Seja em
abordagem temática ou estética, a produção audiovisual que Marguerite Duras
realizou, se inserida na leva de cineastas da pós-nouvelle vague, destoa
completamente não só daquilo que havia em comum entre estes diretores, como
problematiza o próprio fazer cinema – uma possível conexão com seus
antecessores, tão revolucionários quanto ela. Todos os seus filmes apresentam
um potente e indissolúvel liame com a literatura, de forma a praticamente
deixar à imagem uma função secundária. Se o apogeu desse traço foi Agatha ou as
Leituras Ilimitadas (Agatha ou les lectures illimitées, 1981), cuja presença
literária é marcadamente mais forte do que qualquer potencialidade visual
possível, seu filme mais famoso e rico é talvez India Song (1975), que atesta a
prevalência do amor absoluto e irrealizável como temática-chave para a autora,
tanto quanto explora o jogo de posições entre o verbal e o visual no seu
cinema.
Delphine Seyrig é Anne-Marie Stretter, esposa do
vice-cônsul francês. Enfadada com a vida opressora da Índia dos anos 30,
entrega-se compulsivamente a casos de amor e acaba sujeita aos olhares e
comentários de pessoas que não sabemos quem são, mas que estabelecem fios
perdidos de narrativas dispersas, estas impregnadas de referências à
localidades inventadas e observações dúbias, ora aparentemente vindas dos
convidados das grandes festas da embaixada francesa, ora pertencentes à uma
camada do extra-campo, espaços estes duplamente ficcionais. Como não poderia
deixar de ser, os personagens da trama de Duras são impotentes, tão intenso é o
amor que vivem. Aliás, não parece haver vida para além desse amor, como o
experienciou a própria autora. Herança de seu legado literário semi-autobiográfico,
a paixão como enfermidade é quase a sua pulsão poética, seu motif.
Mas questão a ser colocada para India Song é
que o texto não parece servir como mero acessório estilístico, ou mesmo como
elemento predominante sobre a imagem: antes disto, ele estabelece a moldura
dentro da qual os personagens entediados do filme se moverão (lentamente). O
deleite visual existe e é realçado pelo verbo, mas as fantasmáticas vozes de
India Song são mais suturas entre o espectador e os eventos, inscritos ou não
na narrativa principal, do que um artifício utilizado para discutir novas
estruturas para o cinema. As duas encenações - da voz e do corpo - são sentidas
e recebem significado através do espectador, agente que reúne o que as vozes
pontuam e o que o corpo ensaia.
Se o filme de Duras não perpetra as roteirizações
com espaços livres para o improviso, como o fizeram Jacques Doillon, Philippe
Garrel ou Maurice Pialat, também não deixa de evocar uma subjetividade
claramente exagerada e poética, traço que poderia ser atribuído, mesmo que com
menor intensidade, a grande parte dos franceses da pós-nouvelle vague. Os
''instantes de vida'' não existem em India Song, cuja mise-en-scène corporal
beira o milimetrado, e o diálogo iniciado pelos italianos sobre o realismo ganha,
aqui, contornos ainda mais delicados. Por mais que falem de vestígios, ou que
cheguem até mesmo a gritar o amor perdido, as vozes que atravessam o filme nos
comunicam de sentimentos arrancados de interiores que são invisíveis ao olho: é
apenas mais uma maneira de instigar a sensação de realidade do espectador.
Naturalidade disfarçada na técnica, mas vibrante no sentimento, eis a
genialidade de Marguerite Duras.