segunda-feira, 19 de abril de 2010

"O terceiro homem" por Lucas Simões


A guerra fria é tradicionalmente conhecida pela polarização ideológica entre socialistas e capitalistas. Esse clima de incerteza entre sistemas políticos pode ser referenciado para a narrativa em “O Terceiro Homem” (Carol Reed, 1949) que apresenta personagens dúbios em uma Viena arrasada e dividida.

O longa inglês trata da história de um decadente escritor americano chamado Holly Martins (Joseph Cotten) que chega a Áustria após receber uma oferta de emprego de seu grande amigo Harry Lime (Orson Welles). Martins descobre que Lime está morto, vítima de um estranho atropelamento. Entretanto, insatisfeito com a inconsistência das versões do acidente, o escritor encarna o espírito investigativo na procura pelos fatos reais.

O filme inicia com uma narração descritiva que ambienta o espaço diegético em Viena logo após a Segunda Guerra Mundial. O contexto ambíguo do pós-guerra serve fundamentalmente como plano de fundo com algumas intervenções sutis durante o enredo, mas é a base que introduz os personagens de idoneidade questionável como Baron Kurtz, Sr. Popescu e o próprio Holly Martins.

Kurtz estava presente no momento do acidente (junto com Sr. Popescu, o Romeno) e durante uma conversa com Martins há índices notáveis, através dos próprios diálogos e close-ups em suas feições, da construção de um arquétipo misterioso. Martins ao conhecer a atriz Anna Schmidt, que foi amante de Lime, retrata seu ponto de vista suspeito em relação à figura de Kurtz. Popescu é uma figura ardilosa e demonstra ter forte poder persuasão, sabe dialogar e tenta ao máximo convencer Martins do caráter acidental da morte de Harry Lime. Já o escritor demonstra durante toda narrativa ser um personagem idôneo e justo, porém ao final resolve ajudar a polícia a capturar seu amigo Harry, denotando a perda de seus princípios morais por interesse.

O contexto do pós-guerra é explorado também através de uma cenografia peculiar. Nas cenas que mostram perseguições é possível visualizar o cenário natural de Viena na época. Prédios e carros destruídos, crateras e tijolos espalhados pelas ruas dão realidade às externas.

É destacável a intenção do diretor em reduzir o clima de tensão em algumas cenas. Evidências são encontradas, por exemplo, nos planos em que uma criança aparentemente inocente acusa Martins e outro em que um vendedor de balões insiste em vendê-los para os policiais. O próprio tom jocoso e irônico de Harry Lime contribui para suavizar o suspense. A trilha sonora, concebida por um músico de Viena chamado Antos Karas, é regular durante todo o filme. Toques de cítara (instrumento de cordas) dão ritmo a narrativa e também minimiza a tensão conferindo um caráter mais despojado ao filme.

Ao tratar da narrativa, nota-se a construção de forma linear e retórica, a cada cena uma ação se correlaciona com outra cena seguinte. Um exemplo é a parte em que Martins discute com o porteiro a respeito do acidente, um garoto é subitamente inserido no plano de forma aparentemente despretensiosa, porém mais na frente esse mesmo garoto vai ser o responsável por acusar o escritor de ter assassinado o próprio porteiro em uma cena inverossímil, e até mesmo cômica, que finaliza com o menino correndo atrás de Martins acompanhado de Anna. Mais uma vez a amenização do suspense é explorada.

Outro ponto de destaque em “O terceiro homem” é a presença dos elementos de um típico “Film noir”. A começar pelos cenários fortemente influenciados pela vanguarda expressionista, apresentando um visível jogo do claro com o escuro (chiaroescuro). A cena antológica do aparecimento repentino de Harry Lime, quando seu rosto se projeta iluminado em meio às sombras das ruas de Viena, ilustra precisamente a técnica.
Personagens moralmente ambíguos também denotam alguns dos arquétipos “Noir” bem característicos. Há duas visões bem distintas em relação ao caráter de Harry Lime que é admirado por sua amante, porém recriminado pelo Major Calloway que o considera o maior golpista de Viena.

Em relação ao contexto fílmico, focam-se inicialmente as buscas de Martins por evidências que embasam as dúvidas sobre a morte de Lime. A versão do acidente aceita pela polícia vai sendo aos poucos contestada. O “terceiro homem” que dá título ao filme é a presença de um terceiro elemento no momento do atropelamento. A revelação feita pelo porteiro, testemunha-chave, contradiz a versão de Kurtz e Popescu. Posteriormente, o assassinato do porteiro amarra a narrativa policial e confirma as suspeitas de Martins.

O clímax do enredo é atingido no aparecimento repentino do suposto falecido Harry Lime. De forma magistral, o personagem interpretado por Orson Welles rouba atenções em uma cena até hoje marcada na história do cinema. Bastaram poucos minutos para Welles demonstrar todo seu talento.

Através de uma composição maniqueísta, o filme finaliza com a máxima em que o bem vence o mal. O “bondoso” escritor Holly Martins mata com tiros o “adulterador de penicilina” Harry Lime. Destaque para a cena final, após o verdadeiro enterro de Lime, em que mostra Martins aguardando Anna que caminha no centro. Realizada em um plano longo e contínuo que oferece margem para múltiplas interpretações conclusivas.

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