segunda-feira, 24 de novembro de 2014

"O Rio Sagrado", por Daniella Tavares


A Índia está entre os 18 países de maior diversidade do mundo, em muitas das suas regiões encontra-se uma grande variedade de espécies endêmicas. Sendo espécies endêmicas aquelas que são únicas de uma região e possuem características diferentes das de outras espécies encontradas no mundo. Muitos casos de endemismos são resultantes do isolamento geográfico, isolamento este que faz com que indivíduos da mesma espécie sejam separados e se tornem estranhos dentre da sua própria espécie. Mesma sensação de isolamento que pode ser observada no capitão John, um militar norte americano que perdeu a perna na guerra e se sente um estranho entre o seu próprio povo.
            O capitão John é um personagem do filme O Rio Sagrado, Jean Renoir. Pode-se dizer que Renoir também partilha do sentimento do capitão, após o fim da II Guerra este vai aos Estados Unidos e tem que submeter sua individualidade cinematográfica ao sistema de produção dos estúdios. Essa sensação de estranhamento faz com que Renoir retome e ao mesmo tempo renove sua forma de mostrar o mundo através da arte.
            O Rio Sagrado não é apenas um filme sobre a cultura hindu, mas sim um filme sobre como os outros- ingleses e americanos- vêem essa cultura, entretanto sobre uma óptica distante, sem querer conhecer muito ou participar. É Harriet, a primogênita de uma família de ingleses que mais tem uma visão idealizada da cultura hindu, mas ainda é observado certo distanciamento. Isso é notado nas cenas que retratam a festividade do Diwali, na qual indianos perpetuam seus rituais do lado de fora enquanto ingleses permanecem dentro das paredes e ensaiam um baile.

            Um maior contato com o mundo indiano é tido por Bogey, o único filho homem, que, na sua curiosidade pela biodiversidade indiana, transpõe os limites da casa e despreza os costumes da família. Numa família onde as lições e costumes são importante, Bogey alega que não gosta de ortografia, mas sim de tartarugas. É Bogey o único personagem de toda a trama que tem certeza que seu mundo é aquele, mas é também o único que tem que abandonar o lugar justamente por se sentir tão pertencente a ele. 

sábado, 15 de novembro de 2014

Relações humanas regadas a sake em "A rotina tem seu encanto" de Ozu, por Lorena Arouche



















"No final o homem sempre acaba sozinho."

Dezessete anos se passaram após o cessar-fogo da II Guerra e com ela o fim da Guerra do Pacífico. O tempo parece não dar conta das cicatrizes e a referência ao conflito entre Japão e América do Norte é um espectro onipresente que paira na filmografia de Yasujiro Ozu. Uma guerra sempre se constituirá em um divisor e indexador temporal. O pré guerra transforma-se em apelação nostálgica. A guerra em si é realidade crua e sobretudo cruel. O pós é a esperança na reconfiguração de si e do futuro sem ela. Há um certo tom de humor quando o tema bélico vem a tona, um saudável exercício de rir de si, apesar da seriedade do assunto e de outro, a ocidentalização do oriente. Ozu questiona se, inversamente, o Japão houvesse ganhado a guerra, as crianças americanas estariam orientalizando-se. As sequências do Torys bar e o tema recorrente da marchinha de guerra estabelecem uma elo, um acesso a certos lugares da memória. O protagonista, viúvo e ex militar, refez sua vida graças a oportunidade de emprego na indústria capitalista. Contudo, "A rotina tem seu encanto" (1962) trata menos de guerra do que de solidão, ou o medo desta. Mulheres jovens são interpeladas ao casamento arranjado (propostas de casamento tratadas como business). Filha de pai viúvo sofre por haver perdido todas as oportunidades matrimoniais dedicando-se plenamente ao mesmo. Vale comentar a força social que a presença feminina desempenha aqui. Nota-se uma menor submissão heteronormativa, a passividade existe, entretanto, em menor grau que outrora. Grande parte das filhas, esposas, e irmãs, nesta obra, recusam-se ao servilismo gratuito com um: "faça você mesmo!". Ainda que o futuro das filhas, tradicionalmente, seja decidido por seu pai, é inegável o "crescendo" de suas agudas vozes.

As relações humanas e familiares, seus pontos fortes e fracos, situam-se em primeiro plano na narrativa regada a doses sake e outras bebidas como gatilho para a fluência das revelações, socializações e possíveis outras abordagens, a posteriori, menos rasas. Os personagens são comumente enquadrados no centro do plano e, metaforicamente, seus olhares nos atravessam em campo ou contracampo. O olhar de Ozu sobre seu universo, seu posicionamento e perspectiva têm por característica planos de câmera fixa no tripé, ou seja, ausência de movimentos mecânicos e dinamismo. O movimento que surge está inserido internamente no plano que oscila entre abertos, americanos, médios e alguns poucos zooms, nunca closes. Um obra auto reflexiva, pouco impelida para ação/ movimento com uso de dilatação temporal, características dos trabalhos do diretor. Os personagens transbordam passividade e resignação. De forma geral a ação que se desenvolve é mais verbal do que física. A câmera impõe distância, assim como os próprios entes entre si. Os personagens enquadrados em planos próximos, médios, parecem emoldurar-se em meio ao cenário e seus trajes coadunam-se e harmonizam-se em qualquer ambiente que estejam.

Os momentos de elipse, passagem de tempo, ou meros elementos de ligação entre sequências internas, concentradas nas relações, são pontuados por planos da cidade traduzidos especialmente pelas formas arquitetônicas de edificações habitadas ou habitáveis. As passagens entre os planos se dão de forma gradativa, do maior para o menor. Porém, os planos abertos revelam uma parte do todo apenas, e sucessivamente o recorte vai sendo redimensionado e fragmentado. Não vemos a cidade,
em si, seu cotidiano localiza-se no extracampo. O uso de figuração é bastante reduzido e controlado e algumas vezes oculto por sombras. A paisagem bucólica foi substituída pelo semblante do rápido crescimento industrial pós- guerra.

Além do exemplo acima mencionado, Ozu faz uso do extracampo em outros momentos: o casamento acontece foram de campo, as negociações sobre casamento entre as famílias, os encontros com o noivo e o próprio noivo.

"Aproveite a vida enquanto pode. Não desperdice seus pensamentos com a eternidade. Erga decidido o seu copo de vinho." Frases recitadas pelo professor Calabaza pouco antes de desabar embriagado reverberam para além da narrativa. Como se o grande mestre Ozu, no fim de sua vida e carreira, intermediado por seu personagem ancião, fizesse das palavras suas as dele. Tal personagem Calabaza tem papel fundamental na obra, por vezes ridicularizado ou incitando piedade entre os conhecidos, precipita toda a trama que envolve seus erros com sua filha, sua infelicidade e solidão como espelho de um futuro e de uma vida a ser evitada a qualquer custo.

"Bom trabalho", por Felipe Leal




"Quando se está em movimento, há algo a ver com o tempo… o movimento te dá realmente uma oportunidade de se mover nele, sabe?"
Claire Denis

Todo filme de Claire Denis é inevitavelmente um filme sobre corpos. Especificamente sobre seus movimentos, sutilezas e pulsões, mas mais ainda, talvez, sobre suas relações de poder. Se assim os classificamos, como numa politique de auteur, em que a matriz de seu cinema é o estabelecimento dessas relações corporais, pode-se dizer que Bom Trabalho (Beau Travail, 1999) é o seu filme-síntese, aquele em que ela explora sua temática ao máximo. Mesmo quando não estão em cena - o que é raro -, os elementos do filme fazem menção às individualidades físicas dos soldados da legião francesa no Golfo de Djibuti.

Inspirado em Billy Budd, conto do genial Herman Melville, e claramente tratando das mesmas relações de inveja, atração e grupo - o contra-mestre de um navio, inquieto com a presença do marinheiro que chama a atenção do capitão -, Denis utiliza ainda uma outra camada de referência, a do Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1963), filme de Godard que também se debruça sobre a temática da ocupação francesa na Argélia. O comandante da legião francesa é Bruno Forestier (Michel Subor), mesmo personagem e mesmo ator do filme de Godard. "Um homem sem ideais, um soldado sem ambições", como narra Galoup (Denis Lavant), o sargento que serve como ponto de vista para a narração da história. Não seria este Forestier o mesmo de 63, fugitivo, distante, consciente de que aquilo é o seu fim? Não seria essa uma conexão, seja por carinho ou admiração de Denis, com a Nouvelle Vague de seus predescessores?

Inapto à vida, à vida social, o personagem de Lavant é primordial para tratar as oposições entre grupo e indivíduo em Bom Trabalho. Por mais que sejam sempre tratados como um todo, a legião é sutilmente representada por soldados solitários, que, aliás, sequer são de origem francesa. A câmera capta silenciosamente, como uma transeunte observadora, os pertences dos soldados - como as camisas presas ao varal, cuidadosamente passadas por cada um, ou a máquina de barbear de Forestier. Da mesma maneira se deu a aproximação de Denis com os treinamentos da legião francesa: não recebendo a permissão para estudá-los, a diretora teve de observar sua rotina no deserto, à distância, posteriormente sendo treinada por um ex-legionário em Paris.


E é precisamente nisto que o filme encontra sua força: nos movimentos desajeitados dos soldados que dançam por entre as africanas, nas suas pesadas séries de treinos e divertidos momentos de folga, dividindo cervejas e celebrando aniversários, Bom Trabalho é uma coreografia da rotina. Se para Claire Denis a música é o mediador que impulsiona corpos e espaços numa relação, a trilha sonora - extraída da ópera também adaptada de Billy Budd, além dos sensuais ritmos árabes - não é menos crucial para o desenvolvimento desses jogos de poder. Do comandante às africanas, todos inscrevem suas personalidades através do corpo. Movimento e, consequentemente, existência, afirmação.

Toda a (suposta) tensão homoerótica do filme se dá especialmente a partir de Galoup e Sentain (Grégoire Colin, ator-fetiche de Denis), de cuja tensão nasce a cena mais poderosa do filme. Em movimentos circulares, sem sequer um toque ou palavra, os dois concentram sentimentos de inveja, ameaça e desejo, que exalam de seus olhos, físico e espaço entre eles. As sensações mais inerentes ao ser humano são assim estudadas pela câmera atenta da diretora. Nos termos da mesma, aliás, não há crença em um "cinema de arte", mas é praticamente impossível posicionar sua obra junto a tantas outras que vemos por aí.    

"A Chinesa", por Júlio Pereira


Ocorreu, recentemente, uma ressignificação interessante de Riocorrente, do paulista Paulo Sacramento, perante as manifestações iniciadas em junho de 2013 no Brasil. O filme foi realizado antes da erupção política nas ruas, mas, por ser lançado posteriormente, acabou estabelecendo uma ponte involuntária com acontecimentos reais. Por outro lado, podemos compreender a obra por outra ótica (bem mais instigante, diga-se): como um anúncio do que estaria por vir, ou seja, um pequeno retrato dum sentimento de revolta presente nos brasileiros anterior às chamadas jornadas de junho (nome problemático tendo visto que as manifestações não se cessaram) – e, claro, existe uma relação muito direta entre essa sensação de mal-estar com a explosão política no Brasil. Essa divagação serviu, de fato, apenas para poder falar um pouco sobre a força adquirida por A Chinesa, de Jean-Luc Godard, ao tentar enquadrar o filme num contexto político maior na França. Leia-se: prelúdio capturado em película do que seria o Maio de 68, cujo estopim foi, inclusive, a demissão de Henry Langlois, diretor da cinemateca francesa, por André Mauraux, então ministro da cultura.

Falamos duma obra fundamentalmente romântica, retrato honesto dum tempo onde a ideia da revolução sendo feita nas urnas, muito presente em certa esquerda contemporânea, se empalidecia diante do fervor revolucionário presente entre os jovens franceses. E é muito importante destacar o fato dos personagens de A Chinesa serem todos militantes da juventude, afronta direta a uma esquerda mais velha absolutamente institucionalizada, pouco preparada para a efervescência de ideias à esquerda pairando entre os mais novos. No âmago disso, existe o apreço forte pelas ideias maoistas, num período já desiludido com a URSS. O Livro Vermelho se impõe na obra menos como elemento figurativo de ideias do que representante de um desejo radical entre os personagens, ou seja, força motriz de todo o debate do filme.

Aliás, essa sinceridade, uma fé clara do próprio Godard, nos ideais de Mao Tse-Tung, celebração pura da Revolução Cultural na China, obstruem qualquer possibilidade de revisionismo, tendo vista que nós sabemos todos os excessos cometidos – embora muitos não-provados – pelo governo socialista de Mao – perdurado até hoje, mas com uma esquizofrenia grotesca: um dos capitalismos econômicos mais cruéis do mundo. Um período pré-descortinamento, em que os franceses, assim como os militantes comunistas do resto do mundo, não sabiam tão bem a barbárie por trás da utopia (como define Silvio Tendler em seu afetuoso documentário). Em suma: A Chinesa adquire o status (neste sentido específico, pois o filme é muito maior do que qualquer enquadramento genérico) de registro duma juventude extremamente engajada. Por outro lado, Godard foge do simplismo ao admitir o perigo duma falta de tática revolucionária elaborada, assim como o caráter pequeno-burguês, contraditório, imperfeito mas esperançoso, dos militantes franceses dos anos sessenta. Assim, o desfecho acaba aludindo também ao que seria o Maio de 68, reconhecendo a revolta como apenas o primeiro passo pequeno dum projeto político maior.

Godard promove seu panorama político, inserido no começo de sua fase estética mais radical, através duma linguagem pop constituída por colagens, hinos sobre Mao (cômicos pelo modo como são postos), encenações de importantes acontecimentos históricos – como a Guerra do Vietnã. Amálgama de elementos cinematográficos guiados por uma montagem de preceitos eisensteinianos, do choque mesmo, desencontro do áudio com a imagem para te extrair do universo diegético da obra. Acaba chovendo no molhado, inclusive, ficar comentando esses traços formais godardianos, ou seja, a quebra de toda a narrativa clássica hollywoodiana, rompimento com a impressão de realidade - alienante por natureza. Mas são constituidoras, e por isso fundamentais para a análise, de toda a linguagem anárquica, necessária para a expressão da pólvora prestes a pegar fogo de A Chinesa. (Acho curioso observar como o estilo de atuação bretchiniano empregado por Godard acaba sendo muito mais radical e estranho do que duas resistências – muito bem sucedidas – ao star-system norte-americano: a coralidade do neorealismo italiano e o coletivismo do supracitado Eisenstein.)


Ou talvez A Chinesa me toque tanto por retomar um sentimento pouco presente em nossa era desiludidada com as utopias, em que as ideias precisam voltar a ser perigosas – como dizia nos muros de Paris. Talvez por me lembrar um pouco das mesas de bar com amigos militantes discutindo sobre Bakunin e Marx – em pleno dois mil e quatorze, há pessoa dispostas a isso, acredite. Talvez por evocar imagens do poético molotov sendo arremessado nas forças repressoras do Estado. Afinal, por me deixar com aquela remota esperança de que um dia as coisas podem mudar radicalmente. E enquanto houver pessoas dispostas a assistir e discutir Godard, terei a certeza de que nem tudo está perdido.

‘À bout de souffle’ e a estética da Nouvelle Vague, por André Maia


Escrever algumas poucas linhas sobre ‘À bout de souffle’ de Jean-Luc Godard não é tarefa fácil, tampouco pode ser uma atividade despretensiosa, tamanha a importância e o significado desse filme para a história cinematográfica francesa e mundial inaugurada nos anos sessenta do século passado com a chamada Nouvelle Vague.

‘À bout de souffle’, no Brasil traduzido por ‘Acossado’, foi o primeiro longa-metragem dirigido por Godard. O ano, 1959. Um dos marcos iniciais do movimento de renovação do cinema francês conhecido como ‘Nouvelle Vague’. Percebido pela crítica na época como um verdadeiro manifesto estético, ‘Acossado’ remete claramente às características desse novo momento de se fazer cinema na França. Momento esse com traços definidos e singulares, e que podem ser elucidados resumidamente aqui, dentro das limitações proporcionadas pelo objetivo deste texto que é o de, tão somente, fazer um breve comentário sobre o filme.

Como uma primeira característica da estética desse movimento e muito bem efetivada em ‘Acossado’ é a opção de tirar o cinema dos estúdios. A ficção cinematográfica ganha as ruas, ou seja, existe uma valorização dos cenários naturais. ‘Acossado’ apresenta a Paris de 1959 – o Hotel Suède, a Champs-Élysées, o Café La Pergola em Saint Germain de Près, a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. O filme pode ser visto como um autêntico postal da Paris de Godard.

Essa escolha de cenários naturais, as ruas e os cafés e qualquer espaço de acesso público, torna o filme de Godard bastante autoral, uma vez que as filmagens ocorrem, não por acaso, em lugares bastante familiares para o cineasta. Essa característica acentua a dimensão autobiográfica da obra.
Podemos comentar sobre a montagem agora. É lugar comum entre os críticos de cinema que Godard é seguramente o mais inovador no que diz respeito à exploração do novo em termos de expressão cinematográfica na Nouvelle Vague. Godard revolucionou a montagem em ‘Acossado’. Regras de composição clássica abolidas, plano sequência retilíneo, plano sequência circular. Elementos visíveis em ‘Acossado’

que o distingue pela ruptura técnica. ‘Acossado’ marcou a história da montagem fílmica quanto à estrutura interna das sequências, a forma de encadeamento dos planos, os saltos de imagens.
Outra característica bastante acentuada em ‘Acossado’ e que tem relação direta com a montagem e a filmagem em lugar natural é a presença dos ruídos do real. Buzinas e freios e motores de automóveis, sirenes de polícia, além do registro sonoro dos meios de comunicação significativos na época tais como o rádio e as chamadas telefônicas.

Godard, com ‘Acossado’, efetiva uma verdadeira revolução da prática da montagem no cinema.
Para a história do cinema, ‘Acossado’ é considerado um filme fundador de um estilo, de uma corrente. Um filme que reinventa a forma de filmar. É, também, considerado um manifesto na arte cinematográfica no que se refere aos aspectos estético, econômico e técnico. É a obra-prima da Nouvelle Vague.

Por fim, ‘Acossado’ representa o maior sucesso comercial de Jean-Luc Godard. Seu primeiro longa-metragem e um dos filmes mais ilustrativos da estética da Nouvelle Vague, obtendo um lugar excepcional na história do cinema. Este é um filme que representa não só o fim de uma determinada época no cinema, mas, sobretudo, o ponto de partida do cinema moderno dos anos 1960. Uma afirmação do propósito, do manifesto e do programa da Nouvelle Vague.

"Acossado", por Sâmara Carvalho



O primeiro filme de Godard representa uma grande quebra de paradigmas com o cinema convencional norte-americano. As marcas de diferentes movimentos de câmera, montagem com jump-cuts e um roteiro livre fazem o filme causar um estranhamento no espectador até nos dias de hoje - o que torna a proposta do filme ainda bastante atual.

Em Acossado, assistimos à história de Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), delinquente que, em uma de suas fugas, acaba por atirar em um policial e, por isso, passa a ser perseguido durante o filme. Nesse meio tempo, Michel encontra uma mulher de seu passado, Patricia (Jean Seberg), uma jornalista americana que está vivendo na França.

Logo nos minutos iniciais da narrativa, o personagem Michel quebra o espaço de campo do filme e se dirige diretamente ao público. Esse é um dos muitos artifícios utilizados no filme para fazer o espectador criar consciência de seu lugar de observador da história, evidenciando que aquilo que está sendo visto não corresponde a realidade – coisa que o cinema americano insiste em esconder. Os jump-cuts, como o da cena em que o casal passeia de carro pela cidade, são a ratificação disso.

Além disso, o filme foi produzido sem delimitações de roteiro (tudo que Godard tinha eram algumas anotações), deixando um espaço grande para intervenções dos próprios atores nas falas e atos dos personagens, o que contribui para o ar de revolução formalista que paira sobre a obra. Mas, ao mesmo tempo em que a forma se distancia do cinema clássico, o conteúdo se aproxima em alguns momentos. Isso é bem marcado pelas referências feitas ao longo do filme, como a Romeu e Julieta e a Renoir.

O romance de Michel e Patrícia, no entanto, é construído com base em questões existencialista – algo muito recorrente na cinegrafia de Godard. A cena em que os dois estão no quarto escancara isso para o espectador: a mulher se encontra em um dilema entre o aprisionamento de se entregar ao amor ou o seu desejo vívido por liberdade. Essa cena é marcada por diálogos poéticos e fortes, onde frases impactantes fazem a mente do espectador ir ainda além do que o filme propõe, como quando Patrícia faz reflexões sobre a sua liberdade e sua infelicidade: "Não sei se sou infeliz porque não sou livre ou se não sou livre porque sou infeliz". Michel, em contrapartida, mesmo fugido da polícia, sabe que está preso ao seu sentimento por ela. Tanto que, no fim do filme, é esse amor que vai sentenciá-lo.

Durante todo o filme, vemos que Patrícia tem o controle da situação. Isso fica bem claro quando ela decide denunciá-lo para a polícia – optando, assim, pela sua liberdade. Mas mesmo tendo feito sua escolha, ela não consegue se desprender do amor que tem por Michel e vai contar que fez a denúncia. Talvez por um desejo secreto de que ele fuja. Mas ele continua ali, mesmo tendo a oportunidade de fugir. E é aí onde o filme termina: Michel, descoberto pela polícia, é baleado e morto.
A última cena do filme revela muito sobre os personagens. Durante o filme, vemos Michel passando o polegar ao redor dos lábios – hábito que foi repetido por ele diversas vezes. Ao vê-lo morto, Patrícia – em mais uma interação direta de personagens com o espectador – olha para diretamente para câmera e repete o gesto sempre feito pelo parceiro. Ao fim das contas, isso evidencia o quanto de Michel existe nela. E ainda mais: mostra que, mesmo em sua liberdade, ela ainda está e estará presa ao seu amor.

"A rotina tem seu encanto", por Hugo Nogueira



O filme de Ozu possui uma riqueza de características cinematográficas que saltam aos olhos do  espectador. Podemos destacar a planificação com enquadramentos fixos e que mantém certo distanciamento dos personagens, evitando o close-up. Destaca-se, também, a composição de quadro com uma riqueza de detalhes cenográficos, além do uso de planos de transição típicos, sem aparente função diegética. O filme possui uma construção temporal particular e Ozu retrata uma cultura e um tempo com sensibilidade e sutileza.

Nesse filme podemos inferir uma relação entre a interpretação e a planificação na criação do universo ficcional de Ozu. Em ambas percebe-se o contraste entre o distanciamento e a afetuosidade.
Se, por um lado, as personagens são contidas nos gestos e na expressão dos sentimentos, por outro, fica patente uma afetuosidade nesses mesmos gestos. Sem afetação e justamente pelo seu oposto, a contrição e a sutileza, somos levados a um sentimento de afeto pelas personagens e pela cultura retratada. Podemos apreciar a maneira como vivem.

Os sentimentos são contidos, mas não deixam de existir. Contrição e sutileza lhes conferem verossimilhança e força. Um choro contido, evitado e até ocultado acaba tomando maior potência quando verte-se em lágrimas inevitáveis. Não há arroubos de paixões avassaladoras como em outras estórias. Não há caricaturas exacerbadas nem sobressaltos. Apesar de não negar-se ficcional não estamos num universo onírico ou fantástico. Viajamos num quotidiano que por sua singeleza revela sua beleza.

Na planificação podemos notar algo parecido. A imagem é construída a certa distância e sempre fixa. Destaca-se o enquadramento que deixa transparecer a riqueza de elementos cenográficos e a mise-en-scene única de Ozu. O cinematógrafo posiciona-se estático a certa distância e pacientemente capta a entrada e a saída dos atores e suas ações. Por outro lado, em alguns momentos nos encontramos, junto com a câmera, mais próximos das personagens. Próximos o suficiente para captar uma tenção emocional surgida através da narrativa, mas não tão próximos ou invasivos quanto num close-up que se apropria do rosto do ator.

Ainda quanto à planificação, em alguns momentos, em diálogos mais íntimos, em vez do plano e contraplano tradicional, nos vemos deslocados a uma perspectiva subjetiva alternada. A personagem fala como que diretamente para a câmera, a qual se posiciona no lugar do interlocutor. Em vez de planos alternados oblíquos, que mostram detalhes das personagens como os ombros. Vemos uma alternância de planos subjetivos frontais, como se o olhar do espectador fosse transportado alternadamente á perspectiva das personagens. É curioso perceber isso e ainda o estranhamento causado ao olhar. Na tela, através desse recurso, as figuras acabam se sobrepondo com a alternância das imagens. Disso vem o estranhamento. É como se a imagem do anterior permanecesse no seguinte nos causando a impressão, por instantes, de serem a mesma pessoa. A consequência é a sobreimpressão e confusão das personagens, mesmo que momentânea. Talvez essa montagem alternada de planos, em que personagens diferentes possuem o mesmo enquadramento em planos que se intercalam, sugira que elas dividem, naquele momento, ideias, sentimentos ou conflitos em comum ou parecidos ou correlatos.

Outro ponto interessante na construção fílmica de Yasujiro Ozu são os planos de transição. Apesar de serem aparentemente sem função diegética, cumprem o papel de localização espacial e temática do expectador na narrativa, além de costurarem a continuidade fílmica. Esses planos mediam planos de ação ou diálogo e geralmente são acompanhados de trilha sonora e efeitos sonoros sutis. A função da trilha é manter uma continuidade enquanto os planos transportam o expectador de um lado a outro. Se prestarmos atenção, esses planos tem uma relação temática e espacial com a estória e costumam se repetir durante a narração, reafirmando o lugar e o clima de determinada personagem ou ambiente na trama. A casa do filho mais velho está associada a determinado plano de transição, da mesma forma o bar e a casa do professor.

Há ainda uma sutileza sonora. Em determinado plano de transição mostra-se um trem que entra e sai do quadro. O efeito sonoro do trem passando se repete subtilmente em diversos momentos do filme, inclusive em planos de transição nos quais tal efeito aparentemente não caberia. Talvez a inserção desse efeito sonoro reforce a ideia de passagem, tanto no sentido de passagem de tempo quanto no sentido de mudança. Por outro lado,p podemos nos indagar se não se trata de uma referência ao tempo cíclico do oriente, como um metrônomo a marcar o compasso da estória e suas voltas.
O filme “A Rotina tem seu Encanto” é um pródigo manancial ao cinéfilo. Repleto de elementos cinematográficos sutis e sensíveis, trata-se de uma obra virtuosa com uma cor única do Japão de Ozu.

Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois – de 1962, por Karolyn Fernandes













Neste filme de François Truffaut, somos apresentados aos personagens Jules (um alemão tímido) e Jim (um francês extrovertido), ambos ficam amigos passando a compartilhar muitos gostos e ideias em comuns. Jules e Jim levam uma vida boêmia em Paris, que se intensifica com a chegada de Catherine. Neste momento, o filme privilegia o emocional dos personagens, que se ligam profundamente. Com a entrada dessa personagem surgem no filme situações originais e diálogos interessantes, além de um embate na solidez da amizade da dupla, que fica atraído por ela. Catherine é uma figura feminina incomum, já que busca desafiar as normas sociais da época, desejando liberdades masculinas sempre tão tradicionalmente negada as mulheres. Com isso, a personagem de Jeanne Moreau pode ser vista como atemporal, uma vez, que simboliza a libertação do feminino no cinema. Evidentemente, isso é notado em cenas como a que ela se veste de homem e pinta um bigode a fim de sair pelas ruas de Paris fumando uns cigarros. Logo, suas atitudes no decorrer do filme realçam sua emancipação dos preceitos que aprisionaram seu gênero no cinema.

Adiante, notamos que os personagens se encontram distantes do cenário político da época, vivendo praticamente uma fantasia, que se resume apenas aos três. Há então uma quebra no paralelismo do filme que oscila para a realidade, na qual o mundo despreocupado dos personagens é assolado pelas consequências da Primeira Guerra Mundial. Mas maduros, eles se reencontram. Casada com Jules, Catherine reforça mais uma vez seu espírito livre ao revelar para Jim, suas precedentes traições ao marido e seu novo afeto por ele, que se entrega a essa paixão, aprovada por Jules. Assim, notamos o resgate dos personagens em rejeitar a moralidade convencional praticada na primeira parte do filme, na tentativa de viver outra lógica emocional de relacionamento que satisfaçam os desejos.

Dessa forma, notamos a intenção do enredo em abordar o tema do triangulo amoroso, na intenção de se refletir a cerca do amor livre, uma vez que o fracasso da concretização de um ideal de vida que explora outra lógica de amor inescrutável, mas convincente, pode ao menos lançar ao espectador um novo olhar a cerca dos limites da liberdade.


"Oito e meio", por Juliane Travassos



"Eu não creio que seja possível distinguir claramente o passado, o presente, o futuro, o imaginário e as lembranças daquilo que verdadeiramente aconteceu. Esse é o problema que tentei abordar em "Oito e meio"".
 Federico Fellini

O filme é construído na subjetividade, e em uma série de pensamentos que misturam lembranças, inventividade, aflição, e passa a embaralhar ficção com realidade, sonho e presente. A introdução do filme é um sonho e assim continua, a precisão do diretor é incrível ao explanar o inconsciente do personagem Guido.

A história trata de um homem chamado Guido, um cineasta em crise de criatividade, que aparenta um certo cansaço no seu modo de viver e resolve se internar à procura de inspiração, esperando uma solução para os seus problemas em última instância. Toda a enorme produção do filme, que irá trabalhar as gravações, fica exigindo informações sobre o roteiro que ele, aparentemente, não têm. Toda a equipe fica cercando o personagem principal, o que, felizmente, dificulta o seu processo, pois sem eles com certeza estaria mais perdido.

E é com esse roteiro que Fellini ganha o prestígio de ter usado uma estratégia que representou uma reviravolta para contornar o impasse criativo; o filme torna-se metalinguístico, que utiliza a linguagem do cinema para demonstrar um filme que seus personagens estão trabalhando, e autobiográfico, porque conta o que o próprio Fellini estaria sentindo: a dificuldade de elaborar um filme, com muitas cenas retiradas da sua vida, e que segundo ele, algumas foram concretizadas através de seus sonhos.

O próprio título do filme é autobiográfico, pois faz referência à carreira do Federico Fellini, que até 1963 (ano de lançamento de Oito e Meio), havia trabalhado como diretor em seis longas metragem, dois episódios de filme e um curta metragem, no qual ele considerou meio filme, por isso ele tinha escrito "Oito e Meio" logo no início da produção, e assim decidiu permanecer.

Fellini demonstra uma grande influência da psicologia analítica descrita por Jung, onde o inconsciente é um sistema que passa de geração em geração, contendo todos os elementos esquecidos e também novas informações estabelecidas e herdadas. É perceptível essa influência pelo grande foco dado aos sonhos do personagem principal (Guido), para esclarecer a si mesmo e os episódios de sua infância. Ainda seguindo as cenas em que o personagem central está sonhando: os movimentos dos personagens, da câmera e os diálogos que apresentam uma confusão impregnada, evidenciam impecavelmente como o personagem discerne o mundo real.


A câmera contorna as imagens do subconsciente do diretor, fragmentada de sarcasmo e inventividade. Os ângulos da câmera, as tomadas longas, incidindo de um personagem a outro, a fotografia bem expressionista na cena do carro com o personagem Guido, a trilha sonora muito pontual, e a quebra de cenas representando ora o real, ora o fictício, ou as visões de Guido, compõem essa belíssima obra de Fellini.

Trilogia de Apu, por Jonas Menezes




É notória a influência do realismo no cinema de Satyajit Ray desde seus primeiros filmes.  É importante lembrar que ele inclusive iniciou-se no mundo cinematográfico após ter contato com Jean Renoir, durante as gravações de "O Rio Sagrado”. Por tratar de forma tão simples e delicada de temas cotidianos tão comuns e universais, como a miséria, Ray torna seus filmes atemporais e impactante em qualquer cultura, expandindo seu cinema até mesmo para o ocidente, onde é aclamado. 
 A Canção da Estrada, primeiro e talvez o mais tocante da trilogia, foi um dos filmes pioneiros no que diz respeito a romper com as tradições indianas mais fantasiosas e conseguir sucesso internacional. Ray levou ao ocidente uma visão muito viva da cultura indiana. A história que terá como personagem central Apu, relata a vida de uma família extremamente pobre que vive numa aldeia em Bengali, interior da Índia.  Ray revela muita sutileza em sua. É possível identificar facilmente o interesse que Ray demonstra ter com seus personagens A mãe, pai, irmã e bisavó são apresentadas paulatinamente nesse filme que exige paciência para perceber a construção e evolução de cada personagem. O destaque neste filme está nas personagens das mulheres marcantes. Mãe, irmã e bisavó.
Enquanto o pai que é um pregador, está procurando, sem muito sucesso, realizar seus sonhos profissionais, a mãe sofre os percalços de cuidar sozinha da filha rebelde e impulsiva, Durga, que é o destaque deste primeiro filme. A trama deixa em primeiro plano um relato realista e de tom documental do dia a dia desta pequena família, que sobrevive à pobreza, expectativas frustradas e tragédias naturais com muita força de espírito. Em meio a esse cenário, Apu nasce e com o passar do tempo inicia seus estudos.  Vários momentos ficam guardados na memória. Em uma das cenas mais belas cenas deste filme, os dois irmãos, brigados por conta de um pedaço de papel que pertencia a Durga, conciliam-se em torno do local que mais despertava a curiosidade do menino e que sempre pedia para ser levado lá: A linha de trem. É possível notar que há nisso uma simbologia de explorar o “mundo lá fora”, representa uma nova perspectiva de realidade num futuro distante. O trem irá levar Apu um dia consigo, mas não Durga. Há a iminência de uma tragédia que percorre todo o filme, mas não de uma forma angustiante. Em uma sequência bastante emblemática, a menina declama os versos “Não se aproxime, menina, da água, fique quieta, olhe que eu sou a morte” como que prevendo a fatalidade vindoura. Logo em seguida há um corte com fusão para outra sequencia, onde a mesma é mostrada doente em seu leito. Doença está que culminará com sua morte. 
A resignação andará concomitantemente com uma esperança tênue de uma vida futura melhor. Em O Invencível, segundo filme da trilogia, a família mudou-se para outra cidade e Apu, que agora possui cerca de 10 anos, se tornou uma criança bastante astuta. O personagem de Apu é mais bem desenvolvido nesta segunda parte, provocando forte empatia no público.
 Outra tragédia acontece: Após perder a irmã, ele precisa lidar com a morte do pai. Apu e a mãe veem-se forçados a retornar para o interior e viver sob os cuidados de um parente, onde a situação é mais insatisfatória que nunca, uma vez que após ter contato com a cidade grande, a vida simples na aldeia não agrada mais o menino, que almeja um mundo maior. Ele que seguia os passos do pai trabalhando como pregador, consegue convencer a mãe a matriculá-lo em uma escola local. Lá se destaca entre os demais e após alguns anos, forma-se no ensino médio. O conflito entre mãe e filho se instaura quando surge a oportunidade do rapaz estudar em uma universidade em Calcutá. Sua mãe que perdeu Marido e filha, temendo a solidão e a miséria, se contrapõe, chegando inclusive a agredi-lo fisicamente. No entanto, esperando o melhor para seu filho, ainda que relutante, logo em seguida abre mão da companhia do mesmo, para sempre, uma vez que a mesma, acometida por uma doença também falece, deixando Apu “sozinho” no mundo. É o fim de todos os laços do menino com um mundo passado, que morreu junto com ela.
Na última parte da Trilogia, intitulada O Mundo de Apu,  deparamo-nos com um Apu recém-formado em seu curso superior, no entanto ainda enfrenta muitas dificuldades, como o atraso no aluguel da casa onde mora, ainda assim não desanima. Em um diálogo com seu ex colega de classe, Apu conta que está escrevendo um livro, e ao narrar a história acaba deixando transparecer que é uma auto biografia: “É sobre um rapaz do interior. Pobre, mas com sensibilidade. Seu pai é sacerdote. Ele morre  o rapaz vai para a cidade, não quer ser sacerdote, quer estudar, tem ambições. Estuda. A educação, as dificuldades, alargam sua mente e aguçam o seu intelecto. Mas além desse pendor fortemente intelectual, tinha imaginação e sentimentos. Sentia que havia dentro dele as sementes da grandeza, mas não as fez brotar, mas isso para ele não era uma grande tragédia, suas dificuldades não terminavam, continuava na pobreza, mas isso não o desanimou. Um dia se deu conta que deveria enfrentar a realidade. Ele não quer fugir da vida, não quer escapar. Ele está realizado, quer viver”.  Tal descrição dada pelo próprio Apu resume sua própria vida e denota sua grande resiliência. O destaque deste filme está na belíssima atuação de  Soumitra Chatterjee, que encena o protagonista.
Apu foi visitar a casa do seu amigo e lá se vê em uma estranha situação em que é forçado a se casar com a prima de seu melhor amigo, imediatamente. Para não desonrar o nome da família dela, e para que a mesma não torne-se amaldiçoada pela vida, segundo a crença local. Já que o pretendente da noiva era louco. Relutante a princípio, justamente porque tal crença é oposta aos seus princípios, medieval segundo suas próprias palavras, Apu com toda sua sensibilidade, acaba casando-se com Aparna. Mas a vida feliz do casal está fadada a ser breve, uma vez que outra desgraça ocorre: Aparna morre no parto, deixando como herdeiro um menino. Menino este que é rejeitado por Apu, por atribuir a morte de sua esposa a seu nascimento.


Há ainda dois pontos importantes presentes nos três filmes a serem comentados. O primeiro diz respeito à mise-en-scène do diretor, que além do trabalho intenso com o conteúdo imagético e detalhes como expressões corporais, planos-detalhes dos olhares, mãos sofridas e outros, tem na natureza um elemento na narrativa. Seja para dar carga lírica e poética acrescentando tom contemplativo ao filme, seja para exercer função de motivação composicional, sendo praticamente um personagem, já que a mesma faz avançar a trama do filme, como na tempestade que danifica a casa e no resfriado que culmina com a morte de Durga. O outro ponto importante diz respeito à crítica sócio comportamental. Em muitos momentos da trama vemos o abandono sendo praticado por parte dos personagens. A bisavó que sofre descaso por parte de seus parentes, chegando a ser expulsa e por conta disto acaba morrendo na floresta. O pai que determinado a consegui dinheiro, passa meses fora de casa e ao voltar encontra sua filha morta e situação semelhante ocorre com Apu nas mortes de sua mãe e esposa. Fazendo uma alusão à ambição e ânsia por dinheiro que torna as pessoas máquinas de trabalhar, de certo modo insensíveis e nos remetendo à pobreza de experiência elucidada por Walter Benjamin. 

Cul-De-Sac (Roman Polanski, 1966), por Yure Araújo de Melo



Se me fosse pedido para definir o filme Cul-de-Sac, do diretor Polonês/Francês Roman Polanski, com apenas uma expressão, essa expressão teria que ser “bem-humorado”. Com um senso de humor bastante negro e peculiar (que lembra em diversos pontos o humor que vemos hoje em dia nas obras dos irmãos Coen), o filme traz situações bem estranhas, vividas por três personagens tão diferentes entre si que é impressionante o modo como eles são interessantes juntos.
A trama começa quando os bandidos Dickie (Lionel Stander) e Albie (Jack MacGowran) empurram um carro em direção a um velho castelo medieval localizado num istmo. Com Albie ferido mortalmente, cabe a Dickie ir ao castelo procurar ajuda para o amigo, mesmo estando ele também ferido no braço. Os proprietários do castelo são o condescendente George (Donald Pleasence) e a sua belíssima jovem esposa Teresa (Françoise Dorleac), que se veem forçados a aceitar a dupla de malfeitores em sua casa. Porém, com a subida da maré, George se vê ilhado esperando o resgate de seus chefes criminosos (uma conexão com o título do filme, que numa tradução literal significaria “Sem Saída”), e várias situações ocorridas no castelo faz com que a relação entre os três personagens se modifique constantemente, de forma curiosa e até mesmo divertida.
A relação forjada entre os personagens por essa inusitada situação parece ser o ponto mais importante do enredo, por si só. Nota-se no início do filme, quando Dickie finalmente se apresenta e exige a ajuda do improvável casal, que George é um velho conhecido da dupla de bandidos, daí vindo todo o seu medo e prontidão para servi-lo. No final do filme essa relação é sugerida novamente, quando George sussurra, em pânico, o nome do chefe dos bandidos, convencido de que ele chegará para exigir vingança. Porém, em momento algum a narrativa nos diz qual é a história entre os três homens: o passado das personagens nunca é abertamente explorado pelo roteiro, que foca exclusivamente nos fatos que ocorrem durante a invasão da propriedade por Dickie.
O filme, porém, consegue nos dizer muito sobre as personagens com apenas esses fragmentos de história, o que é um feito admirável. Pela cena inicial onde Dickie espia Teresa com o seu jovem vizinho (que descobriremos depois se tratar de seu amante) percebe-se que seu casamento com George não anda às mil maravilhas; pelo ressentimento de George pela mulher chamada Agnes (que, a propósito, só é revelado seu nome durante o resto do filme), sabemos que o seu último relacionamento terminou de forma trágica para ele, e que ainda não foi superado. Nenhum desses momentos é explicado com clareza durante todo o longa, mas isso não é necessário: apenas os detalhes bastam, e as ações dos personagens no rumo da história dizem o bastante sobre eles.
O relacionamento entre George e Teresa talvez seja o que mais causa estranheza em toda a estranha história. Ela é uma mulher sensual e decidida, cheia de vida, enquanto ele é um homem nervoso e medroso, que age com uma atitude extremamente passiva em relação a tudo que ocorre ao seu redor. Essa atitude é constantemente criticada por Teresa durante o filme, que o acusa de não ser homem o suficiente e exige uma postura mais enérgica do marido contra a imposição do violento Dickie, sem sucesso. Ela passa então a se juntar ao bandido no trabalho de tirar sarro do próprio marido, criando as situações mais divertidas (um humor bem ácido) do enredo. Sem a mínima química romântica, porém com um carinho perceptível entre os dois, George e Teresa parecem curiosamente mais um casal de irmãos do que marido e mulher.
A personagem de Dickie talvez seja o elo que une todas as peças do filme: violento e sarcástico, todas as ocasiões divertidas passam por ele, que empresta o seu humor bruto para diversas ocasiões ocorridas no desenrolar da história. As cenas onde ele precisa fingir ser o mordomo do casal na frente dos visitantes são impagáveis, e pessoalmente são minhas sequências favoritas. A trilha sonora também combina muito bem com o filme: as músicas são raras, sempre saindo do rádio ou da vitrola do castelo e muitas vezes terminando abruptamente de forma bem humorada (como quando o menino travesso arranha o disco de Teresa), em um modo que se conecta bastante com o humor fatal de Dickie.

Cul-de-Sac é uma obra que vale a pena ser vista por todos os cinéfilos. Divertidíssimo e com atuações geniais, sobretudo por parte do estranho personagem de Donald Pleasence, o filme conta também com uma belíssima fotografia e um roteiro brilhante, que desenvolve muito bem os personagens sem a necessidade de se aprofundar nos seus passados, encontrando no presente a maior chave para o entendimento sobre eles.

"A hora do lobo", por Júlia Meireles



Com a mistura de realidade e fantasia, loucura e lucidez, Ingmar Bergman traz nesse filme a exposição de conflitos humanos e psicológicos. Através de uma narrativa difícil e permeada de incertezas, o diretor cria uma atmosfera sombria e intrigante a respeito da vida de um casal, que se muda para uma casa afastada da sociedade. Através da convivência diária dos dois, cresce, misturando-se passado e presente, uma tensão entre os dois, entre as pessoas que os cercam (imaginárias ou não) e as lembranças do passado, trazidas gradualmente.
O filme começa introduzindo o espectador no que seria o apanhado de informações do pintor Johan (Max von Sydow) desaparecido ,através de seu diário pessoal. Ele e sua mulher, Alma (Liv Ullman), teriam se mudado para uma casa numa ilha, afastada de tudo e de todos, onde passaram 7 anos. Com o relato direto de Alma, frente a câmera, começa gradativamente uma mistura entre o presente, onde ela expõe a sua relação com o marido, e o passado, através da retomada direta tanto do diário dele, quanto de situações vividas pelos dois, que poderiam estar escritas ou não.
A partir da constante mistura desses dois tempos, notam-se as perturbações que estaria vivendo Johan, enquanto Alma tenta ajuda-lo constantemente. Grávida, ela passa a acompanhar e tentar entrar nos devaneios do pintor, que parece estar passando por uma crise de identidade, trazendo a todo momento lembranças passadas, misturadas a visões de outras coisas e pessoas. No momento em que o espectador parece convencer-se da possível loucura de Johan, é introduzido no filme uma cena que traz Alma conversando com uma das personagens do devaneio, a qual lhe informa da existência e localização do diário do pintor dentro da casa. A partir disso, Alma tem acesso aos escritos de Johan e mais uma vez o espectador assiste a lembranças lidas e vividas pelo artista. Outra cena que gera a dúvida no espectador entre realidade e fantasia, é a do casal em meio as pessoas até então julgadas como imaginarias, num casarão perto de onde o pintor e sua mulher estariam morando. 

Nota-se por parte dos personagens da casa, a exaltação do trabalho artístico dele, ao mesmo tempo em que se vê uma vontade de afasta-lo de sua mulher, quando esses buscam relembra-lo de coisas passadas marcantes em sua vida. A postura de Alma, no entanto, é sempre mostrada como uma mulher apaixonada que acompanha Johan em seus medos e situações depressivas demonstradas no filme como, por exemplo, através da dificuldade e quase impossibilidade que ele apresenta para dormir de noite, passando a madrugada em claro com Alma ao seu lado, a qual escuta os seus sonhos e pensamentos. É num desses momentos que o nome do filme é citado pelo pintor, quando este fala que 'A hora do lobo', na madrugada, é o momento em que mais pessoas nascem e morrem, gerando ainda mais tensão a respeito da mente do artista. 

A presença de uma lembrança especifica na vida de Johan, na qual o espectador toma conhecimento do que teria sido o grande amor de sua vida, uma mulher de nome 'Veronica Vogler' começa a criar um atrito entre ele e Alma, principalmente quando ela é atiçada a respeito disso na cena do casarão. Essa tensão atinge seu cume quando um dos personagens vizinhos vai à casa dos dois para convida-los para jantar, dizendo que Veronica Vogler estaria presente, e entrega uma arma para Johan, sob o pretexto de que ela seria útil para os pequenos perigos da ilha. A partir dessa notícia, Alma pede para o pintor relatar sobre Veronica e o conflita a partir da diferença entre o relato dado por ele e o que ela teria lido em seu diário. A partir desse comportamento de Alma, o artista atira em sua mulher e parte para o casarão encontrar Veronica.

Essas cenas finais do filme confundem ainda mais o espectador a respeito do que seria real ou fictício, no momento em que para o pintor encontrar Vogler, este passa por diversas situações estranhas e 'irreais' dentro daquele universo que seria o jantar. Ao encontrá-la é atingido o ápice da perturbação presente em todo o filme, onde todos os personagens, imaginários ou reais, aparecem junto a ele e Veronica, ainda na casa, rindo enquanto os dois estão juntos. 

Mais uma vez o espectador é levado a crer na fantasia que seriam os personagens para a cabeça do pintor, no entanto tudo se confunde outra vez quando Alma, que teria sido atingida pela bala apenas de raspão, o espera em casa escondida , sai a sua procura pela floresta, encontra-o, grita por ele, o assiste sendo espancado pelos personagens vizinhos e depois desaparecendo. Após tal fato, na ultima cena do filme, ela questiona a existência ou não daqueles que os rondavam e se tal fato teria ocorrido porque ela o amara demais e começara a enxergar o que ele enxerga, ou amara de menos e foi por isso que tudo ocorrera daquela forma.

Com uma fotografia bem trabalhada, repleta de jogos de sombra e de luz, Ingmar Bergman mistura realidade e fantasia com destreza, e cria momentos de dúvida com sua montagem pouco convencional. As atuações de Liv Ullman e Max Von Sydow trazem para o filme uma carga emocional verdadeira, sem apelar para recursos melodramáticos.


"Um caminho para dois", por Vanessa Beltrão



Um Caminho para Dois é uma comédia romântica que mostra em um momento mais crítico da crise em seu casamento que leva Joanna (Audrey Hepburn) e Mark (Albert Finney) a recordar os momentos simples e felizes que tiveram ao longo dos 12 anos que estão juntos e nos levam junto com eles.
Joanna é uma mulher bonita, elegante e bem humorada que faz parte de um coral de mulheres e é sempre apresentada bem vestida e com diferentes cortes de cabelo ao longo do tempo. Mark é um arquiteto desajeitado que sempre esquece o passaporte e também muito bem humorado, fazendo piadas sarcásticas e brincadeiras o tempo todo, formando uma relação um tanto “princesa e plebeu”.
Os dois se completam. Se completam nos diálogos, nas brincadeiras, no cinismo, nas piadas, criando uma intimidade real, mergulhando o espectador nessa intimidade. Eles amadurecem e mudam juntos, indo de uma relação simples e fugaz á um casamento frio e em crise.
Com uma narrativa não-linear, o relacionamento dos protagonistas é apresentado em flashbacks num ordem não-cronológica, alguns ligados por um diálogo ou um por uma montagem que faz com que eles se encontrem em situações opostas de épocas diferentes. O estilo da narrativa proporciona ao espectador acompanhar as mudanças no estilo de vida do casal e tentar, junto com eles, encontrar o que aconteceu para se tornarem tão frios um com o outro, já que nem eles sabem ao certo.
 A não-cronologicidade é ressaltada nos figurinos e automóveis que são apresentados de acordo com a época e situação financeira dos personagens mas também é um tanto confusa com os diálogos repetidos em momentos diferentes, comparando situações, indo á frente e depois regredindo, o que também prende a atenção á trama.
Os diálogos são construídos de forma á mostrar a intimidade entre os personagens, não só os protagonistas, mas todos os personagens e a comédia tem um toque de cinismo e sarcasmo, sendo uma comédia que não é feita para se entender sem pensar e apenas rir, é uma comédia inteligente, que se associa com a relação dos personagens.
Apesar do relacionamento de Joanna e Mark é bastante humana e real, com sorrisos, lágrimas, medos, separações, traições e não com o clássico “eu te amo/nada vai nos separar/vida perfeita” dos filmes, a típica relação “bem sucedidos no amor, mal sucedidos financeiramente” e vice-versa é bastante forte no filme.
­­­Depois de atravessar os 12 anos da relação de Jo e Mark e se encantar com os detalhes de montagem, diálogo, a construção dos personagens e da própria relação, chegamos á conclusão de que o casal não pode de separar. Simplesmente não pode. E não se separam. Ao fim é apresentado um flashback cronológico, utilizando os automóveis usados ao longo do filme como objeto de ligação entre as épocas, de uma forma rápida e divertida e logo após, na última cena, é mostrado que mesmo depois de toda a frieza e distanciamento, ainda existe um pedaço dos jovens e do amor de 12 anos atrás.








"Uma mulher é uma mulher", por Juliana Soares Lima


"Original, jovem, audacioso e impertinente, sacodindo as normas do filme de comédia clássico". Características suficientes para Uma Mulher é Uma Mulher ganhar o prêmio oficial do júri do 11° festival de Berlim. Para não ficar atrás, graciosamente enquadrada pelas lentes apaixonadas de Godard, com quem se casara no mesmo ano, Anna Karina leva no mesmo festival o prêmio de melhor atriz, "pelas qualidades raras em atrizes iniciantes". Sua beleza, juventude e leveza, além da expressão da liberação sexual na personificação de Angela, são características marcantes na atriz em início de carreira.
Falando em liberação sexual, a personagem principal é a representação de todas as mulheres e de sua busca pelo papel na sociedade. E Godard contrapõe o tempo todo a liberação feminina com sua fragilidade: Angela faz strip-tease em um cabaret, namora com Émile mas  é a paixão de Alfred, amigo do seu namorado. Enquanto afirma sua independência ao insistir na ideia de ter um filho mesmo com a oposição firme de Émile, discute com ele sobre a beleza ou a feiura de uma mulher que chora, afirma que "nada é mais bonito do que uma mulher que chora" e que as mulheres modernas que tentam imitar os homens são idiotas por não chorarem. Decidida a ter seu bebê, e por ideia do próprio Émile, tenta ter seu filho com o terceiro membro deste triângulo amoroso. As incertezas e a indecisão de Angela diante desse triângulo nutre de comicidade todo o desenrolar do filme.
A complexidade da idiossincrasia de Angela segue em paralelo com a complexidade da montagem do jovem diretor, o filme trata-se de uma verdadeira revolução de conteúdo e forma. O som é atração a parte na obra de Godard, tirando sempre o espectador do lugar comum: a trilha sonora descontinuada, os cortes abruptos da música e o som que interrompe falas são mais marcantes aqui do que nunca. Além disso a própria encenação se dá de forma inovadora quando de repente Angela se vira para o espectador e dá uma piscadela, por exemplo, ou promove junto com seu namorado na cozinha de sua casa uma encenação direcionada aos espectadores.
O filme também pode também ser lido como uma homenagem ao musical americano. Descrito por ele mesmo como um "musical neo-realista", tornando ainda mais complexo o conjunto do filme, por tatar-se de um verdadeiro sincretismo ao juntar em um só termo um gênero essencialmente Hollywoodiano com um movimento totalmente anti-americano. "Cinéma/ Comédie/Musical" aparecem em letras garrafais no início do filme. Em uma das sequências Angela diz: "Eu gostaria de estar num musical com Cyd Charisse e Gene Kelly!". Além disso, a própria quebra da realidade exemplificada anteriormente relaciona-se diretamente com a quebra de realidade utilizada nas cenas do filme do gênero musical.

Em Uma Mulher é Uma Mulher, Godard transforma a história aparentemente simples de uma stripper num filme riquíssimo, graças à maneira com que explora a individualidade da personagem principal e graças ao seu jeito único de brincar com os diálogos, com a encenação e com a montagem.

"Jules et Jim", por Raian Oliveira



É impressionante como o filme Jules et Jim (Truffaut, 1960) consegue se manter completamente atual e transgressor com mais de cinquenta anos decorridos e conserva em si uma modernidade pungente tanto esteticamente quanto na questão temática. Trazer uma “revolução” no padrões de relacionamentos, questionar o próprio status do casamento e trazer todas as mudanças atreladas a uma figura que se construiu na dependência de um outro gênero é uma forma arrebatadora de se discutir o tema.

Apesar do filme receber o nome dos dois amigos, o desenlace da trama tem como imã e catalisador de todas as ações a inesquecível Catherine (Jeanne Moreau). Sem muito sermão e pudor ela age em função de si mesma. Seguindo o fluxo da sua vontade, os planos e idealizações de futuro se condensam no aqui-eagora, em um certo apego ao que está no presente e reflexo de sua vontade além
da moralidade. Uma discussão-monólogo na beira de um rio desencadeia um protesto aos moldes dela, utilizando seu corpo como contestação ela se joga no rio ao escutar de Jules (Oscar Werner) seus comentários sobre a inferioridade feminina. “Em um casal, a mulher deve ser fiel. A fidelidade do homem não importa” diz Jules para Jim (Henri Serre) em um de seus “argumentos”enquanto Catherine passeia antes de se jogar.

Não passa muito tempo para que Jules e Jim se apaixonem por ela e iniciem um triângulo amoroso ao qual ela centraliza todas as atenções e faz com que tudo gire em torno dela. Descontinuidades na montagem — que bem melhor explorados em Acossado (Godard, 1960) — e cenas congeladas por alguns frames intensificam a experiência dessa adaptação literária de Truffaut. Em um diálogo com Jules e Jim, Catherine explicita o quanto havia aprendido e mudado após conhecer eles e lindamente começa a esboçar suas expressões normais antes do encontro e da vivência que, magistralmente congeladas, dão a impressão de fotografias dentro do filme, de certa dilatação no tempo como forma de contemplar tudo aquilo que logo mais voltará a se dissolver em movimento.

A casa em um local isolado, cercado predominantemente por árvores, torna-se refúgio e criação de um reino utópico ao qual a rainha é Catherine. Tudo se torna possível no campo dos sentimentos. Jules, Jim e Albert (Serge Rezvani) convivem como se toda possessividade-romântica-monogâmica fosse quase que completamente abolida. A troca de parceiros é constante. Catherine fala em
algum momento do filme que o amor é como ciclos que vêm e voltam, resumo do que seria não só o seu, mas o de Jim — que se apaixona e desapaixona não só por Catherine, mas por Gilberte também — e de todos que se escutam além dos segredos-tabu escondidos pelo mito do amor eterno. Mito esse que, inconformada com o fim do que seria o controle de Jim, anunciado por um casamento definitivo, tenta mata-lo como forma de eternizar e manter o controle sobre aquilo que começara a fugir dos seus planos.

Jogar-se no rio, como havia feito antes, agora como ato final e percepção de que não se poderia ter controle sobre tudo, principalmente em uma relação egoísta. Eternizar e permanecer aquele que tenta fugir, e mais uma vez o rumo dele é preso ao dela. Dessa vez, não mais como a primeira, os resultados de seu protesto corporal não serão vistos por ela, mas ela sabe, em alguma parte, a
sua cristalização não só na vida de Jules, mas na de tantos outros homens pelos quais dominou. E, com certeza, por todos aqueles que se dedicaram a assistir a essa obra-prima. 

O Estranho Caso da Crise na Aristocracia do Velho Continente, por Danillo Medeiros


“O Estranho Caso de Angélica” é um muito filme interessante, e antes de começar a assistir, pensava que se tratava de um caso de morte do qual iria ser investigado no decorrer do filme, mas estava enganado. Nos primeiros minutos ainda deram a entender isso. A estranha morte da jovem Angélica, todo o ritual dos seus familiares sobre seu corpo agora sem vida, etc, mas quando o Isaac a enquadra na sua câmera fotográfica e Angélica muda suas expressões faciais, comecei a entender (ou não) do que o filme se tratava.
Não digo que comecei a entender a partir desse momento citado acima, mas sim que, a partir daquele momento, entendi que tudo o que eu achava do que ia se tratar o filme estava sendo desconstruído. O filme vai além da morte da personagem, o filme mostra o caminho para o estado de loucura que se encontrará o protagonista nos últimos minutos da película. Isaac embarca numa confusa jornada para algo do qual não conhece, mas que precisa descobrir o que é. As aparições de Angélica o confundem, o desestabiliza, o mata. Parando para pensar um pouco, o que confundia e desestabilizava as pessoas na época na qual o filme foi feito(2010)? A tão citada no próprio filme, a Crise Mundial. Mas vou deixar essa importante reflexão sobre a crise para um parágrafo mais à frente do texto, pois agora tenho que começar pelo começo.
A trilha sonora, essencialmente produzida num piano, remete ao primeiro cinema, aos filmes silenciosos e a tudo que se relaciona com o antigo. O filme se passa na década de 50, e é muito bem ambientado. Casas históricas, ruas escuras, músicas no piano, etc são usadas para acentuar um certo tom melancólico que o filme carrega por toda sua duração.
Nas primeiras cenas, todo esse tom melancólico é somado a todo um emparelhamento aristocrático da família da falecida. A forte ligação com a religião, a casa antiga, as roupas formais, e mais tantos outros detalhes que ligam a família aos padrões aristocráticos dos séculos passados. Aristocrático também é o fato de que Isaac, o fotógrafo, trabalha a moda antiga, nos remetendo a ideia do artista como alguém superior, alguém diferenciado. Isso se prova nas sucessivas perguntas da irmã de Angélica, que queria saber se o fotógrafo já havia tirado a foto, mostrando não estar familiarizada com o equipamento.
Usando o conceito de Personagem Conceitual, criado por Deleuze, que diz que tanto no real como no fictício, existem personagens que carregam uma certa e necessária carga filosófica, é possível identificar, nesse filme, a presença de 2 principais personagens conceituais, a Angélica e o Isaac.
A morte de Angélica é um marco no filme, todos acontecimentos e questões levantadas são baseadas na morte dela. Angélica é a personagem conceitual que carrega a crise mundial como conceito. A Crise Mundial que se iniciou em 2008 quebrou o mundo dos Desenvolvidos, destruindo a vida de muitos dos europeus. A morte da Angélica traz perturbação e tristeza a maioria dos personagens do filme, especialmente a sua família e a Isaac, assim como a crise fez a Europa e seus habitantes.  
Já Isaac, representa a falida aristocracia. Ele usa roupas formais demais em lugares inapropriados, ele utiliza de instrumentos antigos e até falou: “Eles preferem a moda antiga”. Ele representa o antigo, a elite (mesmo não sendo parte dela), representa antigos valores que foram quebrados no decorrer da história. No filme, esses valores elitistas e aristocráticos são quebrados com a morte de Angélica. A loucura de Isaac, que é sempre atormentado pelo fantasma de Angélica, nasceu da morte da mesma, e isso o leva a ter um trágico final. Tal história se relaciona, analogamente, a realidade europeia da época de produção do filme. Os luxos, a estabilidade e o desenvolvimento, foram dizimados pela chegada da crise, e dizimados gradativamente, assim como acontece no filme.
O tom melancólico do filme serve justamente para destacar essa analogia. As atuações cruas, a iluminação fraca, os planos abertos de câmera fixa, e tantos outros elementos, servem para dar esse necessário tom de melancolia, que simboliza, explicitamente, o sentimento da maioria dos europeus na crise.

Visando uma reflexão sobre o cenário de crise na Europa no final da década dos anos 00, o filme conta com um alto grau de excelência narrativa e principalmente técnica para fazer isso. "O Estranho Caso de Angélica" não se trata só da história de um homem atormentado por um fantasma, se trata, na verdade, de uma reflexão europeia (o filme não é só Português, pois conta com a colaboração de vários outros países europeus) sobre sua própria situação caótica.