quarta-feira, 23 de junho de 2010

"O Cozinheiro, O Ladrão, sua Mulher e o Amante" (1989), por Natália Ribeiro Barreto


Contemplar a cinematografia de Greenaway é, em resumo, unir náusea e visão plástica. O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante consegue traduzir uma temática relativamente simples - o caso amoroso, acobertado por um cozinheiro, entre a esposa de um gângster violento e um colecionador de livros - numa experiência perturbadora que nos esfrega em nossas maiores repulsas e nos faz chegar a uma conclusão: pior do que dormir com o inimigo é ter que comê-lo.

A aproximação entre o prazer do paladar e o prazer do sexo resulta também na contraposição entre a “fome do corpo” e a “fome da mente”. Os jantares causais em um restaurante francês que, em princípio, alimentaria os caprichos requintados de uma alta classe social, transformam-se em uma angustiante procura pelo sublime em um cenário imundo de luxúria, selvageria e degradação. O ser humano mais do que qualquer outra é uma besta faminta que, uma vez entregue aos seus desejos mais vis, tenta “lavar-se” de seus pecados.

Greenaway é, visivelmente, o diretor que evidencia e preza pela experiência plástica do cinema. O espectador, como se estivesse a assistir a uma peça de teatro, atravessa paredes e acompanha o trânsito dos personagens entre as “celas” do drama, traduzidas em uma espécie de espectro: o estacionamento do restaurante é azul; a cozinha é verde; o salão do restaurante é vermelho; e o banheiro, branco. Caracterizadas, cada uma, em sua peculiaridade narrativa, observa-se que, enquanto no salão, tudo ressalta o ambiente pomposo e sofisticado; na cozinha, as panelas fervilham e os alimentos quase que figuram telas; nos fundos do estabelecimento, os alimentos apodrecem e o banheiro, sugere a ausência de uma localização espaço-temporal. Se Baudelaire estiliza a carniça com palavras, Greenaway o faz através de uma mise-en-scène plástica de carcaças exuberantes e corpos em deleite.

A atuação de Micheal Gambon na interpretação de Albert Spica é brilhante, na medida em que a loucura, o sadismo e o grotesco beiram o personagem com um furor cego e destrutivo. De apetite sexual insaciável, Georgina, interpretada por Helen Mirren, transita entre a humilhação e a esperança de uma redenção.

Ironicamente, a grande vingança da traição é da adúltera e não do marido traído. O banquete final é o pano de fundo de um “funeral” macabro, no qual o cadáver não será sepultado, mas servido. Georgina faz o marido saborear-se em seu canibalismo e Richard, o cozinheiro chef, que a todo o momento conteve-se em uma frieza desconcertante, tem o prazer de servir a seu “mais ilustre cliente”, o prato mais nobre já preparado. Afinal, depois de servido, “comer a morte” é o maior preço que se tem a pagar em vida.

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