quinta-feira, 24 de junho de 2010
“Cul-de-Sac”, por Yuri Assis
Cul-de-sac é uma expressão catalã que quer dizer beco sem saída. Pois bem, é exatamente isso que significou o tempo inteiro a película de Roman Polanski, de 1966. O enredo, tragicômico, dialoga com duas peças do teatro do absurdo: “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett, e “Feliz Aniversário” de Harold Pinter. Essa influência fica clara na atmosfera esquizofrênica na qual o filme está imerso.
“Cul-de-Sac” vem após o sucesso de “Faca na Água”, de 1962, e “Repulsa ao Sexo”, de 1965. Polanski ali contava, portanto, com um orçamento firmeza, deixando em segundo plano preocupações com bilheteria. Foi esta a oportunidade de realmente experimentar a linguagem que lhe conviesse.
Os personagens são poucos: George (Donald Pleasence, que interpretaria mais adiante o arqui-inimigo de James Bond no “You Only Live Twice”), ex-empresário inglês, que largou os negócios e se divorciou de sua esposa Agnes para se isolar do mundo num castelo do século XI na ilha de Lindisfarne (leia-se meio do nada), costa nordeste da Inglaterra; Teresa (Françoise Dorléac), sua noiva francesa, tipo nouvelle vague, ar blasé, paquera constante, personificação do haikai de Leminski "não discuto / com o destino / o que pintar / eu assino"; Dickie (Lionel Stander), gângster que foi atingido no braço num tiroteio; Albie (Jack MacGowran), parceiro de Dickie, com um tiro na barriga e a morte no encalço; e Katelbach, líder da gangue, que embora não apareça em momento algum, acaba tendo importância ao prometer buscar os bandidos.
O jazz de Krzysztof Komeda, responsável pela trilha sonora, se encaixa numa boa com o tom de deboche. "Cul-de-Sac" é exatamente isso, um grande deboche. Satiriza franceses, ingleses, americanos, gângsteres, esposas, maridos, empresários, famílias, filhos, pais, mães, irmãos. Inclusive, rola uma crítica velada à sociedade britânica na cena em que parentes de George vão visitá-lo sem avisar.
São uma família: um pai, uma mãe, um filho e mais dois parentes, o filho uma peste, os pais condescendentes. O menino risca um dos discos de Teresa, ela lhe puxa a orelha, ele a chama de cadela, o pai pergunta "quem lhe ensinou a falar assim?", o menino responde sem titubeio "mainha ensinou" e o pai dá a contrapartida "pois então você tem que aprender a mentir". O pessoal da Grã-Bretanha definitivamente não é levado a sério; George e seus parentes ingleses são todos subservientes.
Apesar dos trechos risíveis, fazem parte de “Cul-de-Sac” questões existenciais e um completo descrédito pelo sujeito homem. É como se designa em catalão: um beco sem saída. É distópico, tem esperança nenhuma. Dickie não vai ser resgatado por Katelbach, Albie vai morrer, George tem nem sombra de sua fortuna. Futuro aqui não se sonha nem se pressente nem se adivinha. É para assistir rindo da desgraça alheia. Polanski é olhar de desdém, prováveis marcas do teatro absurdista. Quem sabe não é por isso que Teresa, a blasé, a irônica, é a única que se salva, fugindo com um cara da família de George, que voltou à ilha para buscar sua espingarda.
“Cul-de-Sac” termina assim: George, totalmente sozinho, corre para dentro do mar, sobe numa pedra, senta, chora e chama por Agnes, a ex-mulher. A maré está enchendo e logo já não haverá como voltar para o castelo. Polanski, então, dá a cartada final: fechadas todas as entradas, fechadas todas as saídas.
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Puxa, eu adoro esse filme! Gostei do texto também, mas pensei que outros aspectos poderiam ter sido abordados mais a fundo, ao invés de terem sido apenas citados: a trilha sonora superba de Krzysztof Komeda, as atuações maravilhosas de Pleasance e Dorléac (que morreu em acidente de carro poco tempo depois do filme estrear), entre outras coisas. É um dos melhores filmes de Polanski, e olha que o cara tem muitos filmes bons.
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