domingo, 18 de abril de 2010
Um estranho na escuridão (I see a dark stranger) 1946, de Frank Laudner, por Igor Calado
O thriller “Um estranho na escuridão”, feito no imediato pós-guerra, usa, de maneira leve, o tema da 2ª Guerra Mundial como pano de fundo para uma história que mescla suspense com comédia e crônica de costumes. Conta a história da jovem nacionalista irlandesa Bridie Quilty que, em 1944, ao completar 21 anos, decide se mudar de sua cidade natal para Dublin, na tentativa de se juntar ao Exército Republicano Irlandês, na luta contra a dominação inglesa na Irlanda do Norte. Acaba vendo suas aspirações frustradas e, graças a seu ódio aos ingleses, acaba como colaboradora de espiões nazistas.
A trama aborda, de forma amaneirada e irônica, o sentimento anti-inglês existente na Irlanda, através da personagem de Bridie, interpretada por Deborah Kerr. Bridie cresce numa cidade do interior do país, ouvindo as histórias da participação heróica de seu pai na guerra contra os ingleses. Assim, desenvolve um nacionalismo exagerado que se reflete em puro preconceito contra todos os ingleses e numa busca ingênua para ajudar a Irlanda estando do lado de todos os inimigos da Rainha, como os nazistas. Os espiões nazistas são encarnados por personagens em sua maioria bastante maus, quase caricatos. Próximo do final da história, a ingênua Bridie reconhece que sua maneira de lutar contra os ingleses não é correta e promove a redenção esperada.
O filme poderia ser incluído, numa visão mais global, no grupo de filmes de guerra feitos durante e depois da 2ª Guerra Mundial. Desse mesmo grupo fazem parte filmes antológicos, como “Nosso Barco Nossa Alma” (Noel Coward e David Lean, 1944). Entretanto, ao contrário dos filmes feitos principalmente durante a guerra, que possuem um viés nacionalista, ideológico e panfletário relacionado à moral inglesa na batalha (como o filme de Coward&Lean), “Um estranho...” se enquadra num gênero comercial que ganhou força no pós-guerra e que, ao invés de associar a guerra à ideologias, a usa apenas como impulso para a trama, se utilizando da história real para tirar delas tramas de suspense, explorando bastante a figura do espião.
Estilisticamente, o roteiro possui “lacunas” propositais, como elipses da trama: informações importantes que são “puladas”, forçando o espectador a entender evoluções no enredo que aconteceram entre uma cena e outra, mas que não foram mostradas. Exemplo disso foi a ausência do aliciamento de Bridie pelos nazistas, que deve ser subentendido como tendo ocorrido entre duas cenas, que não se seguem imediatamente: numa, o espião nazista vai atrás de Bridie depois que descobre seu horror irlandês aos ingleses e seu interesse suspeito por aprender alemão; noutra, ele e Bridie se encontram secretamente no quarto dela para que ela lhe passe informações importantes. Essas lacunas propositais, entre outros detalhes não explicados mas subentendidos da trama, exigem do espectador participação e capacidade de inferir desenvolvimentos no enredo, tirando-o da passividade.
A tradição colonizadora britânica fica bastante explícita na visão ligeiramente preconceituosa apresentada dos irlandeses. Em oposição à naturalidade do retrato dos personagens ingleses no filme, os irlandeses são vistos com um olhar claramente estrangeiro e supostamente superior, com ênfase nos “exóticos” costumes locais e no sotaque exagerado, além da clara ironização do sentimento anti-britânico. Esse retrato “pitoresco” dos estrangeiros pode ser tido como um traço comum numa época em que o multiculturalismo e o relativismo cultural ainda não estavam em voga, o que só aconteceria nas décadas seguintes, impulsionados pela descolonização da África e da Ásia e a criação da ONU. A visão inglesa dos irlandeses, neste filme, é mais similar a uma visão hierárquica, como a norte-americana dos países da América do Sul, do que uma relação mais “igualitária”, como geralmente ocorre com a representação entre nações européias, por exemplo: uma visão britânica dos franceses.
O tema principal do filme é claramente uma visão preconceituosa, suspostamente tolerante e compreensiva, do sentimento anti-britânico na Irlanda. Sem adentrar profundamente em questões político-ideológicas, o filme simplifica o anti-anglicismo irlandês como resultado de uma guerra (no caso, a Guerra de Independência Irlandesa) e da frustração irlandesa por estar agora dividida em dois Estados (Estado Livre da Irlanda e Irlanda do Norte). O binômio nacionalismo irlandês e anti-anglicismo leva a personagem principal Bridie a se envolver ingenuamente em uma trama de espionagem, até que, num momento de compreensão, ela decide não mais ajudar os nazistas. Ao final do filme, Bridie casa-se com um ex-militar britânico (Trevor Howard), que conheceu no começo do filme e que sempre tratou mal, apesar dos esforços dele para entendê-la e resolver o relacionamento complicado dos dois. Fica óbvia então uma idéia de que o anti-anglicismo deve ser encarado como uma forma ingênua dos irlandeses de lutar contra uma relação quase “natural” com os britânicos e que deve ser resolvida numa base de compreensão quase paternal com essa rebeldia –que, apesar do caráter “adolescente”, pode desviar-se para coisas mais perigosas como o IRA ou uma relação com os nazistas.
O filme conclui, então, como uma negação de bases ideológicas e factuais mais sólidas para o sentimento anti-inglês na Irlanda e uma justificação de um instinto colonizador britânico que remonta claramente à Kipling: a dominação é vista como correta e como uma tarefa, análoga aos prolongados esforços do militar britânico por uma boa relação com a irlandesa, ao final recompensados.
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