quarta-feira, 23 de junho de 2010

"Carruagens de Fogo" por Lady Patrícia Oliveira





Aparentemente, a crença religiosa era tudo o que constituía as diferenças entre os jovens Harold Abrahams e Eric Liddell: enquanto o primeiro era judeu, nascido na Inglaterra, mas de origem lituana, o outro era um missionário cristão escocês. Algo relevante, se inserida no contexto de Europa pós-Primeira Guerra, mas que hoje talvez fosse coisa presumidamente banal. Porém, os dois rapazes tinham um ponto em comum que os “aproximava”: a paixão pela velocidade.

O filme Carruagens de Fogo (Chariots of Fire, 1981), conta a história real destes dois velocistas que acalentavam o sonho de participar dos Jogos Olímpicos, ainda que por motivos diversos. Abrahams corre por amor, mas também por auto-afirmação: ser judeu em um país de maioria cristã é um fardo, que o coloca numa posição defensiva e beligerante a todo o momento. Se mesmo dentro da Universidade de Cambridge, da qual é aluno, ele não escapa das provocações - e dos comentários do próprio reitor, cheios de irônico preconceito -, Abrahams tem convicção de que a imposição de sua conquista lhe trará o devido respeito.

Já Eric Liddell corre “em nome de Deus”, este argumento tão utilizado desde sempre pela humanidade, para justificar suas ações, grande maioria de atrocidades. Aqui, pelo menos, Liddell julga a causa nobre: trazer de volta a fé das pessoas. Ex-atleta, ele transforma suas missões em verdadeiros espetáculos, correndo, literalmente, para atrair os fiéis. Em uma delas, seu discurso comparativo entre a fé e a participação em uma corrida é feita de forma serena e veemente a um só tempo, iluminado ao término por um sol radiante, onde antes havia uma tempestade, como em um sinal de divina aprovação. E Ian Charleson leva o seu Eric Liddell com um carisma (in)crível (e não o perde nem quando, apegado à tradição, ele se recusa a participar de uma prova de velocidade que seria realizada num domingo, o dia sabático em que se guarda descanso), construindo talvez o personagem mais sólido do filme.

Carruagens de Fogo conseguiu arrebatar o Oscar da Academia de Melhor Filme, um feito para o qual muitos ainda torcem o nariz. Se não há grandes virtuosismos do diretor Hugh Hudson, o drama é bem dosado e a trilha composta pelo grego Vangelis nunca é inoportuna, com destaque para a música-tema, inesquecível. Abusando da simplicidade, Hudson conseguiu realizar seu filme sem levantar bandeira alguma. Ou melhor dizendo, ele levantou, sim, a bandeira de seu país. É notável o pendor do roteiro para o personagem cristão, o representante da maioria, assim como o relevo dado a vitória dos britânicos sobra a badalada equipe americana nas Olimpíadas de 1924. Ou seja, sob uma maquiagem quase perfeita, há o ufanismo que transformou a Inglaterra num país tradicionalista por excelência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário