quinta-feira, 24 de junho de 2010

A loucura hereditária, por Milena Wanderley



“Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
Cecília Meireles

A infância é a fase da vida que nos traz as lembranças mais doces, e esse sabor perdura dentro de nós até perdermos a inocência que habita a criança. Entretanto nem todos temos a oportunidade de provarmos desse mel, a vida muita vezes pode nos ser amarga desde sua epigênese e as lembranças dos tempos em que sonhos pairavam como bruma diante dos olhos infantis passam a não ser características constitutivas das crianças, e elas, quando crescem, parecem abrir grandes olhos pra dentro de si, porque quando não se conhece o sonho passa-se a vivê-lo sem consciência de que o é, assim surge o não-convencional, as diferenças de olhares sobre a vida que, para aqueles que não habitam o plano do onírico, é difícil de ser reconhecido, pois olhos já estão viciados pelos padrões estabelecidos pela sociedade moderna, industrializada, capitalista, pesada.

Ao contrário de mel, Jô prova do chumbo, e tal peso aparece metaforizado em várias cenas, mas como estamos no começo desse humilíssimo comentário acerca da obra de Richardson, será conveniente nos trazer a primeira passagem em que ela, numa escola tradicional para meninas inglesas, aparece desajeitada tentando segurar uma bola que não lhe para nas mãos como fosse sua própria vida escapando por entre os dedos.

A testa franzida, o olhos grandes, claros e profundos, o rosto redondo, o corte de cabelo desajeitado e andrógeno, a boca pequena e os dentes curtos montam uma expressão de opressão diante da infância perdida, Jô é quase o “EU” escondido de todos aqueles que sofreram algum tipo de violência na infância e tem que lidar com tal fato pela vida inteira.

Ela e a mãe se suportam e vivem um relacionamento doentio de inversão de papéis e valores, em que Jô não tem direito de viver o que é natural para as meninas de sua idade. Ela, sem identidade ou referência, vive o onírico para fugir do real e em sua carência deixa-se possuir pelo primeiro que lhe parecera o príncipe encantado, e faz-se assim por reprodução: a filha que rejeita o comportamento da mãe, mas ao mesmo tempo o reproduz em um complexo de Electra sem referências masculinas. E a genialidade de Richardson neste filme reside na sutileza das intenções, nas entrelinhas dos diálogos, na trilha sonora infantil que junto às imagens remete ao paradoxo que era a vida de Jô com a sua mãe, uma personagem muito bem construída que traz a referência à vontade de ser eternamente jovem.

A omissão e a boemia são substantivos que definiriam bem as iniciativas de Helen, mulher madura que aceita um casamento em que o companheiro rejeita sua filha, que, por sua vez, passa a viver sozinha, sem a presença física da mãe, já que a psicológica se tinha ido embora junto com a palavra “mãe” que Jô não pronunciava.

Uma das cenas que mais sinalizam a inversão de valores é a que Jô acompanha sua mãe e o pretendente dela, Sr. Smith, ao parque de diversões. Os exageros das expressões dos atores nas cenas, as risadas de boca aberta, o andar por vezes cambaleante e as muitas pernas caminhando em uma mesma direção remetem à ilogicidade da vida de Jô que mesmo em ambiente destinado ao divertimento aparenta fragilidade e tristeza, se comporta como a criança que era mas não tinha direito de ser, enquanto sua mãe esbalda-se junto aos outros adultos nas atrações do parque; e é neste dado momento que sua mãe a deixa de vez, pois diante das infantilidades de Jô, o Sr. Smith pede a Helen que escolha entre ele e sua filha. Assim, a menina perde a única referência de mulher que tinha.

A incerteza, o não estar, a ausência e a superficialidade dos desejos são tônicas do enredo de A taste of honey, o fato de Helen estar sempre se mudando e ausente na vida da filha leva Jô a um espaço de nulidade que permeia suas atitudes e olhares diante das paisagens que se colocam a sua frente, pois não são poucas as tomadas em que a cidade é mostrada pelo prisma das mazelas causadas pela industrialização, uma delas caracterizadas, inclusive, na vida da personagem principal que está à margem da sociedade, tudo aparenta estar virado de cabeça para baixo em uma bagunça que parece não mais ter possibilidade de ser ordenada; vive-se um caos interior que é amenizado em Jô através do pouco cuidado que o marinheiro tem para com ela, porque quando não se tem quem se cuide, até um olhar de mais de três segundos pode convencer um coração perdido, e um carrinho ou um anel são sinais concretos suficientes para convencê-la de que o marinheiro a amava, assim Jô se entrega.

Ao entregar seu corpo ao marinheiro que vai embora e sua mãe abandoná-la a própria sorte, Jô encontra um emprego numa sapataria e se muda para uma casa construída com madeira, contudo bem maior do que o quarto que dividia com sua mãe, e ao vender um sapato conhece Geoff, garoto afetado que a convida para ir ao parque de diversões, nesta oportunidade ela se diverte e até ganha um peixinho que leva para casa. Agora ela é “um peixe dentro d'água” e compartilha de sua realidade com quem ela escolheu para o fazer. Ao perceber que Geoff não tinha para onde ir, o convida para acompanha-la e entrar na sua casa e, desajeitadamente, o convida para morar com ela já que ele também se encontrava numa situação de exclusão; ambos procuravam quem quisesse bem um ao outro, assim Geoff e Jô passam a viver como irmãos.

A natureza feminina também é questionada na obra de Richardson, pois insistindo na simbolização dos valores que são invertidos, Jô aparece agora grávida do marinheiro que foi embora, completando o quadro de marginalização que se agrava ainda mais quando ela sente medo de que a criança que carrega tenha algum tipo de alteração genética. A impressão é a de que Jô acredita, desde o início do filme, ser consequência da “loucura” de sua mãe como se seu estado mental fosse hereditário, uma carga genética que destinava suas ações re produtivistas. Desta forma, quando Jô via a criança com síndrome de down, enxergava a si mesma e sentia medo de que o bebê que carregava tivesse o mesmo destino que ela. Entretanto, é nesse momento de confusão interior que Jô parece ter encontrado sua identidade, são nesses espelhos de imperfeição que ela encontra o sentido de si mesma, e um desses reflexos é transmitido por Geoff que passa a se responsabilizar por ela, e embora o ciclo se repita como brincadeira de roda, com a volta de sua mãe que havia sido expulsa do casamento, Jô parece encontrar-se novamente na infância, e na última cena, em que ela desce da casa para Procurar Geoff que havia sido expulso por Helen, ela acende uma estrelinha e se comporta como a criança que ficou perdida dentro dela mesma diante dos fatos que marcaram o seu relacionamento com sua mãe.

Com um final aberto, Richardson, incita-nos ao questionamento e a imaginação, porque o que parece ter prioridade em A taste of honey é a expressão de inquietações universais, característica que torna seu discurso atual e arrebatador para aqueles que são mais sensíveis às vozes interiores independente do gênero de tal voz, todas as cenas podem dizer muito para quem tem os olhos libertos dos vícios de discursos alheios, por isso antes dos rótulos e do discurso pré concebido precisamos ter o visionarismo do experimento, deixando-nos ao sabor do novo, mesmo que para nós o sabor seja amargo, mesmo que diante dos espelhos significados em Jô tenhamos que minguar os nossos egos ocupando os espaços de nulidade diante das forças que o homem pensa que controla.

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