quarta-feira, 23 de junho de 2010
"Simplesmente Feliz ", por Renato Souto Maior
Felicidade é algo externo ou interno; como se dá essa relação?Certo, deve ter um pouco de cada, uma predisposição genética, por exemplo, elucidaria o caso da personagem central do filme?Bem, ela apenas pode ter o “dom” de ver o lado bom das coisas, e ser otimista. Não são dúvidas respondidas diretamente. Em “Happy Go Lucky” (Simplesmente Feliz), de Mike Leigh, Poppy (Sally Hawkins) é um enigma a ser observado, de perto. Aparentemente a primeira ideia e conclusão sobre Poppy é a mais rasa e superficial possível; ela é apenas uma pessoa feliz, otimista. Mas ao longo da produção suas atitudes e certas situações inusitadas colocarão e testarão o “temperamento” até aqui “feliz” da personagem de forma intrigante, curiosa e reveladora. Até ser confrontada e ter sua “personalidade” colocada em questão, Poppy segue toda a projeção com um específico e único humor, exagerados ao extremo. Em uma sociedade imersa em uma espécie de “epidemia” da depressão, onde certa glamorização, reforçada por uma cultura industrial forte, é atribuída ao sombrio, ao triste, ao mórbido e a infelicidade, até como estilos – moda, cinema, literatura e música –, a existência de uma espontaneidade relacionada ao feliz é deixada de lado; até porque o excessivamente feliz acaba se tornando chato, em uma felicidade eterna, sem fim. O exagero e a hiperatividade para o sentimento efusivo ou depressivo refutam em algo a mais, fora do controle, ou seja, irritante. Esse tom irritadiço é lançado ao público e quase acatado por todos; é difícil não se chatear com a excessividade de alegria de Poppy, em momentos inquestionavelmente “chatos”, como o roubo de uma bicicleta. Para ela o roubo de sua bicicleta é visto como algo “banal”, onde ao invés de ficar furiosa apenas diz, “nem tive tempo de me despedir dela”.
Em toda essa efusividade e excentricidade encontram-se outras, não iguais a Poppy, claro, mas igualmente felizes e bem-humoradas; assim sendo, ela não está só. No grupo sua alegria é notada e sobressai-se. A história debruça-se no cotidiano dessa professora de jardim de infância londrina e sua rotina com as crianças. A sua profissão, inclusive, não poderia ser mais apropriada e a impressão, às vezes, é a de integração total de Poppy com seus alunos, como se a professora tivesse uma idade mental semelhante à deles. Mas ela não é criança, nem boba. E a sua genuína personalidade é muito bem colocada e trabalhada no filme. O perigo em se abordar uma personagem com praticamente trinta anos nestas condições de felicidade inconteste é enorme e se não bem orquestrado pode resultar em caricatura, mal feita. Leigh escreve uma personagem feliz ao extremo, mas inteligente, com piadas afiadíssimas e rápidas em todo tipo de comentário, colocação. Ela não é uma perdida, boba e alienada – não totalmente -; características estas supostamente levantadas e consideradas no início do filme, quando não existe conhecimento apropriado, ainda, da personalidade de Poppy. A sua personalidade é muito bem aceita entre os ambientes em que circula; amigos, trabalho, casa. O estilo extravagante, único e desengonçado de Poppy podem até “enfeiá-la”; o que realmente acontece, até por se portar de maneira descolada. Mas isso não a impede de despertar desejo em um homem bonito e interessante.
Ela é encorajada a ser como é, e não vê necessidade de mudança; até o dia em que decide tirar a carteira de motorista. Durante as aulas de habilitação Poppy conhece Scott, o seu oposto. As diferenças entre ambos gritam, e é neste ambiente hostil que a hiperativa, feliz, “hippie” Poppy se verá confrontada e desafiada a rever sua vida aparentemente perfeita. Leigh filma o interior do carro, e as aulas, em digital, distinguindo a criando, assim, um mundo a parte para os dois. A impaciência de Scott e sua imutável feição rude e rabugenta não a assusta, de imediato, pelo contrário; a incentiva nas piadas, brincadeiras e tentativas de quebra daquele mau humor de seu instrutor. As investidas, porém, não funcionam, e a relação dos dois aprofunda-se e ganha, aos poucos, forma assustadora e duvida. Uma tragédia anunciada se inicia. Mesmo com demasiada força e tensão, as passagens entre os dois são as mais engraçadas do filme; até a cena final, claro. Entre um sábado – quando acontecem as aulas – e outro Poppy trás novidades de sua vida, que irritam Scott, frustrado e sem perspectiva. Ela insiste em dirigir de forma “irresponsável”, e ele, prestes a explodir – Eddie Marsan, excelente -, completamente vermelho, a repreende, em uma atitude confusa onde não se tem certeza da origem de tal repreensão; se é pelo seu profissionalismo em alertar e instruir adequadamente, ou se ele apenas despeja a “raiva” de conviver com alguém tão feliz, confiante e diferente. Poppy seria a projeção do que Scott quis, algum dia, alcançar e ser, sem sucesso. Essa amargura se direcionará para um clímax tenso, emotivo e nervoso, onde em um texto verborrágico e ininterrupto Scott acabará explodindo, em meio a um conflito psicológico e nervoso descomunais.
Em um final desconcertante, Leigh quebra toda a construção que havia feito de sua personagem, colocando-a em uma situação extrema e revelando uma faceta de Poppy até então desconhecida; o desfecho e a cena posterior a discussão é bem ambígua, onde o público decide se embarca novamente na felicidade dela ou se não consegue mais enxergá-la da mesma forma. Em plena crise, Scott não consegue sua ajuda, em atitude suspeita e intrigante da personagem, pois é esperado que ela seja receptiva e disponível, como sempre o demonstra ser, em situações como aquela. A frustração da protagonista em não atender ou solidarizar com a dor do outro não é muito investigada, permitindo, então, a análise de que Poppy, talvez, não seja tão amável e próxima dos outros assim – em todo o filme situações de solidariedade e conforto da personagem são mostrados –, colocando sua característica em dúvida. Talvez ela tenha agido como agiu em todo o filme por nunca ter sido pressionada; quando suas expectativas, ou sua imagem é vista de forma distorcida e “errada”, segundo seu parâmetro de perceber e ver o olhar do outro diante de si, Poppy deixa-se revelar mais humana e séria do que poderia-se exigir dela, até ali.
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