domingo, 18 de abril de 2010
"Narciso Negro" por Renato Souto Maior
Trajetória moldada por transformações e lição de moral ao fim; típica narrativa, cinematográfica, ou não. Através de tal experiência reveladora acaba-se chegando a algum nível de aprendizado e consciência sobre algo; o percalço do caminho o torna exemplo a ser reconhecido e respeitado. Inicia-se, então, outra “jornada”, e outras questões certamente surgirão. Em Narciso Negro a protagonista, jovem e freira, tem de lidar com situação adversa e incomum; liderar uma nova ordem, a “Ordem das Servas de Maria” em Calcutá, na Índia. O local a ser habitado pelo grupo de freiras é misterioso; o filme revela sutilmente os fatos ocorridos no espaço, porém estes não são de conhecimento das religiosas, de certo. Sabe-se que lá aconteceu uma série de episódios com outro grupo religioso, de padres, e é conhecido por ter sido ambiente de um grupo de mulheres – esposas ou amantes – de algum líder ou poderoso indiano dono do local. Em uma espécie de clausura, elas convivem com uma comunidade primitiva ao pé de uma enorme montanha, morada do grupo, envoltas em vento, névoa e sensação adversa. Apenas em um ambiente tão inóspito como este para as memórias e desejos mais reprimidos emergirem sem dificuldades. Um típico e simples inglês, bonito, provocará algum tipo de reação, logicamente.
Um aspecto gritante no longa é a tensão sexual entre a irmã líder e o inglês “protetor” do grupo de freiras. Aliás, não só apenas entre os dois, mas a sua presença desencadeará o sentimento semi-adormecido da freira “má” em se libertar de vez e por em prática todo o seu desejo retraído. A ideia da falta de amor é colocada em questão através das memórias da irmã líder, ao revelarem seu passado feliz com um possível marido que acaba por abandoná-la; mais tarde, em momento de desabado e revelação, fica evidente o porquê de a mulher ter se tornado freira; o amor não “correspondido”.
A produção endeusa e celebra a cor; graças ao technicolor exuberantemente usado na tela, dando vida e lugar para os mais diversos tons e texturas. Em duas cenas especialmente simbólicas e relevantes a importância da cor extrapola o limite visual indo acomodar-se na simbologia. A primeira delas é a passagem onde uma das irmãs se revela como não mais freira e aparentemente possuída por algum sentimento, que evoca sensualidade e cresce em cena quando a mesma passa um batom exageradamente vermelho nos lábios, em contrapartida da irmã líder e “boa”, com seu hábito pálido, que segura uma bíblia; o embate das duas é visível, cada qual com sua respectiva ferramenta; batom e maquiagem, bíblia. Em outro momento um príncipe indiano, ou algo do tipo, exibe um lenço extremamente azul e, segundo ele, perfumado; lenço este intitulado – sim, ele dá nome ao lenço - Narciso Negro, colocado em um momento onde a freira problemática encontra-se justamente confusa – mais do que as outras, pois todas estão – e prestes e ser despertada a qualquer momento. Essa transição da irmã já é esperada, pois desde o começo da produção ela já é apresentada como problemática e “doente”, tendo até sua participação questionada pela freira líder na recém formada Ordem.
O filme toma forma clássica, com uma narrativa simples, linear e possuidora de todas as características comuns a um bom melodrama. A trilha aqui ganha caráter exagerado, sem conter-se, propositalmente colocada nas respectivas cenas onde se precisa de uma forte e marcante música para elevação do ato; tudo muito bem executado. É uma história de redenção, reflexão e de trajetória, mas tem seu charme; toda a estética soberba acoberta qualquer falha, lugar comum ou clichê; a experiência de se assistir ao filme é impactante, e o emprego da cor em suas cenas impressiona até hoje. O elenco funciona bem, e trabalha dentro do proposto pela história; são encenações de certo exageradas em alguns momentos, em outros mais subjetivas. Uma boa mescla, dinamizando bem a trama. A questão da dominação exercida pelas freiras sob um grupo de nativos indianos remete fatalmente a histórica relação entre Inglaterra e Índia; percebe-se que a ambientação da mansão habitada pelo grupo, localizando-se em ambiente indiano, respeita e obedece a traços da cultura indiana. A direção de arte trata bem o ponto, e a presença indiana no filme revela certa proximidade entre os países, como se o exótico para um público britânico fosse alguma região da Índia mesmo. Vide o número de prêmios recebidos pela arte do filme – entre eles Oscar de Fotografia e Direção de Arte -, fica evidente a força estética da produção.
A sequência final do filme exibe um duelo entre a irmã Clodagh – a líder, protagonista, boa – e a irmã Ruth, má. A cena engrandece com uma música pesada, melodrama ao extremo, e um suspense culminante, com o duelo entre as duas. O longa termina logo na cena seguinte, e coloca sutilmente, pode-se dizer, uma passagem crucial para a história; a despedida de Clodagh e Dean, inglês “faz-tudo” da Ordem. Tendo tido uma relação toda construída na base da memória e da tensão sexual, ambos, respeitosamente, se despedem, e ao fazê-lo cumprimentam-se formalmente com as mãos, em um toque que evoca toda a intenção de ambos; mesmo não tendo acontecido nada, sexual, entre os dois, ali, no aperto de mão, se evidencia o que já se sabia: a ligação “afetiva” construída por eles.
A intensa criatividade surgida com os líderes dos Archers, Powell e Pressburger encontra, depois de uma série de filmes com temática de guerra, em Narciso, o primeiro longa de uma série de outras produções caracterizadas por outros temas; é difícil de se conceber ideia melhor e forma mais coerente para se iniciar uma nova fase se não com este filme extremamente tocante e com um visual estupendo. É a constatação de um momento novo na carreira da dupla, com peso de importância, então, tanto para os realizadores, por inauguraram algo aqui, como para o cinema britânico, por oferecer trabalho tão distinto e singular em sua filmografia.
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