quinta-feira, 29 de abril de 2010

"A hipótese do quadro roubado" por Daiany Dantas



A hipótese do quadro roubado (Raoul Ruiz, 1979) é um filme grave na forma, apresentada sem falsetes que destoam da seriedade do enigma oferecido aos espectadores. E todo o contexto onde se articulam as atuações, os cenários e os movimentos de câmera, simulam essa gravidade e enaltecem o tom de incerteza, que, pouco a pouco, domina a trama.

Ainda que o fio que nos conduz por esta rede de dúvidas seja justamente a certeza do personagem central, um homem sisudo apresentado apenas como o ‘colecionador’, tendo como aparato narrativo o seu diálogo com o narrador oculto do filme – que oscila entre fazer as vezes de consciência ou questionar seu interlocutor, de forma a desacreditar sua argumentação.

Num primeiro momento, encontramos o colecionador em seu escritório, acompanhado apenas por pequenos bonecos de madeira articulados - utilizados para a reconstituição material de pinturas - acumulados nas gavetas e sobre a mesa. Enfático e inflamado, ele nos apresenta sua hipótese sobre a obra do desconhecido pintor Tonnerre: “os quadros não aludem, os quadros mostram”, diz. Somos, então, invadidos pela dramaticidade da musica que entrevem a abertura de uma porta fantasmagórica para o interior da mansão.

O colecionador estaria prestes a desvendar, diante de nossos olhos, um dos grandes segredos da História da Arte? Se os quadros mostram, haveria algo de tão comprometedor e definitivo contido na própria dimensão física da arte? Até que ponto poderíamos imergir na estrutura formal de um quadro e extrair dele um senso concreto de verdade? Um sentido que não aquele espelhado em nossos próprios anseios e inquietações? Seja como for, Raoul Ruiz instala em nós a ansiedade pelo que poderá suceder.

Ao nos introduzir neste campo de interpretações, mantém um tom formal, beirando o sinistro, quando, em planos de câmera generosos, desvenda os cômodos da mansão do colecionador e seus arredores. Os interiores, os jardins, os aposentos, mesmo as escadas, estão tomados por um Tableau Vivant(1) que, em suas partes seqüenciadas, recria as obras de Tonnerre.

O colecionar invade a verdade tridimensional que ajudou a reconstituir e nos explica, seguindo uma intricada e desconexa cadeia de coincidências (umas pertinentes, outras nem tanto) a hipótese do quadro roubado. Ele acredita que os ângulos expressos pelo gestual das imagens retratadas, o direcionamento da luz do sol, a regra hierárquica no posicionamento das figuras, entre outros fatores, seriam constituintes de uma mensagem inscrita no interior da obra de Tonnerre - possivelmente um perturbador segredo. Uma densidade que não podemos alcançar a priori, já que o enigma seria solucionado com o surgimento do suposto quadro roubado, peça decisiva no encaixe do quebra-cabeça delineado pelo colecionador.
Na pretensiosa tentativa de decompor a arte, o colecionador se mostra meticuloso e cerebral em suas medidas de interpretação, utilizando os mais engenhosos esquemas de recriação – possibilitados pelo tableau vivant. No entanto, é vítima das limitações do método, que inevitavelmente “alude” muito mais do que “mostra”, ao contrário do que ele insiste em afirmar.

Como os próprios atores nos tableaux vivants, a hipótese do quadro roubado treme, pisca e sorri discretamente, deslizando para o território do incerto e do improvável, dada a arbitrariedade das evidências. A gravidade da forma desafina, estrategicamente, em seu conteúdo. Chegando a aparentar que tais vacilos seriam uma piada interna do cineasta, uma crítica à sisudez estóica própria de alguns ramos da História e da Crítica de Arte.

Considerando que este é um filme de 1979, época em que o cinema popular – e outros produtos da cultura pop – contavam com uma já constituída crítica especializada que os lançava de sua plataforma de arte menor a um plano mais elevado, a formalidade afetada e o rigor anacrônico – barroco? - que definem o filme parecem denunciar uma crítica velada a respeito das tensões entre cultura pop e cultura erudita presente nos debates da época.

Ao tentar decifrar a transcendência estética da obra de Tonnerre, o colecionador termina por transformá-la num grande pastiche, compondo uma colcha de retalhos que se conecta por uma falta de linearidade apenas tangível na intangibilidade do quadro roubado – a própria imaginação do colecionador, a conferir homogeneidade ao conjunto. O quadro roubado precisa existir para justificar que a interpretação não seja algo exterior à pintura.

Arriscando uma metáfora, poderíamos propor que o enigma do quadro roubado surge como a esfinge da pós-modernidade frente ao projeto moderno. Ao supervalorizar a interpretação restrita à obra, o colecionador se perde dentro dela. Reage como o sujeito moderno diante das fissuras dos métodos positivistas de investigação: tentando sustentar seus suportes de análises e classificações na busca de uma verdade indissociável da obra, o colecionar se dissolve em suas próprias paixões. Quando tenta decifrar, conter, encapsular, é devorado. E a única resposta plausível estaria no reconhecimento daquilo que ele não admite: a indolência da arte.


(1)Tableau vivant, segundo a Wikipédia, é a recriação, com atores caracterizados e cenografia adequada, da atmosfera expressa em pinturas. O seu plural é Tableaux Vivants.

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