quinta-feira, 24 de junho de 2010

"Narciso Negro", por Ramon Dias


A mocinha delicada, o galã charmoso, a vilã ciumenta, e uma locação exótica: bata tudo isto no liquidificador, e você terá um típico melodrama americano. Ou pelo menos deveria. Michael Powell e Emeric Pressburger acrescentam a esta receita um pouco da peculiaridade (para não dizer estranheza) característica de seus filmes, e o que sai do forno chama-se Narciso Negro. Apesar de utilizar dos arquétipos e clichês típicos do gênero, essa produção britânica de 1946 acaba fugindo a regra geral, na medida em esses arquétipos são desvirtuados e explorados de uma forma pouco comum pela dupla, tornando o filme um dos mais importantes dramas para a história do cinema inglês.

Baseada no romance de Rumer Godden, a história gira em torno de um grupo de freiras que recebe a missão de transformar uma construção no alto do Himalaia em um convento. A construção, doada por um general indiano, outrora fora um harém e ainda preserva resquícios dessa época nefasta, como gravuras à lá Kama Sutra e uma velha criada hindu, saudosista dos “velhos tempos”. A mocinha é aqui personificada na irmã Clodagh (Deborah Kerr), recém promovida a Madre Superiora, e encarregada de supervisionar a árdua tarefa. Inexperiente, tenta agarrar-se com unhas e dentes na fé e na doutrina de sua Ordem, ao passo em que a própria natureza do lugar vai, pouco a pouco, trazendo a tona lembranças e sentimentos há muito esquecidos.

Para ajudá-las no processo, o general designa seu agente e faz-tudo, o inglês Sr Dean (David Farrar). Homem desprovido de bons modos, o Sr Dean é, no entanto, possuidor de um certo charme britânico, o que me lembrou, a grosso modo, uma espécie maltrapilha de James Bond. Seu iminente interesse e admiração pela irmã Clodagh irá despertar um ciúme doentio na mais reprimida das freiras, a irmã Ruth (Kathleen Byron), ciúme este que servirá de mote para o clímax da trama.
Como um personagem próprio, o ambiente adquire uma importância fundamental.

Fotografado em Technicolor, o cenário de cores vívidas contrasta com o monocromatismo de um meio de vida de repressão e omissão de sentimentos e emoções. Gradativamente, a crença em uma doutrina de negação de prazeres vai sendo abalada, e as freiras fragilizadas não tardam em sucumbir à atmosfera local. Como exemplo dessa tendência expressionista, há uma cena onde a irmã Ruth aparece sem o hábito, maquiada e com um batom vermelho vivo. Mais uma vez, as cores fortes são utilizadas como uma forma de expressar desejos reprimidos. Vale acrescentar que, devido a este bem elaborado trabalho de composição visual, o filme levou para casa duas estatuetas do Oscar, com as categorias de Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte, de, respectivamente, Jack Cardiff e Alfred Junge.

Em síntese, Narciso Negro é um filmes sobre fracassos. Primeiramente, o fracasso na tentativa de sobrepor uma religião hegemonicamente sobre outra. Talvez seja este um reflexo do próprio processo de colonização do império britânico, que, assim como qualquer outro país imperialista, tenta impor suas crenças e costumes aos povos “primitivos”, e se deparam com uma sociedade fortemente enraizada com princípios religiosos distintos e, muitas vezes, antagônicos. Do mesmo modo, esse pequeno grupo de freiras católicas chega a uma comunidade hindu na tentativa de converter seus habitantes, mas têm suas expectativas frustradas, pois estes (com exceção do pomposo sobrinho do general, que demonstra grande curiosidade pela vida de Jesus Cristo, e o que o leva à questionamentos bastante curiosos), não apresentam grande interesse pelo cristianismo. Talvez o personagem que mais sintetize esse conflito seja o Homem Santo, que fica sentado em silêncio sobre um monte próximo ao castelo, faça chuva ou Sol. Apesar dos esforços, as freiras não conseguem fazê-lo mover um músculo ou dizer uma palavra.

Em segundo lugar, o fracasso em conter as próprias emoções. Adeptas da Ordem das Servas de Maria, as irmãs dedicam-se ao trabalho duro como um meio de afastar-las dos prazeres mundanos da vida. Entretanto, ao entrarem em contato com essa cultura diferente e sedutora, vão cada vez mais deixando-se envolver pelos encantos quase místicos do lugar. Todas aparentam ter sofrido alguma espécie de desilusão num determinado momento de suas vidas, o que as teria feito procurar a Ordem no intuito de, através de sua doutrina, esquecer desse momento infeliz. O que, na verdade, só fica claro a respeito da irmã Clodagh, quando um noivado mal-sucedido é mostrado através de flash backs. As freiras são afetadas ao ponto de questionarem a própria vocação, chegando ao radicalismo com o já citado exemplo da irmã Ruth.

Desse modo, Powell e Pressburger acabam criando uma espécie de ET na cinematografia inglesa, pois enquanto os filmes de guerra e de escola das décadas de 1930 e 1940 pregavam um “british way of life”, Narciso Negro vem nos despertar para as nossas falibilidades enquanto seres humanos, e mostrar que, apesar de parecer uma fantasia agradável, nós nunca estaremos sobre o controle de nossas vidas.

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