quarta-feira, 23 de junho de 2010

"Como eu presenciei o fim do mundo (1) ", por Victor Laet


Quando chegou ao Brasil, o filme “The Bucther Boy” recebeu o nome de “Nó na garganta”. E a partir da defesa de vários teóricos do cinema em afirmar que assistir a um filme é uma experiência voyeur, o título é coerente: um nó na garganta é a sensação mínima tida pelos espectadores ao testemunharem este longa cujo humor tipicamente irlandês (bufão, seco, pesado e por isso – ora outros fatores – tão comumente marginalizado na cultura britânica) transforma, em súbito, crianças no olhar de Victor Fleming para crianças no olhar Sam Peckinpah.

Sabe aquela imagem do mundo através de um microscópio ou telescópio? De alguém sempre observando, mas nunca interferindo? (ta, você acaba interferindo de um modo, mas esse não é o ponto) Aquela imagem de que alguém está monitorando o mundo por um microscópio e não agindo em mais nada (vide um episódio de “O Laboratório de Dexter”, esqueci o nome do episódio)? É partindo dessa idéia que surge mais uma empreitada do roteirista Pat McCabe e Neil Jordan: durante a tensão bipolar mundial com episódios como a “Invasão Baía dos Porcos”, o espectador observa, em suma, a sociopatia.

Protagonizado por Eamonn Owens, a história contada é a vida de Francis Brady, um típico menino ruivo irlandês (famoso estereotipo irlandês para ‘butcher boy’ [menino açougueiro]: ruivo, franzino, ajuda a família com as despesas). Francis brinca de caubói e índios, fazendo com que ele desenvolva o alter-ego de Algernon Carruthers (como muitos meninos faziam na década de 60), rouba fruta dos vizinhos, vê programas de western na televisão de imagem fantasma e tem problemas em casa: uma mãe suicida, um pai alcoólatra. Essa junção de elementos distintos são primordiais para o desenvolvimento dessa comédia homicida.

Ao assistir o filme constata-se que Francis é um sociopata na fase larval. Cabe ao determinismo fazê-lo descer os degraus existentes e, no passar do filme, rolar uma rampa restante (2) que o separa de vez da sociedade: pai violento + mãe infeliz + suicídio familiar + culpa + bullying + espancamento + encarceramento + moléstia + = Rousseau e Sartre de mãos dadas.

Todo o filme, do pôster a pequenos detalhes como o fato da história ocorrer simultaneamente à invasão da baía dos porcos, tem-se um totem estampado: o porco. Em minha mania de querer achar relação entre tudo, fui pesquisar sobre o porco na cultura irlandesa e eis o que descobri: durante os séculos de domínio inglês sobre o território irlandês o porco agia como animal de aluguel. Durante todo o ano, famílias irlandesas engordavam o animal para poder quitar a dívida das terras com os proprietários ingleses, logo a família nunca podia abater o animal – o qual se tornava membro familiar – pois era muito mais do que valioso. A partir disso é possível observar o brilhantismo da trama em trazer uma vilã inglesa para história e esta ser a primeira a tratar o protagonista como ‘porco’.

Procurando pela foto do pôster, eu me deparo com dois stills – um do filme e outro do Buster Keaton em seu primeiro filme intitulado (tremeis, vós, caros inexistentes leitores) “The Butcher Boy”. Observando isso, é perfeita a possível homenagem a Keaton feita pelo pequeno personagem ruivo: num dos poucos filmes no qual Keaton ri – diferente de Francis – ambos estão olhando para o nada, desejando uma mudança, uma alegria. (3)

Apesar da brincadeira de “o homem nasce bom, a sociedade que o corrompe” e “o que você faz do que fizeram de você?”, acredito que o tema mais importante a ser observado é do tratamento à amizade. Depois de inúmeras situações as quais desgastavam Francis (ora aderindo seu alter-ego ora aceitando o que lhe acontecia), ele suporta as mazelas pelo carinho tido ao amigo Joe (Peter Gowen). Vendo-se desesperado e marginalizado, Francis imagina o fim do mundo: os comunistas finalmente soltaram uma bomba e toda Irlanda sucumbiu. Entre chamas e destroços da pequena cidade espalhados estão vários corpos os quais todos são de porcos. Todos morreram. Todos são porcos na realidade. Todos menos ele e Joe. Ao ter sido negado pelo amigo tão quisto, o menino açougueiro parece não se importar mais com nada. Leminski escreveu: “não fosse isso e era menos; não fosse tanto e era quase”. Depois de ver azedar tudo aquilo lhe era tão rapidamente tido como açúcar (para evitar spoiler, vide o filme [sic]) a situação se inverte de maneira onde: não fosse menos e era isso; não fosse quase e era tanto.

É bastante peculiar o tratamento da amizade no cinema irlandês: ora aderente de um realismo mágico, ora junto a um humor direto e bruto (não é tão recalcado e minucioso como a forma que o humor é tratado no cinema inglês, por exemplo). A forma como o tema é abordado, sobretudo na visão das crianças, parece ser um diferencial deste cinema dentro do universo do cinema britânico.

Victor Laet

Quinze de junho de 2010
só porque eu estou citando muita gente e porque não consigo deixar essa citação de lado: “A Irlanda é a velha porca que come a ninhada” (“Ireland is the old sow that eats her farrow”) – James Joyce: “Retrato do artista quando jovem”


notas:

1. Brincadeira com “Como eu festejei o fim do mundo” (Cum mi-am petrecut sfârşitul lumii, Romênia, Cătălin Mitulescu, 2006).
2. Um gráfico para explicar melhor: http://lh4.ggpht.com/_rCJo-Oh4__M/TBcf93WF8sI/AAAAAAAAAb0/maMJ27S6i6c/s400/GRAF.JPG
3. The Butcher Boy, 1917, Fatty Arbuckle: http://www.fathom.com/course/21701779/21701779_s4_bustSit.jpg
The Butcher Boy, 1997, Neil Jordan:
http://www.metroactive.com/papers/metro/04.30.98/gifs/butcher-boy-9817.jpg

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