quinta-feira, 17 de junho de 2010

"Múltiplas personae" por Annyela Rocha


Personalidade. Para o senso comum, é definida pelo conjunto de singularidades de uma pessoa, destacando-a das demais. Levada muito a sério no campo científico, é classificada de várias formas pelos psicólogos. O suíço Carl Gustav Jung, por exemplo, considerava que os tipos humanos poderiam ser categorizados a partir de quatro critérios, onde cada um possui duas linhas opostas, gerando assim oito personalidades diferentes. A origem da palavra é a mesma de “personagem”, derivando do latim persona, que significa máscara.

No filme As Oito Vítimas (Kind Hearts and Coronets, dir. Robert Hamer, 1949), dois caminhos diferentes levam à reflexão sobre personalidade. A narrativa conta as peripécias de Louis Mazzini, um parente distante da família nobre D’Ascoyne. A mãe de Louis foi banida da família após se casar com um simples músico e, ao morrer, não pôde ser enterrada no mausoléu dos D’Ascoyne. Mazzini resolve então, provar que pode ser nobre, almejando o título de duque. Para conseguir o título, no entanto, ele precisa esperar a morte dos oito D’Ascoyne acima dele na escala hierárquica. Logicamente, Louis decide acelerar todo o processo.

Interpretado por Dennis Price, Louis Mazzini é, aparentemente, um jovem educado e humilde. No entanto, ele é calculista e dono de uma frieza sem tamanho, o que, numa classificação criada a partir dos conceitos de Jung, se enquadraria no temperamento sensorial julgador. Louis também não é nada moralista. Ao longo do filme, se envolve com uma antiga paixão platônica, Sibella, após o casamento dela. O caso amoroso entre os dois quase leva a uma reedição total do material filmado. A traição definitivamente não era um tema bem aceito numa Inglaterra do fim da década de 1940, o que demonstra certa coragem de Robert Hammer e da equipe criativa do filme em levar o roteiro adiante.

Como é típico das comédias inglesas da época, que satirizavam os “bons costumes”, a trajetória de Louis escancara e critica a falsidade das altas classes sociais britânicas. Assim, a personalidade de Louis é definida não só pelo desejo de vingança aos D’Ascoyne, mas pela necessidade de uma auto-afirmação possível apenas através do reconhecimento público. Ele cria uma máscara bem diferente do Louis verdadeiro: um homem decente, trabalhador dedicado, amigo atento, incapaz de ferir uma mosca; quando visto de perto é arrogante, desmedido e um assassino nato.
Grande destaque é a atuação de Alec Guiness. O ator provavelmente teve de explorar suas próprias oito personalidades distintas para os seus papéis na comédia. Sim, papéis. Ele interpreta todas as vítimas de Louis: Duque, Banqueiro, Vigário, General, Almirante, Ascoyne, Henry e Lady Agatha. Um bom trabalho de maquiagem e caracterização garante a credibilidade de todos os disfarces. Além, é claro, da excelente atuação de Guiness em todas as suas oito personas, trazendo a certeza de boas risadas para o espectador. Há, inclusive, uma cena em que seis personagens de Guiness aparecem reunidos em um jantar. Como a tecnologia de montagem da época nem se compara com a atual, o diretor Robert Hammer precisou de dois dias inteiros de gravação para assegurar a qualidade dessa sequência.

Para finalizar a narrativa, essa comédia do Ealing Studios não podia dispensar o humor irônico. O final, sem a linha moralista das produções hollywoodianas, é ambíguo, gerando certa expectativa. As Oito Vítimas é, assim, uma comédia divertida, com um grande toque de humor negro, daquelas que vão contra a corrente e fazem todo mundo torcer pelo vilão da história.

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