quinta-feira, 29 de abril de 2010
"A hipótese do quadro roubado" por Daiany Dantas
A hipótese do quadro roubado (Raoul Ruiz, 1979) é um filme grave na forma, apresentada sem falsetes que destoam da seriedade do enigma oferecido aos espectadores. E todo o contexto onde se articulam as atuações, os cenários e os movimentos de câmera, simulam essa gravidade e enaltecem o tom de incerteza, que, pouco a pouco, domina a trama.
Ainda que o fio que nos conduz por esta rede de dúvidas seja justamente a certeza do personagem central, um homem sisudo apresentado apenas como o ‘colecionador’, tendo como aparato narrativo o seu diálogo com o narrador oculto do filme – que oscila entre fazer as vezes de consciência ou questionar seu interlocutor, de forma a desacreditar sua argumentação.
Num primeiro momento, encontramos o colecionador em seu escritório, acompanhado apenas por pequenos bonecos de madeira articulados - utilizados para a reconstituição material de pinturas - acumulados nas gavetas e sobre a mesa. Enfático e inflamado, ele nos apresenta sua hipótese sobre a obra do desconhecido pintor Tonnerre: “os quadros não aludem, os quadros mostram”, diz. Somos, então, invadidos pela dramaticidade da musica que entrevem a abertura de uma porta fantasmagórica para o interior da mansão.
O colecionador estaria prestes a desvendar, diante de nossos olhos, um dos grandes segredos da História da Arte? Se os quadros mostram, haveria algo de tão comprometedor e definitivo contido na própria dimensão física da arte? Até que ponto poderíamos imergir na estrutura formal de um quadro e extrair dele um senso concreto de verdade? Um sentido que não aquele espelhado em nossos próprios anseios e inquietações? Seja como for, Raoul Ruiz instala em nós a ansiedade pelo que poderá suceder.
Ao nos introduzir neste campo de interpretações, mantém um tom formal, beirando o sinistro, quando, em planos de câmera generosos, desvenda os cômodos da mansão do colecionador e seus arredores. Os interiores, os jardins, os aposentos, mesmo as escadas, estão tomados por um Tableau Vivant(1) que, em suas partes seqüenciadas, recria as obras de Tonnerre.
O colecionar invade a verdade tridimensional que ajudou a reconstituir e nos explica, seguindo uma intricada e desconexa cadeia de coincidências (umas pertinentes, outras nem tanto) a hipótese do quadro roubado. Ele acredita que os ângulos expressos pelo gestual das imagens retratadas, o direcionamento da luz do sol, a regra hierárquica no posicionamento das figuras, entre outros fatores, seriam constituintes de uma mensagem inscrita no interior da obra de Tonnerre - possivelmente um perturbador segredo. Uma densidade que não podemos alcançar a priori, já que o enigma seria solucionado com o surgimento do suposto quadro roubado, peça decisiva no encaixe do quebra-cabeça delineado pelo colecionador.
Na pretensiosa tentativa de decompor a arte, o colecionador se mostra meticuloso e cerebral em suas medidas de interpretação, utilizando os mais engenhosos esquemas de recriação – possibilitados pelo tableau vivant. No entanto, é vítima das limitações do método, que inevitavelmente “alude” muito mais do que “mostra”, ao contrário do que ele insiste em afirmar.
Como os próprios atores nos tableaux vivants, a hipótese do quadro roubado treme, pisca e sorri discretamente, deslizando para o território do incerto e do improvável, dada a arbitrariedade das evidências. A gravidade da forma desafina, estrategicamente, em seu conteúdo. Chegando a aparentar que tais vacilos seriam uma piada interna do cineasta, uma crítica à sisudez estóica própria de alguns ramos da História e da Crítica de Arte.
Considerando que este é um filme de 1979, época em que o cinema popular – e outros produtos da cultura pop – contavam com uma já constituída crítica especializada que os lançava de sua plataforma de arte menor a um plano mais elevado, a formalidade afetada e o rigor anacrônico – barroco? - que definem o filme parecem denunciar uma crítica velada a respeito das tensões entre cultura pop e cultura erudita presente nos debates da época.
Ao tentar decifrar a transcendência estética da obra de Tonnerre, o colecionador termina por transformá-la num grande pastiche, compondo uma colcha de retalhos que se conecta por uma falta de linearidade apenas tangível na intangibilidade do quadro roubado – a própria imaginação do colecionador, a conferir homogeneidade ao conjunto. O quadro roubado precisa existir para justificar que a interpretação não seja algo exterior à pintura.
Arriscando uma metáfora, poderíamos propor que o enigma do quadro roubado surge como a esfinge da pós-modernidade frente ao projeto moderno. Ao supervalorizar a interpretação restrita à obra, o colecionador se perde dentro dela. Reage como o sujeito moderno diante das fissuras dos métodos positivistas de investigação: tentando sustentar seus suportes de análises e classificações na busca de uma verdade indissociável da obra, o colecionar se dissolve em suas próprias paixões. Quando tenta decifrar, conter, encapsular, é devorado. E a única resposta plausível estaria no reconhecimento daquilo que ele não admite: a indolência da arte.
(1)Tableau vivant, segundo a Wikipédia, é a recriação, com atores caracterizados e cenografia adequada, da atmosfera expressa em pinturas. O seu plural é Tableaux Vivants.
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terça-feira, 27 de abril de 2010
“Fazendo História” (“The History Boys”) por Mayra Meira
"The History Boys" é baseado na premiada peça teatral de Alan Bennet estreada em 2004. Lançado em 2006 primeiro nos Estados Unidos e meses depois no Reino Unido, com direção de Nicholas Hytner (As Bruxas de Salém, As Loucuras do Rei George), o filme recebeu elogios da crítica. A trilha sonora ficou por conta de George Fenton que tem em seu currículo colaborações com Stephen Frears, Ken Loach, Neil Jordan, entre outros. A trilha inclui hits como “This Charming Man” de The Smiths e “Blue Monday” de New Order que embalam o filme numa atmosfera oitentista. A direção de fotografia é de Andrew Dunn, especialista em recintos fechados e iluminação diáfana, o que levou Nicholas Hytner a contratá-lo porque a maioria das cenas se passa em ambientes internos: as salas de aula da escola. O roteiro, como era de se esperar, foi adaptado para o cinema pelo próprio Alan Bennet.
O filme se passa no norte da Inglaterra, mais exatamente em Sheffield, na instituição ficcional Cutlers' Grammar School. "THe History boys" foi filmado nos estúdios da BBC. Esses dois pontos caracterizam uma herança da parceria do cinema britânico com a televisão pública (BBC), onde o local e o regional recebem destaque em vez de Londres ser o centro. O universo social dos personagens é definido com objetividade como demonstra a cena em que Felix (Clive Merrison), diretor da escola, chama a atenção do estudante Lockwood (Andrew Knott) pelo fato de ele estar com uniforme de entregador de leite, emprego que conseguira nas férias.
A intertextualidade fílmica é identificada numa encenação que os estudantes fazem durante a aula de Irwin (Stephen Campbell Moore) do diálogo entre o casal Fred e Laura na última cena do clássico “Desencanto” de David Lean.
"The History Boys" ou "Fazendo História", como foi traduzido para o português, tem como foco narrativo um grupo de garotos ingleses de classe média que estudam para ingressar nas Universidades de Oxford e Cambridge. Porém, a metodologia de ensino do professor Hector (Richard Griffiths) não é direcionada para os exames Oxbridge, tende mais para o lado artístico das disciplinas. Logo, o professor Irwin (Stephen Campbell Moore) é chamado pelo diretor da escola para preparar os alunos para ingressas nessas Universidades. Hector, homem casado com tendências homossexuais, assedia os alunos e Irwin, mais recatado, é homossexual, contudo não desrespeita seus pupilos. Já a professora Lintott (Frances de la Tour) ensina história com um feminismo exacerbado. Os estudantes estão passando para fase adulta e discutem temas como sexualidade, religião e dilemas existenciais. É um típico filme de escola inglês em que o amor à profissão fica evidente entre os três mestres, principalmente no eloquente Hector.
Referências bibliográficas:
http://pt.wikipedia.org/wiki/George_Fenton
http://en.wikipedia.org/wiki/The_History_Boys_(film)
http://en.wikipedia.org/wiki/The_History_Boys
http://www.imdb.com/title/tt0464049/
http://www.letraselivros.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=880&Itemid=42
O cinema britânico: realismo, classe e televisão pública (1984-2007). In: Cinema mundial contemporâneo. Papirus Editora. p.71-89.
domingo, 25 de abril de 2010
“If...., Uma crítica feroz ao conservadorismo” por Aaron Athias
'If....' é daqueles filmes que conseguem exprimir o sentimento da juventude do fim de uma década. Os últimos anos da década de '60 foram marcados por revoltas e rebeliões estudantis em muitos países, com destaque para o famoso maio de '68 de Paris, onde os jovens levantaram a voz e estandartes contra os valores antiquados da chamada sociedade tradicional. O filme é isso. Uma crítica ácida à hipocrisia e ao conservadorismo presentes não somente na educação tradicional como também na Igreja e no Exército.
É nesse contexto histórico-social que se insere a Academia. Nome propositadamente genérico dado por Anderson ao colégio internato pelo qual toda trama se passa. A Academia representa, nesse filme, toda a educação formal e rígida das escolas privadas e até públicas da época em questão (interessante notar que escola pública na Inglaterra significa escola privada na verdade, as escolas verdadeiramente públicas são chamadas de State Schools.) Divagações à parte, o filme de Anderson é quase claustrofóbico. A grande maioria das cenas são internas forçando o espectador a acompanhar a rotina dos estudantes e a mergulhar no seu(s) universo(s). O colégio é realmente um mundo à parte onde as regras parecem se inventar cotidianamente somando-se a outras regras e manias. Logo nas primeiras cenas percebemos os abusos de autoridade cometidos pelos chamados whips (chicotes), estudantes já formados e com autoridade para mandar nos outros alunos para impor 'ordem' na instituição. Os seis whips chamam os alunos calouros de scum, (tradução literal: escumalha, ralé) e cada um tem direito a ter o seu próprio scum para serviços pessoais como servir chá, esfregar sua pele durante o banho e até para favores sexuais. As ordens são muitas e as desobediências não são toleradas, podendo levar inclusive a punições físicas.
Ao longo do filme acompanhamos o trio Mick Travis, Johnny e Wallace, três jovens que retornam ao internato depois das férias para completar o último ano, e sua relação com a Academia. Como num efeito bola de neve, talvez por terem aguentado todos os anos anteriores, a insatisfação contra seus opressores vai crescendo, assim como o ódio alimentado pelos whips e o desfecho do filme é a inevitável declaração de guerra às instituições. Guerra não somente no sentido figurado, como também no sentido literal mesmo, com direito a metralhadoras, bazucas e dinamites.
If.... é autobiográfico. Ao descobri isso, não só deixei de encarar o filme como um manifesto de contracultura, mas também como um desabafo pessoal. Filho de um oficial de guerra, Anderson estudou em escolas 'privadas' e recebeu uma educação formal e rígida. Inclusive, muitas das cenas se passam no Cheltenham College, em Gloucestershire, um dos colégios em que o diretor estudou. Mesmo quem desconhece essas informações percebe uma força e uma agressividade nos sentimentos dos alunos que chega ser anormal. É difícil de explicar essa carga emotiva passada pelo filme, que para mim se torna justificada no momento em que é representada por alguém que vivenciou uma realidade se não igual, muito parecida com a da história.
O filme tem um forte apelo visual assim como político-ideológico. A imagem do iconoclasta Mick Travis vestido como quem vai à guerra se tornou, assim como muitas outras figuras (fictícias ou não) da época, símbolo da contra-cultura. Não seria exagero afirmar que esse é o filme mais notável de Lindsay Anderson.
Os filmes de Lindsay Anderson são classificados por muitos como British New Wave, espécie de equivalente inglês do movimento homônimo em francês, Nouvelle Vague. Diretores como Tony Richardson se consagraram ao produzir filmes realistas enfocando classes e tipos sociais pouco representados cinematograficamente. Muitos filmes da época desses dois diretores foram inclusive considerados pseudo-documentais. Mas longe dos chamados kitchen sink dramas ( filmes que enfocavam a vida e a rotina das classes trabalhadoras, por exemplo) If.... não é a representação quase documental de uma classe social desprivilegiada, é mais um manifesto juvenil de revolta. Até porque socialmente falando, a Academia é um colégio privado a uma elite intelectual e financeira da Inglaterra – uma classe privilegiada.
Tecnicamente o filme apresenta características interessantes. A divisão do longa é feita em capítulos de uma forma organizada com títulos que lembram fortemente nomes de atos de peças. A alternância de sequencias coloridas e sequencias preto e brancas dá um efeito estranho. Em algumas cenas preto e branco, não todas, curiosamente prevaleceu uma atmosfera de sonho, e de um paralelismo aos eventos principais da trama, com destaque para a cena do bar em que Mick e Johnny encontram a Moça. Ali, a edição, as falas curtas e improváveis assim como a monocromia atuaram juntos para criar um efeito surreal de escapismo. Aliás, essa cena do café, seguida da dos três (Mick, Johnny e a Moça) na motocicleta em muito me lembrou os filmes franceses da Nouvelle Vague. O amoralismo, o impulso adolescentio, o egocentrismo, a indiferença quase niilista com relação ao mundo exterior paradoxalmente em contraste com o fervor anarquista de querer mudar o seu redor são também atributos de If... e em muito reforçam essa minha analogia.
If...., ao mesmo tempo que consegue transpor com êxito sua crítica aos fundamentos conservadores, não deixa de ser também um tanto quanto radical e polêmico. O culto à violência e à guerra chega a ser exacerbado. Falas como “Não há guerra errada” são no mínimo controversas. A crítica ao sistema educacional inglês da época logicamente não agradou a todos e fizeram do filme um dos mais censurados de sua época na Inglaterra. Um embaixador britânico chegou dizer que a película era “um insulto à nação” e um tal de Lord Brabourne leu um roteiro esboçado do filme antes das filmagens e teria dito “the most evil and perverted script I've ever read. It must never see the light of day".
Quanto à temática de rebeldia escolar no cinema, de fato é sabido que o filme Zéro de Conduite: Jeunes diables au collège (1933) de Jean Vigo foi uma das maiores influências de Anderson tanto na criação quanto na produção do longa. Sobre isto, o diretor teria afirmado "Seeing Vigo's film gave us the idea and also the confidence to proceed with the kind of scene-structure that we devised for the first part of the film particularly." Em bom português: “Ver o longa de Vigo nos deu a idéia e a confiança para proceder com o tipo da cena-estrutura que nós planejamos particularmente para a primeira parte do filme.”
Achei interessante o modo como o diretor retratou a dicotomia disciplina x rebeldia. Os whips representando a disciplina e os crusaders (o trio de alunos Mick, Johnny e Wallace, posteriormente Bobby Philips e a Moça) representando a rebeldia. O início do filme, bastante clássico, com um provérbio bíblico e com um canto gregoriano situa o espectador na aura da Academia. O fim é o exato oposto disso, a cena da batalha entre os guerrilheiros e os defensores do colégio representa nada mais nada menos que a própria destruição da Academia e de tudo que ela representa.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
"O terceiro homem" por Débora Freitas Baia
A aparição dos créditos iniciais veio acompanhada da trilha executada por Anton Karas, citarista vienense, me remeteu ao imaginário de Woody Allen. Fui buscar, então, o porquê dessa associação além da música, e encontrei A Rosa Púrpura do Cairo; talvez porque eu considere A Grande Depressão para os E.U.A, como o pós-guerra para os europeus, guardadas as suas devidas proporções, considero esse filme uma homenagem ao melodrama, muito popular nesse mesmo pós-guerra . Voltando ao filme em questão, não se pode dizer que ele é só isso; uma pitada de noir e de filme de guerra também marcam sua narrativa de maneira óbvia, leia-se a fotografia e a Viena.
Assim que descobri as origens do roteiro, um conto de Graham Greene, resolvi lê-lo e logo no prefácio o autor diz: “o terceiro homem não foi escrito para ser lido, só para ser visto. (...) Nesse caso, o filme resulta melhor do que o conto, pois nesse caso ele é o conto em estado definitivo”; essa declaração deixa bem claro que o autor está ciente das diferenças de linguagem, e o conto é apenas um suporte para construção dos personagens. E de fato, no livro temos um Holly Martins (Joseph Cotten) mais emotivo, que defende o amigo acima de quaisquer suspeitas. Esse tipo de construção é o próprio melodrama, mesmo que o personagem tenha sido “enxugado” emotivamente, ele é um dos grandes norteadores do gênero do filme.
Outro fator interessante, é o uso constante de metalinguagens: o escritor do filme, Martins, fala sobre o “Terceiro Homem” como uma em trânsito, misturando fatos reais e ficção, acerca de um assassinato. A realidade e a ficção dele, são o nosso filme, baseado num conto de um escritor verdadeiro para transformar-se num roteiro, para Carol Reed. Outro recurso parecido é quando Anna Schimdt (Alida Valli), cujo personagem é uma atriz, fala “ eu não faço dramas, só comédias”, exatamente num filme de drama.
O filme todo se passa numa Viena ocupada por quatro exércitos diferentes: francês, inglês, americano e russo. Todos eles dividindo um território estrangeiro, a Áustria, em zonas de ocupação. É nessa torre de babel, que os personagens vão sendo construídos num mosaico de nacionalidades e identidades falsas: um inglês recém-chegado, um inglês austríaco, um romeno, uma tcheca com passaporte falso. Mas nesse pós-guerra, o vilão já começa a esboçar seu rosto, os russos. Eles protegem o vendedor de penicilina adulterada, Harry Lime (Orson Welles), eles perseguem a mocinha, eles dificultam o trabalho do exercito inglês. E as pobres crianças afetadas pelo remédio falso não podem ser escolha aleatória, será uma reafirmação do mito dos comunistas matadores de criancinhas? Talvez apenas exagero meu... a verdade é que Martins realmente fica dividido entre sua pátria e sua amizade com Lime. Até o final a dualidade entre dever e gostar são postos à prova; no final, vence à pátria, e acho que foi daí que tirei a coisa do filme de guerra, mesmo que haja só escombros e nenhum tanque de guerra. No final, é interessante mostrar a frase de Harry Lime, quando ele diz, resumidamente, a vantagem dos conflitos para o avanço tecnológico. Mesmo sabendo que essa fala saiu do possível “vilão”, não deixa de esconder o discurso do autor: refletir a guerra como algo a ser pesado negativamente; deve haver sentidos existenciais mais humanistas.
Interessante é a coisa das falas em língua estrangeira, você ficar tão perdido quanto o personagem principal, sem saber do caráter dos “tradutores”, te insere num suspense diferente, mas facilita essa mesma imersão. Também aquele ambiente “multicultural” questiona a coisa da identidade: o que é ser austríaco num país ocupado e repartido? O que é ser inglês morando na Áustria?
Bom, acho que vou terminar falando um pouco sobre Alida Valle, lindíssima, e que me lembrou muitíssimo Ingrid Bergman naquele falar cheio de sotaque, mas talvez fosse só um estilo de época, ou pelo fato das duas serem estrangeiras. Enfim, pela fotografia noir, achei que essa “mocinha” iria acabar demonstrando saber de todos os planos de seu amantes, mas provou-se que não. O filme acaba como começa, a tristeza do início, a alegria do meio, tornou o final interessante, digno de uma reticência, longe de um ponto final.
"Desencanto" por Bruna Belo
Em meio aos desastres da II Guerra Mundial, na Inglaterra, David Lean – diretor de famosos e grandiosos épicos, como Lawrence da Arábia e Dr. Jivago – filmou o um romance Desencanto, o qual seria, mais tarde, uma de suas obras-primas, indicado a três Oscar – melhor atriz, roteiro e diretor – além de ter sido premiado pela crítica no I Festival de Cannes e pela Associação de Críticos de Nova Iorque.
A não-linearidade narrativa, característica de Lean, também está presente neste filme. Para isso, ele conta a história pela perspectiva feminina, fazendo uso da narração em off e de flashbacks, assim, o filme começa pelo desfecho final, dessa forma, quando o longa acaba ele esclarece o espectador, ao invés de surpreendê-lo.
O excelente roteiro de Noel Coward, baseado em sua peça "Still Life", juntamente com a emocionante interpretação de Celia Johnson, que interpreta a dona de casa Laura Jesson, conseguiu retratar magistralmente o psicológico feminino – por vezes submisso, exageradamente romântico e idealizador, como antes da guerra, antes das mulheres começarem a ganhar mais espaço na sociedade –, mostrando todos os seus sonhos, dúvidas e medos. O filme é a história do amor proibido vivido por esta personagem e o médico Alec Harvey (Trevor Howard), dois personagens ordinários – por volta dos quarenta anos, casados e de classe média – que, em uma quinta-feira, se conhecem em plena uma estação de trem, devido a uma situação banal.
Apesar da repentina paixão, o casal não chega a, de fato, consumar o adultério, pois ambos são bastante presos aos preceitos morais burgueses, resquícios de uma Inglaterra pós-guerra que tenta se recuperar das perdas materiais e humanas, além da perda de muitos dos seus costumes. Por este motivo o filme é considerado um precursor do “realismo burguês” – uma série de filmes que retratam de forma intima a família inglesa, sobressaltando a moral e os bons costumes.
A plataforma de trem foi o lugar perfeito para a locação desse filme, passa uma idéia de temporalidade, transitoriedade, efemeridade, passando para o espectador toda a essência da relação entre os dois personagens. O hábito que ela tem de ver o expresso passando e o trem dele partindo deram uma nova conotação as estações, que, a partir desse filme, passaram a ser locais mais românticos.
Apesar do longa não ter o que se chamaria de final feliz, no qual os dois personagens ficariam juntos – o que, provavelmente, foi a causa da pouca receptividade do filme pelo público na época que foi lançado –, é um lindo romance, com diálogos casuais, que junto com a excepcional interpretação do casal, fazem a história fluir de forma natural. É gostoso de ver, e a cada dia se torna mais interessante pela simplicidade e honestidade da relação dos dois, uma paixão a moda antiga, com um romantismo, por vezes exagerado, mas que não se vê com freqüência hoje em dia.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
"Os 39 Degraus" por Marina Paula
Da fase inglesa de Hitchcock, pode-se dizer, comparando com o vasto número de títulos que viria a seguir, que fora um período de aprimoramentos e experimentações. É quando lhe é oferecida a oportunidade de dirigir o seu primeiro filme, após ter ocupado diferentes cargos em produções anteriores, que o cineasta começa a estudar e desenvolver os seus temas e linguagem, que seriam apresentados primeiramente com alguma solidez em O Inquilino e passariam a reverberar ao longo de toda a sua carreira. Os 39 Degraus é um bom exemplo de como fora se consolidando o “Hitchcock picture”.
O enredo apresenta Richard Hannay (Robert Donat), um canadense que escolhe Londres como destino de suas férias. Certa noite, após um tumulto, ele esbarra com a aparentemente frágil e misteriosa Annabella Smith (Lucie Mannheim) que lhe pede abrigo por uma noite. Os segredos carregados por ela para o apartamento acarretam em seu inesperado assassinato, fazendo de Hannay o principal suspeito do crime. Vendo-se obrigado a fugir, o protagonista segue as pistas dadas por Annabella e sai do país, à procura da verdadeira identidade dos assassinos - única forma de provar a sua inocência.
A primeira característica hitchcockiana facilmente reconhecível é a transferência da culpa. Em Os 39 Degraus, toda a ação provém do forte desejo de Richard Hannay em provar sua inocência. Para dinamizar essa busca (diferenciando, por exemplo, de filmes como O Homem Errado, onde a procura pela comprovação da inocência do protagonista apresenta-se de forma mais verossímil), Hitchcock passa a fazer uso de um recurso que serve como um pretexto para o desenrolar da trama – trata-se do MacGuffin. Para o diretor, não lhe interessava, como narrador, qual seria o objeto tão intensamente almejado pelos personagens, importava-lhe somente os rumos e reviravoltas que tal objeto lhe permitiria dar a história. No filme em questão, este elemento é representado pelos 39 Degraus, que, mesmo não aparecendo ou sendo revelado na maior parte do filme, acaba sendo responsável por uma morte, uma falsa acusação, uma viagem de aventuras, perseguições e ainda o que parece ser o início de um relacionamento amoroso. É exatamente essa possibilidade de fazer girar toda uma história ao redor de um objeto vazio e, muitas vezes, inexistente (plasticamente), que vai fazer com que o MacGuffin se torne um dos artifícios preferidos do mestre do suspense.
Talvez por sua formação oriunda do cinema mudo, Hitchcock acreditasse num cinema “puramente visual”, onde os elementos cinematográficos (e não somente literários) se encarregariam de contar a história. Não se conformava que seus filmes se resumissem a meras filmagens de peças teatrais, como muito se fazia na época. Nesse aspecto, a recente visita aos estúdios alemães da UFA parece pontuar os filmes do início de sua carreira. Os 39 Degraus não é exceção. Todo o filme está envolto por uma estética próxima ao expressionismo, valorizando contrastes, profundidade de campo e também assumindo ângulos de câmera bem próprios daquele cinema (como planos em que algumas janelas podem ganhar formas muito distorcidas). Apesar de quaisquer semelhanças com cinematografias anteriores, é inegável a presença de uma mente criativa e cuidadosa por trás das câmeras. É perceptível a utilização de planos mais ousados, que talvez tenham servido de ensaio para imagens monumentais da filmografia do cineasta, presentes em filmes como Psicose, Os Pássaros e Janela Indiscreta, para citar o essencial.
A importância de Os 39 Degraus se dá não somente por sua qualidade, mas também pelo que ele, junto a outros filmes relevantes da fase inglesa do diretor, anuncia. De acordo com o próprio, enquanto trabalhava em solo inglês, seus filmes poderiam ser divididos em dois períodos: a fase muda se chamaria “A Sensação do Cinema”, onde procurara evoluir suas técnicas, enquanto a segunda parte receberia o título de “A Formação das Idéias”. Situado nesta última fase, Os 39 Degraus, eleito pelo BFI entre os dez maiores filmes britânicos de todos os tempos, é uma das produções inglesas responsáveis por oferecer ao “jovem com cabeça de mestre” um passaporte para os grandes estúdios de Hollywood, onde se firmaria como um dos maiores realizadores da história do cinema – título que, apesar de situado geograficamente em terras estranhas, certamente poderia ter sido alcançado em qualquer lugar.
"O terceiro homem" por Lucas Simões
A guerra fria é tradicionalmente conhecida pela polarização ideológica entre socialistas e capitalistas. Esse clima de incerteza entre sistemas políticos pode ser referenciado para a narrativa em “O Terceiro Homem” (Carol Reed, 1949) que apresenta personagens dúbios em uma Viena arrasada e dividida.
O longa inglês trata da história de um decadente escritor americano chamado Holly Martins (Joseph Cotten) que chega a Áustria após receber uma oferta de emprego de seu grande amigo Harry Lime (Orson Welles). Martins descobre que Lime está morto, vítima de um estranho atropelamento. Entretanto, insatisfeito com a inconsistência das versões do acidente, o escritor encarna o espírito investigativo na procura pelos fatos reais.
O filme inicia com uma narração descritiva que ambienta o espaço diegético em Viena logo após a Segunda Guerra Mundial. O contexto ambíguo do pós-guerra serve fundamentalmente como plano de fundo com algumas intervenções sutis durante o enredo, mas é a base que introduz os personagens de idoneidade questionável como Baron Kurtz, Sr. Popescu e o próprio Holly Martins.
Kurtz estava presente no momento do acidente (junto com Sr. Popescu, o Romeno) e durante uma conversa com Martins há índices notáveis, através dos próprios diálogos e close-ups em suas feições, da construção de um arquétipo misterioso. Martins ao conhecer a atriz Anna Schmidt, que foi amante de Lime, retrata seu ponto de vista suspeito em relação à figura de Kurtz. Popescu é uma figura ardilosa e demonstra ter forte poder persuasão, sabe dialogar e tenta ao máximo convencer Martins do caráter acidental da morte de Harry Lime. Já o escritor demonstra durante toda narrativa ser um personagem idôneo e justo, porém ao final resolve ajudar a polícia a capturar seu amigo Harry, denotando a perda de seus princípios morais por interesse.
O contexto do pós-guerra é explorado também através de uma cenografia peculiar. Nas cenas que mostram perseguições é possível visualizar o cenário natural de Viena na época. Prédios e carros destruídos, crateras e tijolos espalhados pelas ruas dão realidade às externas.
É destacável a intenção do diretor em reduzir o clima de tensão em algumas cenas. Evidências são encontradas, por exemplo, nos planos em que uma criança aparentemente inocente acusa Martins e outro em que um vendedor de balões insiste em vendê-los para os policiais. O próprio tom jocoso e irônico de Harry Lime contribui para suavizar o suspense. A trilha sonora, concebida por um músico de Viena chamado Antos Karas, é regular durante todo o filme. Toques de cítara (instrumento de cordas) dão ritmo a narrativa e também minimiza a tensão conferindo um caráter mais despojado ao filme.
Ao tratar da narrativa, nota-se a construção de forma linear e retórica, a cada cena uma ação se correlaciona com outra cena seguinte. Um exemplo é a parte em que Martins discute com o porteiro a respeito do acidente, um garoto é subitamente inserido no plano de forma aparentemente despretensiosa, porém mais na frente esse mesmo garoto vai ser o responsável por acusar o escritor de ter assassinado o próprio porteiro em uma cena inverossímil, e até mesmo cômica, que finaliza com o menino correndo atrás de Martins acompanhado de Anna. Mais uma vez a amenização do suspense é explorada.
Outro ponto de destaque em “O terceiro homem” é a presença dos elementos de um típico “Film noir”. A começar pelos cenários fortemente influenciados pela vanguarda expressionista, apresentando um visível jogo do claro com o escuro (chiaroescuro). A cena antológica do aparecimento repentino de Harry Lime, quando seu rosto se projeta iluminado em meio às sombras das ruas de Viena, ilustra precisamente a técnica.
Personagens moralmente ambíguos também denotam alguns dos arquétipos “Noir” bem característicos. Há duas visões bem distintas em relação ao caráter de Harry Lime que é admirado por sua amante, porém recriminado pelo Major Calloway que o considera o maior golpista de Viena.
Em relação ao contexto fílmico, focam-se inicialmente as buscas de Martins por evidências que embasam as dúvidas sobre a morte de Lime. A versão do acidente aceita pela polícia vai sendo aos poucos contestada. O “terceiro homem” que dá título ao filme é a presença de um terceiro elemento no momento do atropelamento. A revelação feita pelo porteiro, testemunha-chave, contradiz a versão de Kurtz e Popescu. Posteriormente, o assassinato do porteiro amarra a narrativa policial e confirma as suspeitas de Martins.
O clímax do enredo é atingido no aparecimento repentino do suposto falecido Harry Lime. De forma magistral, o personagem interpretado por Orson Welles rouba atenções em uma cena até hoje marcada na história do cinema. Bastaram poucos minutos para Welles demonstrar todo seu talento.
Através de uma composição maniqueísta, o filme finaliza com a máxima em que o bem vence o mal. O “bondoso” escritor Holly Martins mata com tiros o “adulterador de penicilina” Harry Lime. Destaque para a cena final, após o verdadeiro enterro de Lime, em que mostra Martins aguardando Anna que caminha no centro. Realizada em um plano longo e contínuo que oferece margem para múltiplas interpretações conclusivas.
domingo, 18 de abril de 2010
"Narciso Negro" por Renato Souto Maior
Trajetória moldada por transformações e lição de moral ao fim; típica narrativa, cinematográfica, ou não. Através de tal experiência reveladora acaba-se chegando a algum nível de aprendizado e consciência sobre algo; o percalço do caminho o torna exemplo a ser reconhecido e respeitado. Inicia-se, então, outra “jornada”, e outras questões certamente surgirão. Em Narciso Negro a protagonista, jovem e freira, tem de lidar com situação adversa e incomum; liderar uma nova ordem, a “Ordem das Servas de Maria” em Calcutá, na Índia. O local a ser habitado pelo grupo de freiras é misterioso; o filme revela sutilmente os fatos ocorridos no espaço, porém estes não são de conhecimento das religiosas, de certo. Sabe-se que lá aconteceu uma série de episódios com outro grupo religioso, de padres, e é conhecido por ter sido ambiente de um grupo de mulheres – esposas ou amantes – de algum líder ou poderoso indiano dono do local. Em uma espécie de clausura, elas convivem com uma comunidade primitiva ao pé de uma enorme montanha, morada do grupo, envoltas em vento, névoa e sensação adversa. Apenas em um ambiente tão inóspito como este para as memórias e desejos mais reprimidos emergirem sem dificuldades. Um típico e simples inglês, bonito, provocará algum tipo de reação, logicamente.
Um aspecto gritante no longa é a tensão sexual entre a irmã líder e o inglês “protetor” do grupo de freiras. Aliás, não só apenas entre os dois, mas a sua presença desencadeará o sentimento semi-adormecido da freira “má” em se libertar de vez e por em prática todo o seu desejo retraído. A ideia da falta de amor é colocada em questão através das memórias da irmã líder, ao revelarem seu passado feliz com um possível marido que acaba por abandoná-la; mais tarde, em momento de desabado e revelação, fica evidente o porquê de a mulher ter se tornado freira; o amor não “correspondido”.
A produção endeusa e celebra a cor; graças ao technicolor exuberantemente usado na tela, dando vida e lugar para os mais diversos tons e texturas. Em duas cenas especialmente simbólicas e relevantes a importância da cor extrapola o limite visual indo acomodar-se na simbologia. A primeira delas é a passagem onde uma das irmãs se revela como não mais freira e aparentemente possuída por algum sentimento, que evoca sensualidade e cresce em cena quando a mesma passa um batom exageradamente vermelho nos lábios, em contrapartida da irmã líder e “boa”, com seu hábito pálido, que segura uma bíblia; o embate das duas é visível, cada qual com sua respectiva ferramenta; batom e maquiagem, bíblia. Em outro momento um príncipe indiano, ou algo do tipo, exibe um lenço extremamente azul e, segundo ele, perfumado; lenço este intitulado – sim, ele dá nome ao lenço - Narciso Negro, colocado em um momento onde a freira problemática encontra-se justamente confusa – mais do que as outras, pois todas estão – e prestes e ser despertada a qualquer momento. Essa transição da irmã já é esperada, pois desde o começo da produção ela já é apresentada como problemática e “doente”, tendo até sua participação questionada pela freira líder na recém formada Ordem.
O filme toma forma clássica, com uma narrativa simples, linear e possuidora de todas as características comuns a um bom melodrama. A trilha aqui ganha caráter exagerado, sem conter-se, propositalmente colocada nas respectivas cenas onde se precisa de uma forte e marcante música para elevação do ato; tudo muito bem executado. É uma história de redenção, reflexão e de trajetória, mas tem seu charme; toda a estética soberba acoberta qualquer falha, lugar comum ou clichê; a experiência de se assistir ao filme é impactante, e o emprego da cor em suas cenas impressiona até hoje. O elenco funciona bem, e trabalha dentro do proposto pela história; são encenações de certo exageradas em alguns momentos, em outros mais subjetivas. Uma boa mescla, dinamizando bem a trama. A questão da dominação exercida pelas freiras sob um grupo de nativos indianos remete fatalmente a histórica relação entre Inglaterra e Índia; percebe-se que a ambientação da mansão habitada pelo grupo, localizando-se em ambiente indiano, respeita e obedece a traços da cultura indiana. A direção de arte trata bem o ponto, e a presença indiana no filme revela certa proximidade entre os países, como se o exótico para um público britânico fosse alguma região da Índia mesmo. Vide o número de prêmios recebidos pela arte do filme – entre eles Oscar de Fotografia e Direção de Arte -, fica evidente a força estética da produção.
A sequência final do filme exibe um duelo entre a irmã Clodagh – a líder, protagonista, boa – e a irmã Ruth, má. A cena engrandece com uma música pesada, melodrama ao extremo, e um suspense culminante, com o duelo entre as duas. O longa termina logo na cena seguinte, e coloca sutilmente, pode-se dizer, uma passagem crucial para a história; a despedida de Clodagh e Dean, inglês “faz-tudo” da Ordem. Tendo tido uma relação toda construída na base da memória e da tensão sexual, ambos, respeitosamente, se despedem, e ao fazê-lo cumprimentam-se formalmente com as mãos, em um toque que evoca toda a intenção de ambos; mesmo não tendo acontecido nada, sexual, entre os dois, ali, no aperto de mão, se evidencia o que já se sabia: a ligação “afetiva” construída por eles.
A intensa criatividade surgida com os líderes dos Archers, Powell e Pressburger encontra, depois de uma série de filmes com temática de guerra, em Narciso, o primeiro longa de uma série de outras produções caracterizadas por outros temas; é difícil de se conceber ideia melhor e forma mais coerente para se iniciar uma nova fase se não com este filme extremamente tocante e com um visual estupendo. É a constatação de um momento novo na carreira da dupla, com peso de importância, então, tanto para os realizadores, por inauguraram algo aqui, como para o cinema britânico, por oferecer trabalho tão distinto e singular em sua filmografia.
"If..." por Pedro Coelho Duarte Ribeiro
“If...” não é propriamente um filme de escola. Ele extrai do gênero vários elementos para fins estéticos específicos: autoritarismo, juventude, formação da pessoa. A escola não é a única fonte, o momento histórico é que dá o tom de rebelião ao filme. 1968, Revoltas estudantis, hippies, drogas, liberação sexual: jovens pondo em xeque os mais arraigados costumes. Em sintonia com a atmosfera da escola e dos anos 60, militares surgem lisergicamente no meio do filme e belas imagens da fria e firme arquitetura da escola reafirmam o peso esmagador da tradição.
A narrativa do filme é alegórica. Os personagens não são pessoas, mas símbolos. São metáforas de entidades sociais maiores, cujas cenas representam seus macrorelacionamentos. Durante todo o filme Travis e seus amigos - juventude desajustada – estão em busca de referenciais próprios para desenvolver sua individualidade e colidem em várias barreiras sociais: há os outros jovens conformados ou até compactuantes com a moral vigente. Há fiscais cujo papel moralizante esconde suas próprias imoralidades. O diretor e seu falso discurso conciliador. O padre como uma religião justificadora da opressão. Trata-se também da sexualidade. Uma jovem moça representa a liberdade sexual. Um jovem com feições femininas mostra o lugar do homossexual na sociedade. Há outros personagens-símbolos menores, mas não menos interessantes: o jovem calouro sofrendo com a adaptação daquele ambiente que agride seus impulsos individuais. O nerd como uma ciência desajeitada e solitária em seus próprios devaneios. O velho militar repetindo seus jargões de autoritarismo.
O enredo é tênue, senão nulo: os eventos não se conectam propriamente, mas o fato de haver elementos em comum cria uma conexão mais conceitual do que narrativa que se reflete na divisão do filme em capítulos. Essa desfragmentação além de útil para tornar mais forte as alegorias, dá um clima surreal que se adequa bem ao conteúdo. Forma e matéria estão em sintonia. No decorrer dos capítulos, situações são construídas para colocar em choque os diversos personagens-símbolos. O filme é conduzido sempre no sentido da não possibilidade de coexistência culminando com a cena final, onde os jovens desajustados junto da “liberdade sexual” e do “homossexualismo” metralham todos os outros personagens, matam o diretor que quer resolver a situação com um diálogo ingênuo, enquanto militares decadentes e velhinhas rabujentas atiram em resposta. É a total impossibilidade de convivência entre uma coletividade uniformizadora e indivíduos com demandas particulares.
Desde as artes visuais até os intricados jogos de poder presentes na sociedade,
“If...” é um filme inteligente, meticuloso e de bom gosto. Em uma primeira vista, o tom alegórico do filme pode parecer ingênuo por deixar claro e direto demais as metáforas que envolvem um filme. Mas há uma clara opção política por “nomear os bois” e mais do que isso há uma opção estética amparada em uma longa tradição satírico-alegórica britânica – Thomas More, Jonathan Swift, George Orwell ,Aldous Huxley, et cetera – e vale ressaltar que “If...” se filia com dignidade a estes grandes nomes da arte.
"Narciso Negro" por Luciano Monteiro
Quantos irmãos cineastas vimos surgir na história da sétima arte? Coen, Wachowski, Farrelly, Taviani. A lista não é tão longa, mas existe uma dupla de realizadores que, se não são irmãos de sangue, ao menos o parentesco existencial e cinematográfico os tornariam irmãos: Michael Powell e Emeric Pressburber. Juntos realizaram uma cinematografia intensa e fundamental para a história do cinema britânico e porque não dizer mundial. Filmes como "Sapatinhos Vermelhos", "Sei onde fica o paraíso" listam dentre os clássicos da dupla que dividia os roteiros – Pressburger escrevia os argumentos, mas como era húngaro, não dominava bem a língua inglesa, Powell, então, escrevia os diálogos. Entretanto, na fase de realização, a produção ficava a cargo de Pressburger, enquanto Powell assinava a direção. Tal particularidade deixava uma evidente marca impressa em seus filmes, especialmente no clássico Narciso Negro, feito em 1947. O filme narra a missão homérica de cinco freiras de evangelizar e disseminar a cultura britânica no Himalaia. O feitiço se vira contra o próprio feiticeiro e as irmãs da congregação vão, os poucos, sendo devoradas pelo ambiente e pela cultura local. O cenário hostil, os nativos com sua ingênua sexualidade, a distância do lar, a solidão e até mesmo o vento que nunca cessa. Tudo atormenta as pobres freirinhas, que se revelam, diante de toda essa pressão, não serem tão bondosas assim.
Powell faz um belo e assustador retrato da colonização no seu sentido mais antropológico, filosófico e inverso. Aqui a vítima não é apenas o colonizado. O colonizador, longe de casa e dos seus, também se torna vítima. O filme levanta o debate sobre a imigração e a as relações entre a cultura britânica em sua empáfia ante uma cultura dita inferior, um tema hoje tão em voga no cinema britânico de Frears e Loach. Feito em techinicolor e todo filmado em estúdio, Narciso Negro antevê toda uma abordagem cinematográfica e porque não dizer cultural dos hoje chamados países emergentes. A originalidade que torna o filme único é o fato de ser um filme feito pelos próprios colonizadores.
O elenco inspirado e a direção precisa de Powell servem de suporte para uma estrutura narrativa bem delineada, bem construída, que consegue tornar a experiência de viver no Himalaia um verdadeiro suplício. Não apenas as freiras sofrem. O espectador sofre junto com elas, e cada plano, a cada imagem de miséria e misticismo nós nos tornamos cúmplices da loucura dogmática das freiras versus o estranhamento e o medo do desconhecido dos nativos.
Apesar de retratar as freiras de forma caricata, como velhinhas más e mal amadas tal problema não chega a atrapalhar o filme como um todo, especialmente se o colocarmos dentro do contexto em que fora realizado. No sentido metafórico elas representam aquilo que é de mais representatividade da cultura ocidental européia: o cristianismo.
Uma obra poderosa, atemporal e com méritos suficientes para ser considerada uma das grandes obras primas do cinema inglês e porque não dizer, do cinema mundial.
"Narciso Negro" por Rinaldo da Silva Pereira Junior
É tarefa difícil classificar o cinema feito pela dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, tanto em termos de cinema britânico quanto em termos de qualquer outro cinematografia nacional da época de sua produção, seus filmes não pertencem nem a histórica tradição realista britânica, que herdou ao mundo a famosa escola documentaristica britânica, nem a nenhuma outra tendência cinematográfica posterior do cinema britânico, são obras extremamente pessoais como o que faria muito depois, por exemplo, o cineasta chileno Alejandro Jodorowski. A catalogação de seus filmes é bastante complicada, a não ser que se recorra ao rotulo fácil e geral de cinema europeu.
Sob a égide de sua produtora The Archers, que é também o pseudônimo pelo qual a dupla ficou conhecida, eles dirigiram (geralmente função desempenhada por Michael Powell) e escreveram (geralmente tarefa de Emeric Pressburger) uma dezena de filmes no período entre os anos de 1940 e 1950 que marcaram definitivamente o cinema mundial pela inventividade e estranheza de seus personagens e tramas. A produtora foi fundada em 1943 e chegou a lançar algo como um manifesto em que propagandeava sua liberdade de criação e admitiam sua responsabilidade por todo material gravado e produzido, se refutavam a serem orientados ou coagidos por quem quer que fosse, e se gabavam da criatividade de suas idéias que estariam ‘’À frente não somente de nossos competidores, mas também a frente da época’’ além de pregarem o respeito mútuo entre todos os seus colaboradores.
Em pouco tempo eles criaram e mantiveram um grupo regular e fiel de atores e técnicos que se juntaram a produtora durante os doze anos de sua existência.
É também difícil o acesso a filmografia do grupo devido ao mesmo motivo que os torna renomados: a estranheza de seus filmes, o que os torna comercialmente pouco viáveis. Particularmente conheço pequenas passagens de A Canterbury Tale, filme de 1944 e de A Matter of life and death, obra de 1946, além de conhecer o renome e a importância de Sapatinhos vermelhos (The red shoes), musical que subverte as regras do gênero e é considerado por muitos a obra prima da dupla. Como obra completa, conheço e admiro a beleza e domínio técnico de outra de suas principais obras primas, Narciso Negro (Black narcissus), obra de 1947 e imediatamente anterior a Sapatinhos Vermelhos.
O filme concerne um grupo de freiras que decide estabelecer uma escola e um hospital em uma de suas missões nos confins do Himalaia e através de um trabalho de catequização e educação cristianizar a comunidade. O que acontece é exatamente o contrario: o grupo se vê circundado pela mística local, seus costumes nativos exóticos, a sensualidade e ignorância da população e a resistência da comunidade em aceitar o que é lhe é oferecido. O clima do lugar acaba transformando de maneira dramática o dia a dia das freiras e pior sua fé e personalidade. A freira responsável pela administração da missão, Irmã Clodagh se vê atraída por um agente britânico local, o que lhe traz a tona recordações de um frustrado ex-amor que resultou exatamente em sua retirada do mundo secular para o mundo religioso, enquanto outra freira, Irmã Ruth passa a adotar uma postura agressiva contra sua superiora, aparentemente por estar também atraída pelo mesmo homem. Questões como o limite da fé, intromissões de um passado incomodo e o choque religioso entre religiões tradicionais e as imposições que o cristianismo doutrinador tentar impor aos povos ‘’pagãos’’ são claramente expostas e vão levar ao clímax trágico.
Há também uma leitura política. A fuga das irmãs do mosteiro e da vida da comunidade representaria o fim do domínio do império britânico em suas colônias mundo a fora.
Powell e Pressburger têm um talento enorme em contar estórias complexas e de mostrar os conflitos emocionais a que seus personagens são expostos de uma maneira extrema simples e direta, e talvez Black narcissus seja um de seus filmes mais acessíveis, com uma narrativa convencionalmente linear e clara. A ótima direção de arte transforma de uma maneira extremamente convincente uma propriedade britânica em um convento retirado ao pé de uma montanha no Himalaia e o figurino tanto das freiras quanto dos nativos só fazem reforçar a ilusão.
Independente de catalogações, o cinema da dupla deve ser conhecido e estudado, tanto pelo seu valor estético, que é claramente perceptível em sua cuidadosa direção de arte, figurino, realismo das locações, fotografia e outros aspectos, quanto pela liberdade e inventividade narrativa e de temas e também a maneira singular com que esses temas são abordados. Vamos sem duvida mergulhar num universo bem pessoal e a principio estranho, mas que com certeza nos propiciará uma rica e inesquecível experiência fílmica.
"39 Degraus" por Ricardo Duarte
Nos dias atuais é quase indissociável o gênero suspense e o nome de Alfred Hitchcock. Conhecido como o mestre desse gênero, apenas alguns poucos filmes da sua extensa filmografia não pertencem a essa classificação. Cenas antológicas, como o esfaqueamento de Lila Crane no chuveiro estão na mente de milhares de cinéfilos ao redor de todo mundo e servem de material para inúmeras paródias e/ou inspirações. Entretanto, quase todos os filmes mais comentados de Hitchcock, ou considerados como seus melhores, são os feitos quando ele estava nos Estados Unidos, fazendo com que os seus longas-metragens britânicos sejam esquecidos por grande parte das pessoas. O que é uma pena, pois nele já podemos perceber algumas das características marcantes presentes nos seus trabalhos posteriores.
“39 Degraus” tem como tema central algo recorrente no cinema do mestre do suspense: um homem sendo culpado e, consequentemente, perseguido por algo que não fez. A história é a do canadense Richard Hannay, que, em uma noite, após dois tiros que dispersam uma multidão num show de apresentações, acolhe uma misteriosa mulher na sua casa. Tudo se complica ao descobrir que sua hóspede é, na verdade, uma espiã que descobriu um plano para roubar segredos vitais do exército britânico e que está sendo perseguida. Morta durante a noite pelos agentes que a perseguiam, a culpa por seu assassinato recai sobre os ombros de Richard, que, seguido pela polícia e os criminosos, tenta arranjar um jeito de limpar o seu nome. Claro que se tratando de um filme de Hitchcock os planos, ou os “39 degraus”, são apenas um MacGuffin, ou seja, uma desculpa para o desenvolvimento da história e personagens, fazendo com que eles não tenham importância. Entretanto, o diretor devia saber que não explicar o “mistério” que dá título ao filme provavelmente decepcionaria a audiência, por isso inclui uma explicação rápida, rasa e totalmente dispensável nos últimos minutos da projeção.
Sendo baseado num livro de espiões com todos os clichês desse gênero, o próprio protagonista ironiza esse fato no início do filme, quando fala:
“Mulher charmosa e misteriosa perseguida por pistoleiros. Parece história de espiões.”
Não é na fraca história que devemos nos focar, mas sim na relação entre Richard e Pamela e no seu simbolismo com as algemas. O símbolo mais concreto e óbvio da perda de liberdade e também com uma relação secreta com o sexo (como afirmou o próprio Hitchcock), elas serviriam para mostrar que os relacionamentos privam-nos de muitas coisas. Pensando dessa forma é extremamente correto que na primeira vez que se encontram e Richard a beija forçosamente, para se esconder da polícia, ele segure as mãos dela da mesma forma que as algemas fariam mais tarde e que a última cena do filme mostre apenas os protagonistas de costas, dando ênfase na algema enquanto os dois se dão as mãos. Começando a ser “presa” pela força, mas no final do filme, mesmo após ter escapado do que a prendia a ele, Pamela pega na mão de Richard por vontade própria, transmitindo uma mensagem esperançosa e moralista de Hitchcock em relação aos relacionamentos.
Um fator do filme que pode incomodar bastante as pessoas que vêem o filme esperando um filme de ação ou suspense ou, simplesmente, algo mais parecido com filmes como “Psicose” ou “Um Corpo que Cai”, é o uso quase ininterrupto do humor. Mas esse também é um dos fatores presentes constantemente nos filmes do diretor britânico, algo que ele mesmo define como sendo o understatement. Sendo muito mais presente nesse trabalho no que na maior parte dos outros, o humor está ao longo de todos os momentos do filme, seja uma piada de um policial que vê os protagonistas se beijando ou as ações de um marido ciumento pensando que está sendo traído. Devo admitir, entretanto, que esse humor não me agradou algumas vezes em que o achei desnecessário ou bastante infantil. Outra coisa que realmente me irritou bastante ao ver o filme foi a inverossimilhança de algumas passagens. Mesmo sabendo que Hitchcock afirmava que não concordava com a verossimilhança e que se livra dela sempre que isso for preciso para o desenvolvimento da história, acho que ele poderia dar, ao menos, um pouco mais de importância a ela, pois há coisas realmente intragáveis que acontecem no filme e que poderiam ser facilmente explicados se ele fizesse um esforço. Por que os assassinos não mataram Richard quando invadiram sua casa se logo depois o perseguiriam para tal?
Quanto ao lado estético, o filme segue um padrão não muito diferenciado, o que decepciona um pouco, tratando-se de um filme de Hitchcock, reconhecido por muitos cineastas como o criador de alguns planos geniais, embora haja algumas coisas dignas de nota. Os close-ups estão bastante presente no filme, seja para mostrar algo importante ou aumentar o mistério/dramaticidade, como quando a agente, logo no início do filme, dispara os dois tiros. A câmera é como uma pessoa, que sempre que vê algo importante ou interessante no cenário foca toda sua atenção naquilo, não mostrando mais nada na tela. Há também uma boa montagem quando a empregada, ao encontrar o corpo da mulher dá um grito e esse vira o apito do trem na cena seguinte. E o que falar da bela cena em que o diretor homenageia os filmes mudos durante o jantar na cabana? Em algumas trocas de olhares entre dois personagens, nós captamos tudo o que eles estão pensando sem nenhuma frase ser trocada entre eles, o que mostra um dos aspectos primordiais do cinema e me faz lembrar a afirmação de Bergman que o silêncio pode ser bem mais comunicativo do que várias falas.
Outro fato problemático são os diálogos fracos e às vezes caindo no ridículo. Muitas vezes esses são bastante expositivos e artificiais, alguns para provocar humor, outros para alavancar a história de espiões com dicas. Com uma boa exceção que é o diálogo entre Richard e a mulher do marido ciumento, no qual, em poucas frases descobrimos um bocado daquela personagem e criamos uma afeição mesmo ela aparecendo tão pouco no filme, e aqui abro parênteses para dizer que eu torci para a participação dela ser maior do que realmente foi, pois ela protagonizou duas das melhores cenas da película: esse diálogo e as trocas de olhares no jantar.
Preocupando-se mais nos seus simbolismos do que com a história em si, Alfred Hitchcock, fez um filme que possui sua essência como autor, mas que poderia ser bem melhor se fosse mais trabalhado. Ainda assim, uma obra divertida e com seus bons momentos, mesmo abarrotada de clichês e diálogos fracos.
"Desencanto" por Lady Patrícia Oliveira
Poucas vezes, ainda mais em dias atuais, um filme conseguiu ser tão sensível e verdadeiro ao tratar da paixão, ainda mais de forma tão consciente e realista. Parte do mérito é do diretor David Lean, que traz com seu Desencanto (Brief Encounter) um dos melhores filmes do gênero.
Apesar do título, Desencanto é um filme encantador: conta a história de Laura Jensson (Célia Johnson), uma dona de casa de um subúrbio inglês, que conhece um belo estranho, o médico Alec Harvey (Trevor Howard) em um café. Após alguns encontros, conversas agradáveis e troca de gentilezas, ambos vão, gradativamente, descobrindo-se apaixonados; ao mesmo tempo, vão sendo tomados pelo sentimento de culpa, uma vez que os dois são casados, vivendo numa época em que a traição conjugal era considerada algo sórdido. Apesar disso, é impossível não se comover com a história dessas duas pessoas comuns, vivendo a rotina de suas vidas burguesas e enfadonhas, sacudidas por uma paixão repentina. Tanto que ao mesmo tempo em que podemos torcer discretamente pelo romance proibido dos protagonistas, também simpatizamos com o esposo de Laura, o gentil Fred (Cyril Raymond). Através da narrativa da protagonista, acompanhamos do seu ponto de vista o modo como ela “revela” ao marido sua aventura extraconjugal. É interessante notar como seu tom de voz muda enquanto descreve as situações vividas: eufórico, ao contar suas fugidas com o amante; triste e melancólico, ao pensar em sua iminente partida para a África, e na inevitável separação.
Tecnicamente, o filme não ousa. Certinho, mas impecável: intercala momentos presentes com flashbacks e narração em off, recursos que funcionam bem; bela fotografia, montagem inteligente e ágil, não cansativa. Apesar do rótulo de “filme romântico”, Desencanto não cai na pieguice em nenhum momento, mantendo o tom até o final. Lean o conduz com sutileza, mas também com precisão, deixando-o evoluir de forma crível, e consegue uma proeza. O final feliz, porém, não virá. Prevaleceram as convenções morais (dos protagonistas, bem entendido), embora o filme, provavelmente, não tenha a intenção de ser moralista. Talvez por isso, a ausência de happy end, na época de seu lançamento o filme não foi bem recebido pelo público, que ansiava por finais felizes, após as conseqüências devastadoras da recente guerra. (Posteriormente, o filme foi indicado ao Oscar e ganhou o prêmio da crítica no Festival de Cannes). Mas isto não deve causar “desencanto” no espectador. Ao contrário. Desencanto é um lindo filme, que vale a pena ser visto.
"Adeus, mr. Chips" por Gibran Khalil de Espindola Brandão
De onde vem a fleuma britânica? Vem da disciplina, da ordem, da moral inalienável, da polidez e do senso de justiça e amor a pátria. É isto que nos apresenta o filme Goodbye, Mr. Chips (Sam Wood, 1939). Charmoso e leve, com seus momentos de riqueza humorística e melodrama equilibrado, o filme nos conta a vida docente de Mr. Chips (para os íntimos) em uma escola tradicional da Inglaterra e sua saga em prol do futuro da nação e da manutenção das instituições britânicas. Assim, o filme é um instrumento ideológico típico desta fase do cinema britânico ao frisar uma temática patriótica; propaganda de suas instituições seculares e da dignidade do povo britânico. Mr. Chips, não por acaso, se torna professor no auge do imperialismo.
Em 1870 (período mais forte do colonialismo britânico) era o professor iniciante e antiquado, que tenta de todas as formas conquistar os corações dos alunos, desejo alcançado graças a influência de sua esposa maternal e carinhosa – e com tendências levemente feministas. Com a Sra. Chips, o professor aprende a penetrar no coração da infância de forma a conseguir humanizar os seus alunos de forma mais fácil. Com o passar dos anos, o protagonista deixa de ser um mero professor e se torna um símbolo da própria instituição; imutável perante as dificuldades. Mesmo durante os bombardeios da primeira grande guerra, Mr. Chips mantêm-se impenetrável em seu senso de humor e justiça.
Enquanto várias gerações de crianças passam pelos muros da escola, a sala comunal e Mr. Chips permanecem intactos. Mr. Chips é o símbolo dos laços que promovem a identificação do britânico como membro de uma sociedade disciplinada, justa, moralista e senhora de sua história e tradição. E como tal, moralistas e disciplinados devem ser os jovens do futuro para a permanência da soberania da nação. O olhar do filme reflete o momento particular que vivia o Reino Unido. Flagrando-se em ruína, e imerso em uma nova guerra sangrenta, o que o país mais precisava era justamente a edificação de uma ideologia de nação, patriotismo e identidade nacional. Em meio a guerra, o povo britânico precisava de motivos para lutar, algo a proteger.
O que muito me chamou atenção no filme foi a imensa passividade dos alunos. Como tábuas rasas, recebiam as ordens e conhecimentos sem questionar. A autoridade dos professores é recebida pelos jovens sem resistência e até com certa alegria. A escola é, então, na visão fílmica, uma instituição total semelhante a um convento - voltada para formar seres humanos mais humanizados – ou mais britânicos!
Neste ponto, uma comparação entre o filme de Lindsay Anderson, If...(1968) e Goodbye, Mr.Chips é inevitável, quase que obrigatória.
Lindsay Anderson parece questionar desde o título do filme; “E se os alunos do Mr. Chips não aceitassem a autoridade da instituição?”, “E se tentassem resistir?”. Mesmo que de forma exagerada, o diretor critica essa passividade do aluno frente o professor, do individuo frente a autoridade, o britânico frente a imposição da pátria. If... de certa forma é a visão do aluno frente a instituição total. Mr. Chips pode ser representado como aquele professor risonho que joga bombinhas nos alunos no exercício militar e acha o sistema uma maravilha - atuando idealisticamente frente a realidade das estruturas de poder presentes. A instituição total de Lindsay Anderson não é mais um convento, mas sim, um presídio ou um manicômio, cercado por perversão e hipocrisia.
Épocas diferentes, visões de mundo e interesses diferentes. Obviamente, Lindsay Anderson queria ruptura enquanto que Sam Wood e toda uma nação em profunda ruína e imersa em uma nova guerra queriam união. Goodbye, Mr. Chips é esta tentativa de encontrar um ponto comum onde se amparar diante da dificuldade de sobrevivência. O encontro com as instituições edificantes da identidade britânica, como a família, a educação e as forças armadas parecem contar as possibilidades de permanência frente a adversidade, através da disciplina, da moralidade, da razão e da fidelidade. Mr. Chips dá forças, pois resiste. Resiste a tudo e aponta para um futuro além da guerra e do sofrimento, um futuro edificado pela natureza humanística da tradição que não pode ser destruída, responsável pela origem de um império forte e rico, um desejo de retorno a um período muito melhor do que a realidade da época.
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Um estranho na escuridão (I see a dark stranger) 1946, de Frank Laudner, por Igor Calado
O thriller “Um estranho na escuridão”, feito no imediato pós-guerra, usa, de maneira leve, o tema da 2ª Guerra Mundial como pano de fundo para uma história que mescla suspense com comédia e crônica de costumes. Conta a história da jovem nacionalista irlandesa Bridie Quilty que, em 1944, ao completar 21 anos, decide se mudar de sua cidade natal para Dublin, na tentativa de se juntar ao Exército Republicano Irlandês, na luta contra a dominação inglesa na Irlanda do Norte. Acaba vendo suas aspirações frustradas e, graças a seu ódio aos ingleses, acaba como colaboradora de espiões nazistas.
A trama aborda, de forma amaneirada e irônica, o sentimento anti-inglês existente na Irlanda, através da personagem de Bridie, interpretada por Deborah Kerr. Bridie cresce numa cidade do interior do país, ouvindo as histórias da participação heróica de seu pai na guerra contra os ingleses. Assim, desenvolve um nacionalismo exagerado que se reflete em puro preconceito contra todos os ingleses e numa busca ingênua para ajudar a Irlanda estando do lado de todos os inimigos da Rainha, como os nazistas. Os espiões nazistas são encarnados por personagens em sua maioria bastante maus, quase caricatos. Próximo do final da história, a ingênua Bridie reconhece que sua maneira de lutar contra os ingleses não é correta e promove a redenção esperada.
O filme poderia ser incluído, numa visão mais global, no grupo de filmes de guerra feitos durante e depois da 2ª Guerra Mundial. Desse mesmo grupo fazem parte filmes antológicos, como “Nosso Barco Nossa Alma” (Noel Coward e David Lean, 1944). Entretanto, ao contrário dos filmes feitos principalmente durante a guerra, que possuem um viés nacionalista, ideológico e panfletário relacionado à moral inglesa na batalha (como o filme de Coward&Lean), “Um estranho...” se enquadra num gênero comercial que ganhou força no pós-guerra e que, ao invés de associar a guerra à ideologias, a usa apenas como impulso para a trama, se utilizando da história real para tirar delas tramas de suspense, explorando bastante a figura do espião.
Estilisticamente, o roteiro possui “lacunas” propositais, como elipses da trama: informações importantes que são “puladas”, forçando o espectador a entender evoluções no enredo que aconteceram entre uma cena e outra, mas que não foram mostradas. Exemplo disso foi a ausência do aliciamento de Bridie pelos nazistas, que deve ser subentendido como tendo ocorrido entre duas cenas, que não se seguem imediatamente: numa, o espião nazista vai atrás de Bridie depois que descobre seu horror irlandês aos ingleses e seu interesse suspeito por aprender alemão; noutra, ele e Bridie se encontram secretamente no quarto dela para que ela lhe passe informações importantes. Essas lacunas propositais, entre outros detalhes não explicados mas subentendidos da trama, exigem do espectador participação e capacidade de inferir desenvolvimentos no enredo, tirando-o da passividade.
A tradição colonizadora britânica fica bastante explícita na visão ligeiramente preconceituosa apresentada dos irlandeses. Em oposição à naturalidade do retrato dos personagens ingleses no filme, os irlandeses são vistos com um olhar claramente estrangeiro e supostamente superior, com ênfase nos “exóticos” costumes locais e no sotaque exagerado, além da clara ironização do sentimento anti-britânico. Esse retrato “pitoresco” dos estrangeiros pode ser tido como um traço comum numa época em que o multiculturalismo e o relativismo cultural ainda não estavam em voga, o que só aconteceria nas décadas seguintes, impulsionados pela descolonização da África e da Ásia e a criação da ONU. A visão inglesa dos irlandeses, neste filme, é mais similar a uma visão hierárquica, como a norte-americana dos países da América do Sul, do que uma relação mais “igualitária”, como geralmente ocorre com a representação entre nações européias, por exemplo: uma visão britânica dos franceses.
O tema principal do filme é claramente uma visão preconceituosa, suspostamente tolerante e compreensiva, do sentimento anti-britânico na Irlanda. Sem adentrar profundamente em questões político-ideológicas, o filme simplifica o anti-anglicismo irlandês como resultado de uma guerra (no caso, a Guerra de Independência Irlandesa) e da frustração irlandesa por estar agora dividida em dois Estados (Estado Livre da Irlanda e Irlanda do Norte). O binômio nacionalismo irlandês e anti-anglicismo leva a personagem principal Bridie a se envolver ingenuamente em uma trama de espionagem, até que, num momento de compreensão, ela decide não mais ajudar os nazistas. Ao final do filme, Bridie casa-se com um ex-militar britânico (Trevor Howard), que conheceu no começo do filme e que sempre tratou mal, apesar dos esforços dele para entendê-la e resolver o relacionamento complicado dos dois. Fica óbvia então uma idéia de que o anti-anglicismo deve ser encarado como uma forma ingênua dos irlandeses de lutar contra uma relação quase “natural” com os britânicos e que deve ser resolvida numa base de compreensão quase paternal com essa rebeldia –que, apesar do caráter “adolescente”, pode desviar-se para coisas mais perigosas como o IRA ou uma relação com os nazistas.
O filme conclui, então, como uma negação de bases ideológicas e factuais mais sólidas para o sentimento anti-inglês na Irlanda e uma justificação de um instinto colonizador britânico que remonta claramente à Kipling: a dominação é vista como correta e como uma tarefa, análoga aos prolongados esforços do militar britânico por uma boa relação com a irlandesa, ao final recompensados.
"Hábito de sexo: não se esconde a libido" por Evandro Mesquita
A dúvida inicial era se daria certo reproduzir um cenário oriental de tamanhas proporções para os diretores Powell e Pressburger rodarem esta história que mistura religião, sexo e poder.
O palácio de Mopu, ex-harém, transformado em convento, onde a maior parte das ações acontece, foi concebido por Alfred Junge e construído em Pinewood. O pano de fundo do Himalaia foi pintado em vidro e a brisa da montanha foi feita com um grande ventilador. A recompensa de Junge foi ganhar o Oscar assim como Jack Cardiff que levou o de melhor fotografia pela profundidade visual e suavidade na produção de cores, coisa rara para a época. A utilização do estúdio favoreceu a um total controle sobre a atmosfera e o ambiente os quais, aliados a virtuosidade técnica explicam o porquê Narciso Negro continua a exercer uma espécie de referência para gerações de novos cineastas.
O filme é, sem dúvida, tingido de clichês orientalistas: os nativos são vistos como inocentes ou infantis; o misticismo do oriente representado pelo mudo Sagrado que fica embaixo de sua árvore em eterna meditação; o exotismo sem freio representado pelo jovem general (Sabu) e Kanchi (Jean Simmons). Kanchi, assim como homem Sagrado, nunca fala; seu silêncio parece acentuar sua frieza. Além disso, a estranheza do lugar, onde o vento nunca para de soprar e o ar que é tão claro que dá para enxergar a centenas de metros de distância, são culpados pelo mal-estar que causam nos europeus.
Narciso Negro parece zombar com o exotismo em especial no momento em que Sabu anuncia que seu perfume Narciso Negro do título foi comprado em lojas do exército e da marinha.
Entretanto, enquanto a tensão começa a apertar as freiras, enquanto as repressões retornam para assombrá-las, fica claro que o principal catalizador, com certeza no caso de ambas as irmãs Clodagh (Debora Kerr) e Ruth (Kathleen Byron) é o Dean (David Farrar), o agente britânico que trabalha como o governante local e que convidou (seduziu?) as irmãs. Como os nativos, Dean é altamente sexy em termos de aparência com suas camisas reluzentes e coloridas e seus braços e pernas descobertos, contrastando com os austeros hábitos das freiras. No momento de crise ele aparece na cena sem roupa até a cintura, proporcionando uma imagem da crua sexualidade masculina.
A partida das freiras confirma a suprema vitória da repressão. Clodagh e Dean trocam agrados; ela lhe oferece a mão a qual ele segura momentaneamente. Então a chuva começa, podendo isto ser interpretado como o símbolo de liberação sexual, porém vemos a imagem de Dean fadado a ficar com os “fantasmas” que Clodagh foi capaz de deixar para trás. O lançamento de Narciso Negro em 1947 coincidiu com o fim do Raj (período da Inglaterra colonial no sul da Ásia entre 1858 e 1947). A retirada das freiras não só ecoa como o fim do domínio inglês sobre a Índia, como também a imagem de Dean, o inglês colonialista sofrendo o fardo de suas próprias emoções reprimidas, o que proporciona uma reflexão sobre o fracasso do poder imperial.
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"Adeus, mr. Chips" por Camilla Vanessa Sampaio Bondan
O filme conta a história de Mr. Chips, um professor sério e sem uma relação afetuosa com os seus alunos da Brookfield, uma escola tradicional inglesa. Tudo muda quando ele conhece uma jovem atriz de musicais ,Katherine, com a qual se casa. Apesar da lamentável, mas fundamental saída de Katherine da trama, seus ensinamentos acabam transformando-o numa das figuras mais marcantes na história da escola e de seus alunos. Uma obra que eleva a nacionalidade britânica através da valorização das tradições (escola, família).
A passagem de tempo no filme é muito bem feita através de acontecimentos como a própria primeira guerra e a entrada dos alunos de outra geração, filhos de ex alunos do Mr. Chips.A excelente atuação de Robert Donat lhe rendeu um Oscar, ele conseguiu expressar perfeitamente as duas fases antagônicas do professor (antes de Katherine, e depois dela).
Apesar da primeira guerra mundial, Mr. Chips decide continuar com as aulas da mesma maneira que ocorriam antes o que de certa forma conforta seus alunos e eleva o valor dessa instituição britânica. Esse filme faz parte de um grupo de filmes feitos nesta época com a intenção de fazer a população britânica valorizar mais seus costumes e "Adeus, Mr. Chips" passa essa mensagem de uma forma leve e descontraída na figura deste querido professor.
"If..." por Thiago Rocha
If...., filme de Lindsay Anderson de 1968, assim como muitos filmes dessa geração, traz muitas marcas de seu tempo. Fazer filmes independentemente das deficiências técnicas e financeiras e uma atmosfera contra cultural. Mas ao mesmo tempo, há algo em If.... que o deixa bem moderno, atemporal, o que não acontece com muitas obras que trabalham as mesmas influências da época.
No mesmo ano que o filme foi realizado, aconteceram as revoltas de 68. Não é estranho pensar que o filme carregue um pouco do clima gerado pelos debates políticos. O teor contra cultural do filme nasce daí. Uma revolta contra a instituição da academia. A última cena é até emblemática: os alunos rebeldes sobem no telhado da igreja e atiram contra professores, pais e outros alunos. Impossível não lembrar imediatamente de outra situação: a dos estudantes que entram com metralhadoras nas escolas americanas, atirando em qualquer um que passe na frente.
Isso já virou documentário e ficção em cinema com, respectivamente, Tiros Em Columbine e Elefante. Mas é claro que isso é só visualmente parecido. No fundo são coisas bem diferentes. E é o posicionamento político que os diferencia. Nos filmes estadunidenses a situação não é politizada. Ela está mais para o existencialismo. Em If...., a rebelião nasce de um clima de estranha aceitação na relação de obediência e respeito criada entre comandados e comandantes, que depois se transforma em indiferença e mais tarde, em revolta. A direção de arte já nos deixa preparados para essa virada, pois as fotos na parede que o personagem Mick Travis, interpretado por Malcolm McLaren, coleciona em seu quarto estão carregadas de teor revolucionário e de contestação, como o quadro O Grito de Munch, fotos de Che Guevara, fotos de pessoas armadas em guerrilhas. No entanto, Anderson faz com que o filme não sirva à um alinhamento político e que não tenha o peso de pensadores em vigência como Karl Marx, por exemplo. Isso já o diferencia de outros diretores da época. Pode-se dizer que ele até tenha certo niilismo, já que o personagem do Mick Travis não tem exatamente um objetivo político, uma meta. Ela busca, na verdade afirmar mais uma individualidade do que uma identidade ou um projeto político.
Os cinemas novos, inclusive o inglês, retomaram a lição do neorrealismo italiano e da nouvelle vague francesa em trabalhar independentemente de condições adversas. Em If.... fica claro essa questão no que diz respeito às escolhas das imagens. As imagens do filme misturam o colorido e o preto e branco sem que isso repercuta necessariamente à narrativa. Quer dizer, as imagens sem cores não significam flashbacks ou imaginações, por exemplo. A lenda é que o dinheiro acabou no meio das filmagens e eles só podiam continuar a rodar em P/B. Mas Anderson poderia muito bem ter descolorido o material já filmado em cores para dar uma unidade para o filme. Aqui ele se coloca à frente de outros cineastas novamente. Ele se vale de uma estilística cinema novista para avançar a uma opção estética.
Importante lembrar que há algumas semelhanças entre esse filme e Zero Em Comportamento de Jean Vigo, principalmente por se passar dentro de uma escola onde os alunos irão rebelar-se contra a instituição e também pelo teor surrealista de algumas imagens. Em If.... há uma espécie de reedição do surrealismo que Vigo trabalha em seu filme. Vemos personagens que aparecem do nada e sem explicações, as cenas finais são de um absurdo incrível, quando eles encontram armas na escola, encenam uma guerra onde o aluno mais comportado até então ensina como se deve gritar contra os inimigos e mostra os dentes podres, colocam um jacaré empalhado numa fogueira, uma velhinha munida com uma escopeta atira loucamente nos insurgentes no telhado e em especial, a antológica cena que os três rebeldes vão se desculpar por ter atirado no padre e ele é tirado de dentro de uma gaveta num móvel dentro de uma igreja.
O filme de Vigo causou polêmica quando lançado em 1933 e ficou proibido durante mais de dez anos na França. Curiosamente, o maior reconhecimento da obra de Anderson se deu na França, onde ganhou o Grand Prix, em Cannes. Se em Vigo a contraposição às regras foi visto como uma afronta, em Anderson foi visto como urgência. O tempo reavaliou e validou o tema. E os dois filmes ainda seguem relevantes em suas propostas.
"Nightmail" por Victor Laet
“Sheep-dogs cannot turn her course; they slumber on with paws across.” Estes dois versinhos escritos por W. H. Auden – e por ele declamados nos trilhos finais da película do filme – sintetizam a magnitude ferroviária inglesa. Nada é capaz de deter o trem. Pontualidade, potência, opulência. Desta forma, é irônico observar esse sobrevivente still de “Night Mail” – e ao mesmo tempo não, pois nem mesmo o quadro da fotografia parece (querer) agüentar e capturar a força do trem.
Coletivo e somente isso (por início). A idéia de coletivo é não só presente como essencial (e, quiçá, existencial) na feitura e concepção desse documentário – assim como cada trilho é importante para linha ferroviária. O filme simples e diretamente anuncia em seus créditos iniciais de forma respectiva: título, ficha técnica e colaboração (esta assinada pelos “trabalhadores do correio e funcionários ferroviários”. Todas as etapas são colaborativas: direção (dueto de Basil Wright e Harry Watt), fotografia (cargo de Chick Fowle & Jonah Jones), narração (dividida entre dois dos maiores representantes do movimento documental britânico, Stuart Legg e John Grierson), som (representado pelo nome de Alberto Cavalcanti e apoiado pela dupla de Sullivan e Pawley).
Realizado em 1934, contudo só liberado dois anos após, o filme foi feito a mando do serviço dos correios britânico com um orçamento de duas mil libras. A história contada – entre close-ups do maquinário e médias panorâmicas da cidade – é a jornada percorrida por um trem o qual parte de Londres com destino a Glasgow, na época fausta da década de trinta, quando as estradas de ferro eram de eficiência ímpar e possuíam (pelo menos demonstrado no filme) orgulhosos operários que usavam chapéus, coletes e gravatas e, não obstante, se tratavam cordialmente – afinal de conta, eles eram um time.
Se comparado a hoje, poderia ser dito que “Night Mail” seria mais um vídeo educacional do que um documentário. E é verdade, pois o filme mais educa do que documenta (1). As atuações dos funcionários, as vozes em over de Grierson e Legg somadas aos freqüentes close-ups descritivos da realização de alguma função acabam servindo mais uma instrução do ofício do que registro do ofício. Muito diferente de Drifters e Granton Trawler, do próprio Grierson. Mas, ok, ok, o filme foi financiado pela gerência bretã de correios.
O que, justamente, evita esse epíteto de vídeo educacional é a seqüência final carimbada pela parceria de W. H. Auden e Benjamin Britten e Alberto Cavalcanti (respectivamente poema e trilha e direção de som). Ao recitar os versos, o poeta compassa a métrica de acordo com a velocidade do trem e assim faz a trilha. Comumente esquecida, a parcela de Cavalcanti nos três minutos finais do filme é primordial e salvadora não só para a seqüência como para todo o documentário. A trilha escrita por Britten é apenas uma orquestração bonitinha a qual por vezes exagera em instrumentos de sopros como o fagote (quando o final da primeira parte do poema é lido) e a flauta (na leitura da segunda parte). Coube a Cavalcanti inserir e reger barulhos incidentais do trem, o que acentuou o suspense, o clímax da cena(2).
A influência do naturalismo soviético em “Night Mail” é involuntária. Entretanto a abordagem recorrente de coletivo não é uma adoção de ideologia comunista. Optando por close-ups do trem, das rodas, da forma como – por exemplo – as cartas eram entregues nas estações, Wright e Watt lembram muito Eisenstein. Interessante perceber neste documentário é a distância e aproximação de outro expoente da escola soviética: Vertov. A escolha das imagens e angulações (e até mesmo, as experimentações de montagem e narrativa) se diferenciam muito das propostas por Vertov, entretanto o filme se aproxima do russo quando adota uma forma de “registrar” (faz-se mister o uso de aspas, pois, ratificando, o filme instrui, educa, e a sua documentação é assaz didática) o acontecimento de uma maneira propagandista. E indo além, a montagem do filme se separa tanto de Eisenstein quanto de Vertov. Os cortes das cenas são em sua maioria suaves, não-abruptos, metaforicamente sugerindo que o trem passa, mas sua imagem lingers on. Isto é, Pudovkin(3).
“Night Mail” é um bom filme. É uma propaganda? É. Mas, ok, ok, de novo, foi financiado pelos correios ingleses. E o poema composto por Auden casa maravilhosamente com essa sugestão de que todos precisam de cartas (“Letters of thanks, letters from banks, letters of joy from girl and boy; [...] Asleep in granite Aberdeen, they continue their dreams, but shall wake soon and hope for letters, and none will hear the postman's knock, without a quickening of the heart, for who can bear to feel himself forgotten?” (4)). E, sinceramente, quem suporta?
Dezesseis de abril de 2010
e hoje é sexta feira.
NOTAS:
1. O que não é de forma negativo. A estratégia de documentação de vídeo educacional foi adotada de forma caricatural pela dupla alemã de Stefan Prehn e Jorg Wagner na concepção do cômico Forklift Driver Klaus. = http://www.youtube.com/watch?v=T-rJndNbCYY
2. Exemplificando, e contextualizando numa viés mais contemporâneo, observar a trilha de “Desejo e Reparação” (Atonement, 2007, Joe Wright – trilha da Dario Marianelli).
3. Pudovkin propunha que A+B=AB. Isto é, a apresentação dos planos deve resultar numa junção dele – não em algo diferente – mantendo a continuidade da cena. Isso transforma a justaposição dos planos num agente de ligação.
4. "Cartas de agradecimento, cartas de bancos, cartas de alegria de menina e menino; (...) Adormecidos em granito Aberdeen, eles continuam seus sonhos, mas logo acordarão e esperarão por cartas, e nenhum escutará o carteiro sem um acelerar do coração, pois quem pode suportar se sentir esquecido?"
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