domingo, 18 de abril de 2010
"Nightmail" por Victor Laet
“Sheep-dogs cannot turn her course; they slumber on with paws across.” Estes dois versinhos escritos por W. H. Auden – e por ele declamados nos trilhos finais da película do filme – sintetizam a magnitude ferroviária inglesa. Nada é capaz de deter o trem. Pontualidade, potência, opulência. Desta forma, é irônico observar esse sobrevivente still de “Night Mail” – e ao mesmo tempo não, pois nem mesmo o quadro da fotografia parece (querer) agüentar e capturar a força do trem.
Coletivo e somente isso (por início). A idéia de coletivo é não só presente como essencial (e, quiçá, existencial) na feitura e concepção desse documentário – assim como cada trilho é importante para linha ferroviária. O filme simples e diretamente anuncia em seus créditos iniciais de forma respectiva: título, ficha técnica e colaboração (esta assinada pelos “trabalhadores do correio e funcionários ferroviários”. Todas as etapas são colaborativas: direção (dueto de Basil Wright e Harry Watt), fotografia (cargo de Chick Fowle & Jonah Jones), narração (dividida entre dois dos maiores representantes do movimento documental britânico, Stuart Legg e John Grierson), som (representado pelo nome de Alberto Cavalcanti e apoiado pela dupla de Sullivan e Pawley).
Realizado em 1934, contudo só liberado dois anos após, o filme foi feito a mando do serviço dos correios britânico com um orçamento de duas mil libras. A história contada – entre close-ups do maquinário e médias panorâmicas da cidade – é a jornada percorrida por um trem o qual parte de Londres com destino a Glasgow, na época fausta da década de trinta, quando as estradas de ferro eram de eficiência ímpar e possuíam (pelo menos demonstrado no filme) orgulhosos operários que usavam chapéus, coletes e gravatas e, não obstante, se tratavam cordialmente – afinal de conta, eles eram um time.
Se comparado a hoje, poderia ser dito que “Night Mail” seria mais um vídeo educacional do que um documentário. E é verdade, pois o filme mais educa do que documenta (1). As atuações dos funcionários, as vozes em over de Grierson e Legg somadas aos freqüentes close-ups descritivos da realização de alguma função acabam servindo mais uma instrução do ofício do que registro do ofício. Muito diferente de Drifters e Granton Trawler, do próprio Grierson. Mas, ok, ok, o filme foi financiado pela gerência bretã de correios.
O que, justamente, evita esse epíteto de vídeo educacional é a seqüência final carimbada pela parceria de W. H. Auden e Benjamin Britten e Alberto Cavalcanti (respectivamente poema e trilha e direção de som). Ao recitar os versos, o poeta compassa a métrica de acordo com a velocidade do trem e assim faz a trilha. Comumente esquecida, a parcela de Cavalcanti nos três minutos finais do filme é primordial e salvadora não só para a seqüência como para todo o documentário. A trilha escrita por Britten é apenas uma orquestração bonitinha a qual por vezes exagera em instrumentos de sopros como o fagote (quando o final da primeira parte do poema é lido) e a flauta (na leitura da segunda parte). Coube a Cavalcanti inserir e reger barulhos incidentais do trem, o que acentuou o suspense, o clímax da cena(2).
A influência do naturalismo soviético em “Night Mail” é involuntária. Entretanto a abordagem recorrente de coletivo não é uma adoção de ideologia comunista. Optando por close-ups do trem, das rodas, da forma como – por exemplo – as cartas eram entregues nas estações, Wright e Watt lembram muito Eisenstein. Interessante perceber neste documentário é a distância e aproximação de outro expoente da escola soviética: Vertov. A escolha das imagens e angulações (e até mesmo, as experimentações de montagem e narrativa) se diferenciam muito das propostas por Vertov, entretanto o filme se aproxima do russo quando adota uma forma de “registrar” (faz-se mister o uso de aspas, pois, ratificando, o filme instrui, educa, e a sua documentação é assaz didática) o acontecimento de uma maneira propagandista. E indo além, a montagem do filme se separa tanto de Eisenstein quanto de Vertov. Os cortes das cenas são em sua maioria suaves, não-abruptos, metaforicamente sugerindo que o trem passa, mas sua imagem lingers on. Isto é, Pudovkin(3).
“Night Mail” é um bom filme. É uma propaganda? É. Mas, ok, ok, de novo, foi financiado pelos correios ingleses. E o poema composto por Auden casa maravilhosamente com essa sugestão de que todos precisam de cartas (“Letters of thanks, letters from banks, letters of joy from girl and boy; [...] Asleep in granite Aberdeen, they continue their dreams, but shall wake soon and hope for letters, and none will hear the postman's knock, without a quickening of the heart, for who can bear to feel himself forgotten?” (4)). E, sinceramente, quem suporta?
Dezesseis de abril de 2010
e hoje é sexta feira.
NOTAS:
1. O que não é de forma negativo. A estratégia de documentação de vídeo educacional foi adotada de forma caricatural pela dupla alemã de Stefan Prehn e Jorg Wagner na concepção do cômico Forklift Driver Klaus. = http://www.youtube.com/watch?v=T-rJndNbCYY
2. Exemplificando, e contextualizando numa viés mais contemporâneo, observar a trilha de “Desejo e Reparação” (Atonement, 2007, Joe Wright – trilha da Dario Marianelli).
3. Pudovkin propunha que A+B=AB. Isto é, a apresentação dos planos deve resultar numa junção dele – não em algo diferente – mantendo a continuidade da cena. Isso transforma a justaposição dos planos num agente de ligação.
4. "Cartas de agradecimento, cartas de bancos, cartas de alegria de menina e menino; (...) Adormecidos em granito Aberdeen, eles continuam seus sonhos, mas logo acordarão e esperarão por cartas, e nenhum escutará o carteiro sem um acelerar do coração, pois quem pode suportar se sentir esquecido?"
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