domingo, 18 de abril de 2010
"Narciso Negro" por Rinaldo da Silva Pereira Junior
É tarefa difícil classificar o cinema feito pela dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, tanto em termos de cinema britânico quanto em termos de qualquer outro cinematografia nacional da época de sua produção, seus filmes não pertencem nem a histórica tradição realista britânica, que herdou ao mundo a famosa escola documentaristica britânica, nem a nenhuma outra tendência cinematográfica posterior do cinema britânico, são obras extremamente pessoais como o que faria muito depois, por exemplo, o cineasta chileno Alejandro Jodorowski. A catalogação de seus filmes é bastante complicada, a não ser que se recorra ao rotulo fácil e geral de cinema europeu.
Sob a égide de sua produtora The Archers, que é também o pseudônimo pelo qual a dupla ficou conhecida, eles dirigiram (geralmente função desempenhada por Michael Powell) e escreveram (geralmente tarefa de Emeric Pressburger) uma dezena de filmes no período entre os anos de 1940 e 1950 que marcaram definitivamente o cinema mundial pela inventividade e estranheza de seus personagens e tramas. A produtora foi fundada em 1943 e chegou a lançar algo como um manifesto em que propagandeava sua liberdade de criação e admitiam sua responsabilidade por todo material gravado e produzido, se refutavam a serem orientados ou coagidos por quem quer que fosse, e se gabavam da criatividade de suas idéias que estariam ‘’À frente não somente de nossos competidores, mas também a frente da época’’ além de pregarem o respeito mútuo entre todos os seus colaboradores.
Em pouco tempo eles criaram e mantiveram um grupo regular e fiel de atores e técnicos que se juntaram a produtora durante os doze anos de sua existência.
É também difícil o acesso a filmografia do grupo devido ao mesmo motivo que os torna renomados: a estranheza de seus filmes, o que os torna comercialmente pouco viáveis. Particularmente conheço pequenas passagens de A Canterbury Tale, filme de 1944 e de A Matter of life and death, obra de 1946, além de conhecer o renome e a importância de Sapatinhos vermelhos (The red shoes), musical que subverte as regras do gênero e é considerado por muitos a obra prima da dupla. Como obra completa, conheço e admiro a beleza e domínio técnico de outra de suas principais obras primas, Narciso Negro (Black narcissus), obra de 1947 e imediatamente anterior a Sapatinhos Vermelhos.
O filme concerne um grupo de freiras que decide estabelecer uma escola e um hospital em uma de suas missões nos confins do Himalaia e através de um trabalho de catequização e educação cristianizar a comunidade. O que acontece é exatamente o contrario: o grupo se vê circundado pela mística local, seus costumes nativos exóticos, a sensualidade e ignorância da população e a resistência da comunidade em aceitar o que é lhe é oferecido. O clima do lugar acaba transformando de maneira dramática o dia a dia das freiras e pior sua fé e personalidade. A freira responsável pela administração da missão, Irmã Clodagh se vê atraída por um agente britânico local, o que lhe traz a tona recordações de um frustrado ex-amor que resultou exatamente em sua retirada do mundo secular para o mundo religioso, enquanto outra freira, Irmã Ruth passa a adotar uma postura agressiva contra sua superiora, aparentemente por estar também atraída pelo mesmo homem. Questões como o limite da fé, intromissões de um passado incomodo e o choque religioso entre religiões tradicionais e as imposições que o cristianismo doutrinador tentar impor aos povos ‘’pagãos’’ são claramente expostas e vão levar ao clímax trágico.
Há também uma leitura política. A fuga das irmãs do mosteiro e da vida da comunidade representaria o fim do domínio do império britânico em suas colônias mundo a fora.
Powell e Pressburger têm um talento enorme em contar estórias complexas e de mostrar os conflitos emocionais a que seus personagens são expostos de uma maneira extrema simples e direta, e talvez Black narcissus seja um de seus filmes mais acessíveis, com uma narrativa convencionalmente linear e clara. A ótima direção de arte transforma de uma maneira extremamente convincente uma propriedade britânica em um convento retirado ao pé de uma montanha no Himalaia e o figurino tanto das freiras quanto dos nativos só fazem reforçar a ilusão.
Independente de catalogações, o cinema da dupla deve ser conhecido e estudado, tanto pelo seu valor estético, que é claramente perceptível em sua cuidadosa direção de arte, figurino, realismo das locações, fotografia e outros aspectos, quanto pela liberdade e inventividade narrativa e de temas e também a maneira singular com que esses temas são abordados. Vamos sem duvida mergulhar num universo bem pessoal e a principio estranho, mas que com certeza nos propiciará uma rica e inesquecível experiência fílmica.
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