cenário. Em certos momentos a própria personagem parece ser parte do cenário destinada apenas a compor o quadro, tornando-o ainda mais belo.

As imagens, juntamente com a trilha sonora e a narração, parecem levar o espectador a um estado de espírito: é um filme de sensações e climas, que para cumprir seus objetivos abre mão da lógica. Ao descrever o hotel onde se passa todo o enredo o narrador repete várias vezes a mesma frase, mostrando assim o quão enfadonho e solitário são aqueles inúmeros corredores. Não importa para ele repetir a frase, saindo então da progressão convencional, porque ele não quer ser entendido – ele vai além: ele quer que os espectadores sintam o que ele está falando. Por isso deve-se assistir como quem ouve uma melodia, sem buscar lógicas ou convenções, apenas sentindo o filme.

Marienbad atinge um dos limites da linguagem cinematográfica. Belas imagens, seguindo uma estética formalista, e texto cuidadosamente pensado e igualmente belo, resultam em algumas das mais belas cenas da história do cinema, que se extraídas uma a uma poderiam fazer parte dos mais convencionais filmes franceses. No entanto, um outro elemento cinematográfico é nesse filme explorado de maneira singular: o tempo. As cenas acontecem fora de ordem, seguindo, supostamente, a ordem que aparecem na mente do personagem – um tempo próprio e único – que entra em contradição com o próprio texto. O tempo aparece também como tema do filme, já que muitas das conversas giram em torno do que teria se passado há um ano e o que aconteceu nesse intervalo. Além disso, é um importante elemento para construção do filme, tendo em vista a importância das lembranças.

A certa altura do livro Água viva, Lispector diz : “não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas o que é passível de fazer sentido. Eu não: quero a verdade inventada. E o que te direi? Te direi os instantes.” O ano passado em Marienbad fala dos instantes: os instantes vividos, revisitados pela memória; os instantes presentes e passados transformados cenas que são por si só obras de arte completas; os instantes que se eternizaram nos corredores e jardins daquele hotel, como estátuas imóveis que recusam-se a acompanhar os verões. Mas não são apenas os instantes que compõem o filme. Resnais vai além e inventa uma realidade – confusa como o espírito de um vanguardista, porém livre e completa – como a obra que cria e através da qual atinge o real.

E todos esses instantes se misturam numa das maiores obras de arte do cinema, sendo o tempo, a grande verdade inventada, o maior responsável pela confusão dos instantes. Afinal, parafraseando Clarice, “nessa história o tempo é quanto dura o pensamento”.

"Meretrício de luxo" por Manoel Pires Medeiros Net


Sofisticação e delicadeza misturam-se à temática pesada em obra-prima de Edwards

Nem tudo que parece, de fato, é. Filosofias clichês da ‘psicologia’ da auto-ajuda, como essa, reproduzem-se alucinadamente esquinas afora. Mas, sempre há de se concordar. O que você imaginaria da mistura que contém um roteiro baseado num texto de Truman Capote, direto e pessimista, e uma protagonista prostituta, que vive em Nova York, sonhando em dar o golpe do baú? Bonequinha de Luxo, longa-metragem de Blake Edwards, lançado no início da década de 60, endossa a verdade do ‘mantra’ citado acima. Do vulgar ao pueril, requintes de um clássico cinematográfico.

A história de Capote, Ao começo do dia, lançada em 1958, é a principal fonte de inspiração do filme, estrelado por Audrey Hepburn, atriz consagrada em Hollywood devido às suas personagens recatadas e encantadoras, o que contrariou o desejo do escritor, que preferia a atuação de Marylin Monroe, mais sexy e condizente com a essência das escritas capoteanas. De fato, fora uma escolha acertada. Edwards, já consagrado com seus filmes de comédia, entre eles A Pantera-Cor-de-Rosa e Um convidado bem trapalhão, desenhou uma narrativa muito mais leve e fluida que aquela registrada na história em que se baseou. Apesar de constituído por elementos densos, a narrativa é guiada camuflando os aspectos mais sórdidos, como, por exemplo, a bissexualidade da personagem principal. Bonequinha de Luxo é muito mais uma pintura bem humorada e, sobretudo, requintada, de uma doce mulher e uma interessante paixão na Nova York do século passado.
O enredo do filme, apesar de rodado há quase cinqüenta anos, cita questões da contemporaneidade e, certamente, esse é um dos motivos que o levaram ao hall dos grandes filmes da historia da sétima arte. A prostituição e a procura da felicidade através do poderio material são discutidas desde os remotos tempos de Sófocles no teatro grego, já que essa, como se diz por aí, é a profissão mais antiga da história da humanidade. Sabe-se, entretanto, que os ângulos de visão para tal produto social são os mais diversos possíveis. Holly Golightly, personagem de Hepburn, mostra-se através de um discurso metafórico e permeado por requintes da burguesia. O figurino da personagem, que veste roupas do francês Hubert Givenchy, virou mania entre as grã-finas da high-society na terra do Tio Sam. O pagamento, pelos seus ‘amigos’, de cinqüenta dólares a cada vez que ia ao banheiro é o grande código àqueles que enxergaram algo de mais podre na vida dela.
Exibido a cores, no tempo em que o preto e branco ainda era vigente, o filme não se responsabiliza por tentativas de parecer de vanguarda. Objetivou-se, em primeiro plano, na ambição do lucro, coisa que a indústria cinematográfica americana já sabia fazer muito bem naquele tempo. Mas, assim como em outros objetos culturais, a aclamação da crítica surgiu rapidamente (conquistou o Oscar de melhor trilha sonora e de melhor canção, além de outras indicações).
As atuações do afinado elenco também fizeram com que o luxo da Tiffany´s e as trapalhadas de Hepburn alcançasse o sucesso que obteve. George Peppard, no papel do escritor sustentado pela ‘decoradora’, atingiu o êxito que o casal de protagonistas exigia. Saiu da trilha, entretanto, a atuação de Mickey Rooney, o Sr. Yunioshi, num papel muito mais do que ridículo. Não se justifica as insistentes aparições do japonês que, sem saber ao que veio, quase levou a obra ao ‘quintal dos excluídos’. Há de destacar-se, finalmente, a presença do gato sem nome. O animal representa, emblematicamente, o não reconhecimento da situação de Holly naquele tempo à espera da triunfal e verdadeira vida que ela sonhava (só aí móveis e nomes seriam atribuídos e aceitos).
No Brasil, as influências do filme de Blake Edwards na indústria do áudio-visual podem ser observadas em Paraíso Tropical, telenovela recente veiculada pela TV Globo, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. A personagem Bebel, vivida pela competente Camila Pitanga, imigrou de um bordel na Bahia rumo ao estrelato da vida carioca. Após muita luta, encontrou seu ‘José da Silva Pereira’ e transformou-se na chique ‘socialite’ a exibir seus trajes e chapéus nos primaveris casamentos no outono. Muito mais vulgar, muito mais entregue - mas era de luxo.

"Um filme medíocre de um diretor fantástico" por Clarice Monteiro


Alguns diretores de cinema parecem não ter um estilo definido. Produzem de forma cíclica, intercalando grandes sucessos e esplendorosos fracassos. John Huston é um exemplo disso. "Acho que não sou um diretor de estilo marcante. (...) Não consigo perceber a menor continuidade no meu trabalho de um para outro e o que mais me chama a atenção é como diferem entre si”, afirmou varias vezes. Na verdade era um homem de muitos interesses além do cinema e não escondia isso de ninguém. Sua paixão por boxe, literatura, pintura e cavalos foram, em determinadas fases de sua vida, tão importante quanto dirigir filmes.

Talvez tenha sido esse o motivo de Huston ter começado tão tarde sua carreira cinematográfica. Estreou como diretor em 1941, aos 35 anos de idade, com The Maltese Falcon (O Falcão maltes), cujo roteiro escreveu baseando-se na novela de Dashiel Hammett. Com esse filme tornou-se um dos mestres do chamado cinema noir, tendo dirigido ainda outro grande exemplar do gênero: O segredo das jóias (com Marilyn Monroe). Depois da guerra produziu mais um clássico, O tesouro de Sierra Madre (1949), filme que lhe rendeu o Oscar de melhor diretor.

Mas, Se John Huston fez sucesso logo no inicio de sua carreira, nos anos 40; na década de 60, contudo, ele passou por momentos mais difíceis. Nesse período há uma alternância constante de projetos ambiciosos e outros totalmente despretensiosos. Nenhum deles configurando-se como êxito de bilheteria, e mesmo aqueles que posteriormente viriam a ser considerados representativos dentro da sua obra, no momento de suas estréias não tiveram uma boa resposta da crítica.
A noite do iguana é um filme dessa época problemática. Adaptação de uma peça de Tennessee Williams, não é bom nem ruim, é um filme mediano. Na época, não foi apenas ignorado, mas desdenhado pela crítica. Mesmo assim ganhou um Oscar de Melhor desenho de figurino e foi indicado a mais três.
Em sua autobiografia, Huston conta um fato, no mínimo curioso, sobre as filmagens desse filme. Disse que ao iniciá-las presenteou os protagonistas, e também Elizabethe Taylor (esposa de Burton que o acompanhava), com uma pistola e quatro balas douradas onde haviam sido gravados os nomes dos demais. “Felizmente, ninguém chegou perto de precisar usá-las” disse Burton posteriormente, pois, apesar da abundância de estrelas em seu elenco (Richard Burton, Ava Gardner, Deborah Kerr) não houve conflitos nos sets de filmagem de A Noite do Iguana. A verdade é que nas mãos de Huston diversos atores alcançaram desempenhos muito acima do que mostravam em outros filmes, porque para ele, ou “o personagem tinha cheiro de ser humano”, ou não era nada. Não é a toa que sua galeria de perdedores é imensa, enquanto a de heróis é bem reduzida.
Produzido em 1964, tendo como pano de fundo o litoral mexicano, mais precisamente Puerto Vallarta (onde posteriormente Huston viria a fixar residência), A Noite do Iguana tem como tema central a solidão e as tensões sexuais dos seus personagens principais. A linha narrativa tem como ponto fundamental a história do ex-pastor protestante Lawrence Shannon (Richard Burton) que, afastado do sacerdócio por um escândalo sexual, é reduzido a guia turístico de excursões pelo litoral mexicano. Em uma dessas excursões conhece Charlotte Goodall (Sue Lyon), uma jovem cuja obsessão parece ser seduzi-lo. Após varias confusões causadas pela jovem e ameaçado de perder o emprego, Shannon procura a ajuda de sua amiga Maxine (Ava Gardner), dona de um hotel local. Junta-se à dupla, então, uma pintora solteirona, Hannah Jelkes (Deborah Kerr), que viaja com seu avô, um velho poeta interpretado por Cyril Delevanti.
O filme possui uma bela fotografia em preto e branco e atuações muito boas, como a de Deborah Kerr, no papel da pintora Hannah Jelkes. Ela consegue roubar a cena desde o primeiro momento em que aparece, deixando os outros personagens meioque apagados; mesmo assim A noite do iguana não empolga. O enredo é muito morno e por vezes fragmentado. O momento do clímax nem chega a ser um clímax realmente, é tudo muito previsível. O final também é pouco convincente e força muito um “...E foram felizes para sempre”. Além disso, o filme tem lá as suas cafonices como os “beach boys” com as maracás.
Mesmo assim, Huston é capaz de construir belas cenas, como quando Burton alcoolizado, dialoga com Sue Lyon enquanto se auto-puni caminhando descalço sobre cacos de vidro ou na cena em que o velho poeta, já às portas da senilidade, consegue por fim terminar seu último poema (de autoria de Tennessee Williams), que ao longo de todo o filme vem ensaiando.
A noite do iguana é o 25º dos 40 filmes que Huston dirigiu entre 1941 e 1987, destes, bem menos da metade é de real interesse do público, incluído o citado acima. Contudo, de todas as coisas que podem ser ditas sobre esse diretor, ninguém poderia o acusar de não ter tentado algo novo, And though he didn't always succeed, when he did it was spectacular.embora nem sempre tenha conseguido. Sem dúvida, seus filmes de aventura como O tesouro de Sierra Madre (sobre a ganância humana) e O homem que queria ser rei (sobre o orgulho), além dos clássicos Moby Dick e Uma aventura na África (cujas filmagens também foram uma aventura, conforme mostra o filme Coração de caçador, de Clint Eastwood) formaram um conjunto de obras das mais significativas da história do cinema. No fim, pesando os sucessos e os fracassos, o pai de Anjelica Huston pode ser considerado um grande diretor.

"A noite do iguana" por Bernardo Cortizo de Aguiar


Adaptado de uma peça de teatro, esse filme de 1964 tenta trazer a dinâmica do teatro para o cinema, mas se perde no meio do caminho. A primeira parte do filme, totalmente criada para o cinema, consiste em uma viagem turística pelo México dos anos 40, num ônibus dirigido pelo reverendo Dr. Larry Shannon (Richard Burton). A excursão, composta de senhoras de idade, tem como integrante uma mocinha, Charlotte Goodall (Sue Lyon), enviada pelo pai na viagem para esfriar seus hormônios em ebulição. A menina, obviamente, fica interessada no reverendo e tenta seduzi-lo, para desespero de sua tia e guardiã durante a viagem, Judith Fellows (Grayson Hall), que pensa ser o reverendo a tentar seduzir a sobrinha.

Após uma manobra desesperada, Lawrence leva o comboio até o hotel Costa Verde, cujos donos são amigos seus. Entre chegar ao hotel, descobrir que a proprietária e grande amiga sua, Maxine Faulk (Ava Gardner), é agora viúva e o aparecimento de dois dos carregadores de bagagens mais pitorescos da história (descamisados, com calças brancas de algodão, os dois sempre estão dançando, com um deles tocando maracás. Até mesmo enquanto carregam as malas), tentativas por parte da Srta. Fellows de falar com seu patrão para demiti-lo e a chegada da pintora itinerante Hannah Jelkes (Deborah Kerr) e seu avô, Nonno (Cyril Delevanti), Lawrence perde o juízo, o comboio “seqüestrado” consegue de volta a peça do motor do ônibus até então guardada atentamente pelo reverendo e consegue sair do local.

Com uma visão totalmente preconceituosa do México (um México permeado de caçadores de iguanas e tipos festeiros, como os carregadores de malas maraqueiros), o filme tem uma quebra neste ponto: agora, depois do colapso nervoso do reverendo Shannon, não se ouve mais falar do destino do grupo de turistas, de Charlotte ou de sua tia, deixando a primeira parte do filme perdida na narrativa: é apenas um gigantesco prólogo para situar a condição de Shannon, Maxine e Hannah.

A segunda parte do filme consiste num grande diálogo entre o ex-reverendo e a pintora itinerante, à noite, nas varandas do hotel. Um formato que talvez seja interessante no teatro, torna-se um tanto maçante na tela do cinema, principalmente por terem mantido a estrutura estática do original (os dois praticamente não saem do lugar). A idéia é concentrar a atenção na conversa entre os dois, enquanto destrincham seus passados e traumas, mas a monotonia da cena é de causar sonolência.

Talvez se assistido na época, ele tenha aparentado ser mais interessante, mas sob a óptica atual o filme não empolga, tem um problema sério com sua primeira parte e constrói apenas marginalmente a metáfora dos iguanas, que aparecem mais como elemento exótico da culinária mexicana (vendedores de iguanas em beira de estrada e o iguana capturado pelos carregadores maraqueiros). Tanto que o iguana capturado é o único utilizado como metáfora, preso na corda enquanto o reverendo Shannon está preso na rede, conversando com Hannah. Essa visão de turista sobre o México também fere a credibilidade do enredo: não há como levar o filme à sério quando todos os mexicanos apresentados são uma caricatura tosca dos tipos latinos vistos na mídia norte-americana.

"Pacto de Sangue – um claro clássico escuro" por Breno Lemos Pires


À luxúria e à ganância some-se o prepotente desejo de engendrar e consumar o crime perfeito. Eis a trina essência pecaminosa em que consiste Pacto de Sangue (Double Indemnity, Paramount Pictures, 1944, 106’). Neste filme, o diretor Billy Wilder conseguiu, mais do que transpor para as telas com excelência o romance policial de James M. Cain, lapidar as bases de todo um estilo cinematográfico — o noir, que quer dizer escuro.

“Eu fiz tudo por dinheiro e por uma mulher. Eu perdi o dinheiro e perdi a mulher”, confessa Walter Neff (interpretado por Fred MacMurray), um corretor de seguros qualquer, por meio de um ditafone. O tom é de lamento e orgulho. Encerra tanto a arrogância da autoria do crime perfeito quanto o sentimento de culpa pelo mesmo motivo. A cena, com cara de fim de filme, é, no entanto, uma das primeiras. O diretor Billy Wilder nos revela sem a menor hesitação o sempre tão esperado criminoso. Esperto ele. A partir de então, Neff narra, com a voz em off, a sua história infame desde o início, relembrando como se perdeu — estilo de narração tipicamente noir. E o espectador, intrigado, é convidado a acompanhá-la. Convite irrecusável.

As vidas de Neff e de Phyllis Dietrichson — uma esposa diabólica cansada do marido e ávida por dinheiro, representada por Barbara Stanwyck — começam a se entrelaçar numa casual manhã ensolarada em que ele, a trabalho, bate à porta dela a fim de vender uma apólice de seguro de carro. A loira — que encarna a figura da femme fatale, tão presente nos filmes noir — o recebe e, como já estivesse articulando um plano, atiça-lhe os instintos ao explorar a própria sensualidade. Começa um jogo de sedução que vai levá-los ao fim da linha.

Atração e interesse se confundem nesse relacionamento erigido em torno da ausência do marido de Phyllis, regado à base de provocações que fomentavam, nos dois lados, uma volúpia contida, num primeiro momento, e, depois, exacerbada. A esposa adúltera, entretanto, tinha um objetivo claro: livrar-se do marido e tomar-lhe o dinheiro. Apesar de Neff inicialmente ser contra o assassinato, a paixão pela loira e, sobretudo, o desejo de cometer o crime perfeito sem ser pego — o que também lhe provocava implacável excitação — falaram mais alto, calando-lhe a voz da razão. No entanto, não se pode atribuir-lhe o rótulo de vítima, na medida em que ele não só se torna cúmplice como também assume a condução do esquema, ao arquitetar, passo a passo, a “morte acidental” do marido de Phyllis, para que ficassem com o dinheiro do seguro de vida. Ambicioso, mira alto: a indenização dupla, concedida em caso de morte por queda de um trem em movimento. Daí o título original do filme: Double Indemnity (indenização dupla).
Não lhe faltaria, todavia, sensatez na realização do crime. Nem poderia faltar, pois era crucial driblar o chefe de Neff, Barton Keyes (Edward G. Robinson), extremamente arguto em suas análises, seja usando a lógica, seja dando ouvidos ao “homenzinho” interior, de infalível instinto antifraude. A extrema perspicácia do investigador é superada pela artimanha do casal. Para o azar deles, contudo, o mais difícil não era exatamente enganarem Keyes, e sim se manterem afastados para não atraírem suspeitas. Nessa hora, o ego falou mais alto. Cada um foi pro seu lado. Não obstante, o pacto de sangue já estava feito. Não havia escapatória. Como relembra Phyllis, eles estavam juntos “até o fim”. E o fim, como em um bom film noir, não haveria de ser feliz.

É difícil dizer o que mais chama a atenção: a narrativa ágil e coesa, as interpretações irrepreensíveis ou a maestria da direção. A despeito desse fato, seria justo apontar este último item como o mais proeminente, pois a obra veio a se tornar referência entre os melhores filmes noir de todos os tempos. Pacto de Sangue é fundamental para a consolidação de certos aspectos que caracterizam esse estilo de fazer cinema. O primeiro, logicamente, é a deliberada exploração do escuro, por meio de recursos de filmagem e fotografia, com excepcional exploração de grandes contrastes de luz e sombras — além da predominante seleção de cenas noturnas. Outro é a presença da femme fatale, personagem loira, sedutora e de intenções um tanto sórdidas, capaz de tudo (geralmente mais bela que a nada esplêndida Barbara Stanwyck). É também um traço noir o fato de o protagonista, ao se ver perante uma encruzilhada moral, escolher o “mau caminho”, movido por desejos concernentes à luxúria e à ganância.

Por abordar a questão da sexualidade e a da violência nos remotos e ainda conservadores anos 1940, o film noir possui também uma relevância histórica. Revela uma mudança na forma de ver fatos sociais presentes no cotidiano das cidades contemporâneas, do qual golpes, como o de Phyllis e Neff, fazem parte. De certo modo, ainda reflete o contexto conseqüente à grande crise econômica de 1929, em que, nos Eua, crescia o crime organizado, tornando-se um meio rápido de ascensão social. Assim, a moral maniqueísta, com a divisão simplista entre “bons” e “maus”, dá lugar à decadência e a ambigüidade dos personagens. O que pode ser visto na relação do casal vil de Pacto de Sangue.

Um suspense que revela assassino e vítima numa das primeiras cenas sem, no entanto, atenuar a tensão nem deixar de ser suspense é, por si só, digno de nota. Um filme que prescinde do quê para se concentrar no como, na forma como a trama se desenvolve — e o faz com qualidade —, tem de ser respeitado. Em Pacto de Sangue, Billy Wilder consegue isso (e mais) de uma forma tão bem feita que lhe rendeu elogios de Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, que afirmou — logo após assistir ao filme — ter finalmente encontrado alguém capaz de fazer par à sua obra.
Pacto de Sangue serviu de parâmetro para uma série de filmes noir. Está presente em qualquer lista de 10 melhores filmes deste gênero, provavelmente no topo. A propósito de premiação, foi eleito pelo American Film Institute um dos 100 maiores filmes do cinema americano. Não por acaso. Nem o relativamente baixo orçamento para a produção do filme pôde comprometer a qualidade final. A pouca verba, aliás, explica a utilização de poucos ambientes de filmagem e, também, inicialmente, a escassez de luz, o excesso de escuridão. Contudo, sem dúvida, o fato de essas terem se perpetuado como características do film noir não se explica por questões financeiras, mas, sim, pela influência direta de filmes como Pacto de Sangue, tão obscuro quanto brilhante.

"O tempo estranho de todo lugar" por Luís Fernando Moura


Conhecer O Ano Passado em Marienbad é como descobrir os corredores de um edifício. O narrador imprevisto toma as rédeas de guia (supérfluo?) e carrega o espectador pela mão. O olho, atento a cada detalhe, aproveita-se da maciez da cinematografia para agregar-lhe pompa, tornando-a, por si só, uma lente de luxo. Mas é perante a luxúria do espaço astronômico, em Marienbad (ou em qualquer outro lugar?), em meio aos salões do hotel misterioso e libidinoso, que o espectador é abandonado. Permanecer na obra de Alain Resnais exige disposição para encontrar-se, por esforço próprio, de uma espécie de perdição humana, em que escapam todas as referências temporais e espaciais – embora haja também, para os remanescentes, em qualquer vértice de cômodo, toda resposta.

Ou seriam as indagações a melhor certeza necessária? O passo fundamental do roteiro de Alain Robbe-Grillet é entornar um tempo de vidro e mobilizar os pedaços como que numa ultra-movimentação. É fazer agir um motor transcendental que se utilize do presente efêmero e do espaço limítrofe para lhes aniquilar qualquer imprescindibilidade. Entre a troca engasgada (mas fluida) de locações e figurinos, e a construção potencial de um tempo desconhecido a imiscuir-se, vem emergir a genialidade particular da obra: aqui, tudo é alegórico, à exceção de um discurso possível entre os personagens.

É esse o discurso que atribui valor a toda espécie de coadjuvância. De um lado, Delphine Seyrig, interpretando a mulher. Do outro, Giorgio Albertazzi, interpretando o homem. Os personagens centrais discorrem num texto desprovido de uma factualidade realista. Nestas lacunas, acomodam-se (embora não durem para sempre) os elementos audiovisuais que poderiam servir como âncora de uma narrativa confortável. Assim, a figura do narrador, por exemplo, a despeito de um potencial efeito explicativo (para alguns, anti-cinematográfico), não orienta, mas confunde o espectador, uma vez que contribui para misturar elementos referenciais de um enredo. O cenário, do qual ordem e sentido são subvertidos na montagem, faz perder, em vez de achar. A trilha e a adequação dos sons às imagens, estranhamente, conduzem a um produto em que o que se espera se desespera. A música vem de um órgão mórbido, mesmo que se assista a uma camerata.

A linguagem implica ainda numa estética marcada por uma questão política. A todo tempo, subsiste a estrutura hierárquica de um sexismo patriarcalista, uma vez que o personagem masculino é também o narrador, e, mais que isso, condutor das resoluções narrativas. O homem conta a mulher, como se a conhecesse mesmo antes de conhecê-la. Se se cumprimentam, então, é para que ele a funde, em traje da memória confusa (ou da projeção?) de uma vida a dois. Não importa o tempo em que se suceda (ou se anteceda) cada passagem, o ponto de coesão de uma história a ser contada é o poder decisivo do homem em (re)montar um histórico junto à mulher, de forma a persuadi-la a ser sua amante, e, ademais, personagem de sua criação. Cabe a ela, então, libertar-se de um casamento indesejado para fugir com ele? Talvez aí repouse sua liberdade, ainda que ele seja capaz de desfazer até sua morte. Ou, é possível, o desfecho ambíguo seja mais um mecanismo para incitar interpretações possíveis, sempre sob o punho do contador, amante, invasor.

Em O Ano Passado em Marienbad, a fotografia de apelo clássico, a arquitetura refinada, a escultura simbólica do jardim, quase encarnada como personagem, a beleza e a perfeição estética são artifícios fundamentais para a fomentação do contraste. Se o arcabouço visual é entusiasmante, um fluxo de consciência notável dá liberdade maior ao sentido de tudo que se vê. Assim, de cada coisa será feito o que os personagens quiserem.

'“Profissão: repórter”: a lentidão contemplativa' por Diogo Guedes Duarte da Fonseca


Comentar “Profissão: repórter” é reviver a cena em que o jornalista Locke, durante a filmagem de seu documentário, tem a câmera virada para si por um líder guerrilheiro. Assim como o combatente afirma que as perguntas de Locke dizem muito mais sobre ele do que as respostas que se poderia dar a elas, qualquer análise da obra serve para expor fortemente a visão de quem a escreve, em vez de interpretar o filme.

Ainda assim se corre o risco. Se alguém se pergunta o porquê de continuarem a falar do filme de Michelangelo Antonioni 32 anos depois de sua realização, sem dúvida não o viu. A história é do jornalista David Locke (Jack Nicholson), que toma a identidade de um traficante de armas quando este morre no hotel em que está hospedado. Locke não hesita em abandonar sua vida tediosa e acomodada nos braços de sua profissão e de sua mulher para quase reencarnar como Mr. Robertson.

O filme é tão metafísico quanto concreto: mescla as tensões da realidade com os significados mais abstratos e amplos. Se a narrativa soa atual é em parte porque algumas coisas não mudaram nada, em parte justamente por esses questionamentos mais abrangentes. Tirar o crédito de Antonioni, contudo, por abordar com sutileza e atemporalidade os temas da obra é injustiça desmedida. Talvez não seja o caso de dizer “sutileza”, já que a obra se trata de um tipo de realismo; está muito mais para uma precisão no que se diz, mesmo que quase nunca o diretor aposte no óbvio.

As cenas se arrastam. No deserto africano, qualquer espectador sua com as tomadas amplas e a pouca ação. Mesmo nas fugas de Locke - agora já Robertson - com sua amante universitária (vivida pela atriz de “O último tango em Paris”, Maria Schneider) as ações são lentas e o filme pára para vê-las como se fossem o mais essencial - e só assim já se tornam mais belas e importantes. É, ainda que não intencionalmente, uma homenagem a cada gesto que fazemos e vivemos sem dar nenhuma atenção.

Essa lentidão não é um defeito: é a principal característica do filme e importantíssima para obter-se o efeito final. Não é a toa que basicamente todas as críticas sobre o vão citar o majestoso plano-seqüência de 7 minutos que simultaneamente omite e revela o final da narrativa: é uma cena lenta, contemplativa e bela. Antonioni, basicamente, pega um thriller, suprime sua velocidade e sua tensão excessiva e o transforma em imagens a serem pacientemente assistidas, com um conteúdo aprofundado que vai supera muitos filmes filosóficos, densos e complexos.

A atuação de Jack Nicholson atinge um nível que até mesmo ele terá dificuldades de repetir em sua grande carreira. Locke assume a identidade de Robertson para abandonar sua vida viciada no tédio - mesmo sendo um jornalista com bastante liberdade - e não pára de fugir de seu passado. Não há como deixar de ser Locke, ainda que por meio e uma negação de si, e não há como ser inteiramente o traficante de armas, alguém frio e disposto a conviver com os perigos da atividade. Sua vida passada o persegue por meio de sua mulher e do seu chefe, que, mesmo sem saber quem ele realmente é, buscam Robertson para falar sobre Locke. A tensão típica de um grande suspense é combinada com a calma para observar as cenas: a pouca pressa do filme em passar mostra o cansaço do personagem de Jack Nicholson que, mesmo quando muda de identidade para escapar do mesmismo da sua vida anterior, encontra na nova atividade um rotina pouco diferente. A fuga interminável é uma morte lenta para o agora Robertson: ele corre e quando pára para descansar, sofre um ataque cardíaco - assim como havia sofrido o Robertson verdadeiro. Quem os mata é a vida cansativa e tediosa.

Ao contrário do Bergman faria - subtrair o máximo possível da realidade tangível para exaltar as sutilezas e as grandes questões por trás da vida -, Antonioni fala do concreto e não se permite, ainda assim, um filme político ou limitado. Realiza uma mistura extremamente eficaz para extrair das pequenas coisas os grandes significados, tanto metafísicos quanto reais. “Profissão: repórter”, em meio às narrativas atuais, recheadas de velocidade e tramas mirabolantes, nos permite uma experiência diferente: ao invés de observar um roteiro emendado e cenas corridas, contemplamos a lentidão e o cansaço. Paramos para ver o filme e, quando menos esperamos, estamos nos pondo no meio dele, emprestando-lhe significados e sensações.

"Beijos proibidos" por Júlia Souza


Para quem prefere “personagens” famosos, gente sobre cujas vidas seria possível ler em livros de História, revistas de fofoca ou biografias escritas por “autores best sellers”, certamente o cinema de Truffaut seria uma decepção. O cineasta francês é só para quem presta atenção a detalhes. Beijos proibidos, terceiro filme do diretor com o personagem Antoine Doinel (Jean Pierre Leaud) como protagonista, é representante fiel dessa arte de sutilezas.

O longa começa com Doinel sendo expulso do exército, ao qual tinha sido voluntário preguiçoso, aparentemente, por razoes amorosas. Apesar de já haver adentrado o mundo de seu protagonista nos dois filmes anteriores, Truffaut faz questão de apresentá-lo novamente. E o faz com perfeição quando, mostra Doinel, abstêmio, logo após deixar o quartel, depois de um bom tempo recluso, quase correndo de uma prostituta porque ela age exageradamente profissionalmente.

Ao longo do filme, surge um Doinel apaixonado pela cidade natal –a “Sacre Coeur” é pano de fundo para várias cenas- e fabulosamente desastrado. Tanto o Woody Allen sério e enamorado de Manhattan, quanto o protagonista vacilante das comédias parecem de certa forma haver buscado inspiração aqui.

De certa forma, Beijos Proibidos retrata os pequenos e grandes acontecimentos da cabeça de Doinel. Como ele lida com rejeição, amor, com o passado. Além disso, no entanto, o longa faz rir dos detalhes “de fora para dentro”. Não do que o protagonista sentiu ou pensou, mas simplesmente do que se passou com ele, como acontece nas comédias de Woody Allen e acontecia nos filmes de Chaplin.

A cena em que Doinel é demitido do hotel, primeiro trabalho depois do exército, mostra-o como é a primeira de uma sucessão de trapalhadas. O emprego de detetive que ele consegue depois da (e devido à) demissão é divertido desde ao anúncio nada discreto nos jornais até as “personas” que habitam a agência. A atuação de Doinel como investigador é um capítulo à parte na graça do filme. Assim como o uso que Truffaut faz da cidade, especialmente do Montmatre dão um toque especial à fotografia.

Nenhum detalhe, contudo, chama mais atenção que os diálogos do filme. Tanto aqueles sem palavras, como os de Doinel com ele mesmo até as discussões verborrágicas do protagonista com sua musa. Truffaut não nega que o personagem tenha uma verve autobiográfica, e a interação perfeita entre Doinel, as imagens, as falas e os porquês do filme deixam a impressão de que tudo aquilo já havia se passado... no imaginário do diretor.