sábado, 14 de fevereiro de 2015

India Song – Marguerite Duras, 1975, por Felipe Leal




Seja em abordagem temática ou estética, a produção audiovisual que Marguerite Duras realizou, se inserida na leva de cineastas da pós-nouvelle vague, destoa completamente não só daquilo que havia em comum entre estes diretores, como problematiza o próprio fazer cinema – uma possível conexão com seus antecessores, tão revolucionários quanto ela. Todos os seus filmes apresentam um potente e indissolúvel liame com a literatura, de forma a praticamente deixar à imagem uma função secundária. Se o apogeu desse traço foi Agatha ou as Leituras Ilimitadas (Agatha ou les lectures illimitées, 1981), cuja presença literária é marcadamente mais forte do que qualquer potencialidade visual possível, seu filme mais famoso e rico é talvez India Song (1975), que atesta a prevalência do amor absoluto e irrealizável como temática-chave para a autora, tanto quanto explora o jogo de posições entre o verbal e o visual no seu cinema.

Delphine Seyrig é Anne-Marie Stretter, esposa do vice-cônsul francês. Enfadada com a vida opressora da Índia dos anos 30, entrega-se compulsivamente a casos de amor e acaba sujeita aos olhares e comentários de pessoas que não sabemos quem são, mas que estabelecem fios perdidos de narrativas dispersas, estas impregnadas de referências à localidades inventadas e observações dúbias, ora aparentemente vindas dos convidados das grandes festas da embaixada francesa, ora pertencentes à uma camada do extra-campo, espaços estes duplamente ficcionais. Como não poderia deixar de ser, os personagens da trama de Duras são impotentes, tão intenso é o amor que vivem. Aliás, não parece haver vida para além desse amor, como o experienciou a própria autora. Herança de seu legado literário semi-autobiográfico, a paixão como enfermidade é quase a sua pulsão poética, seu motif.

 Mas questão a ser colocada para India Song é que o texto não parece servir como mero acessório estilístico, ou mesmo como elemento predominante sobre a imagem: antes disto, ele estabelece a moldura dentro da qual os personagens entediados do filme se moverão (lentamente). O deleite visual existe e é realçado pelo verbo, mas as fantasmáticas vozes de India Song são mais suturas entre o espectador e os eventos, inscritos ou não na narrativa principal, do que um artifício utilizado para discutir novas estruturas para o cinema. As duas encenações - da voz e do corpo - são sentidas e recebem significado através do espectador, agente que reúne o que as vozes pontuam e o que o corpo ensaia. 

Se o filme de Duras não perpetra as roteirizações com espaços livres para o improviso, como o fizeram Jacques Doillon, Philippe Garrel ou Maurice Pialat, também não deixa de evocar uma subjetividade claramente exagerada e poética, traço que poderia ser atribuído, mesmo que com menor intensidade, a grande parte dos franceses da pós-nouvelle vague. Os ''instantes de vida'' não existem em India Song, cuja mise-en-scène corporal beira o milimetrado, e o diálogo iniciado pelos italianos sobre o realismo ganha, aqui, contornos ainda mais delicados. Por mais que falem de vestígios, ou que cheguem até mesmo a gritar o amor perdido, as vozes que atravessam o filme nos comunicam de sentimentos arrancados de interiores que são invisíveis ao olho: é apenas mais uma maneira de instigar a sensação de realidade do espectador. Naturalidade disfarçada na técnica, mas vibrante no sentimento, eis a genialidade de Marguerite Duras.


“Cria Cuervos” (1976), de Carlos Saura, por Matheus de Arruda



Um drama com jeito de thriller, ou talvez um thriller com jeito de drama. Em sua natureza “Cria Cuervos” é um estudo de caráter minucioso em relação a jovem menina que protagoniza a história, e visto sob certo ângulo, um estudo de caráter minucioso da juventude da Espanha da era de Francisco Franco.

Debruçando-se sobre as complexidades psicológicas da infância da menina Ana, o filme nos apresenta a uma visão aterradora da juventude, propondo que a infância é, em vez de uma era nostálgica de felicidade, um período sombrio e confuso da vida onde tudo é mutável e seus únicos guias (seus pais) de certa forma conhecem tão pouco da vida quanto a própria criança.

Uma premissa cínica, beirando no niilismo, que moldura um enredo cínico. Não há certo, nem errado, apenas fugazes tentativas de encontrar a verdade e talvez a felicidade por parte da jovem (e velha) Ana e outros personagens. Como se para enfatizar o sentimento perdido de ideologia, Cria Cuervos tende a misturar sequências de fantasia, flashbacks e flashforwards na narrativa atual, forjando um tempo psicológico e não literal. O próprio tempo em que os eventos decorrem está subjugado a interpretação débil da mente de Ana, e é tão maleável quanto a própria Ana em sua tentativa de entender o mundo que lhe é tão hostil.

É tudo um mistério impenetrável, o mundo adulto tão mistificado que Ana contempla, repleto de mentiras e incongruências lógicas que Ana (ou a audiência) nunca consegue plenamente compreender e quando os créditos começam a passar, a audiência e a Ana igualmente não entendem nem mais nem menos do mundo que os cerca do que entendiam ao começo de todo o conflito. Toda a exploração da mente perturbada de Ana não produz um resultado sólido, mas apenas uma interrogação retumbante. Morte, passado, futuro, sacrifício, traição, vingança, assassinato, arrependimento, carinho, palavras de significado débil e maleável neste enredo e na mente de Ana (que no fim das contas são efetivamente a mesma coisa). Respostas não são claras, a incerteza permeia o enredo.

Quando se considera o período da concepção do filme, a localização, os temas, a inclinação política de seu diretor e alguns detalhes cruciais (como o fato que vários personagens são militares), se torna fácil ver Cria Cuervos como uma analogia a Ditadura de Franco na Espanha, a incerteza impenetrável da infância de Ana dialogando com a existência torturadamente incerta de um indivíduo sob os atentos olhos da ditadura de Franco e sua opressão da verdade. No entanto, apesar desta óbvia interpretação, a análise se expande além das fronteiras políticas, se tornando uma constatação sobre o espírito humano e sua futilidade.

Este exercício de incerteza, empenhado por um punhado de crianças (uma que tenta imitar seus pais, outra que nem tenta entender o mundo, e nossa protagonista que tenta e fracassa entender o mundo a seu redor) e uma adulta (que falha em achar um rumo correto ao fim do filme) é complementado pelo visual sóbrio, beirando no sombrio, que o filme tem. Cores mudas, uma atmosfera cinzenta, e até a canção principal (Porque Te Vas) parece indecisa e contraditória (um ritmo animado e feliz em contraste a letra amarga e deprimente). Cada cena parece construída para o propósito de enfatizar esta mensagem, do vazio de significado que se alastra como um incêndio pelo filme.

No fim das contas, este estudo de incerteza e futilidade se tornam uma função por si só. O vazio é o preenchimento, e a jornada que não leva a lugar nenhum é a destinação. A falta de significado acarreta todo o significado possível. Uma conclusão melancólica, mas não menos verdadeira.




As Depravadas Margaridas, por André Maia



Tudo está indo mal neste mundo. Neste mundo do leste europeu, neste mundo da Praga de Vera Chytilová. Anos sessenta do século passado.

A Tchecoslováquia de então sob o domínio totalitário da antiga URSS. A ausência de liberdade individual, a supressão da democracia. As margaridas estão indo mal também. E reagem, e zombam, e escarnam.

Em ‘As Pequenas Margaridas’ Vera Chytilová, uma representante da Nova Viná, ou Nouvelle Vague tcheca, apresenta o cotidiano de duas jovens que, ao entenderem que o mundo está indo péssimo, decidem agir com o intuito de corroborar com esse mundo péssimo. São desordeiras, depravadas, desrespeitosas, libertinas. São avessas à moral e aos bons costumes e à repressão feminina presente na estrutura social dos países sob a égide do comunismo.

 Aparentemente bobo e engraçado, ‘As Pequenas Margaridas’ é, acima de tudo, um filme político. Chytilová clarifica esse caráter político através das atitudes das jovens que percebem o mundo em que vivem sem sentido e sem direção. ‘As Pequenas Margaridas’ quer mostrar que num país de repressão política e ausência de liberdade inexiste a expectativa de um futuro melhor e, como consequência, uma possível reação é a opção pela depravação.

O trabalho técnico de Vera Chytilová merece uma pontuação singular pela variação de cores e pela deformação de imagens, acentuando contrastes e nos remetendo ao Surrealismo.

Numa Tchecoslováquia de castrações e impedimentos, as pequenas margaridas de Chytilová se deleitam ao estragar alimentos e a debochar dos homens e da sociedade tcheca. Entre um rio que parece estar vestindo sua correnteza de sangue e a sequência de imagens de cadeados fechados, ‘As Pequenas Margaridas’ alegoriza e metaforiza a dor e o cerceamento numa sociedade reprimida por um Estado totalitário. 

Turistas (Force Majeure), por Júlio Pereira


O que você faria numa situação de perigo: pensaria apenas em si ou cuidaria antes de sua família? Esse questionamento pode parecer uma peça de marketing de Turistas (Force Majeure, 2014) , mas é uma questão que pode incomodar bastante, pois jamais saberemos a resposta – por mais que pensemos o contrário – até algo assim ocorrer. No filme de Ruben Östlund, uma falsa avalanche nos Alpes durante as férias de um casal com filhos acaba completamente com uma estrutura familiar rígida, clássica, aparentemente perfeita, que reprime seus defeitos em prol do “bem estar” das crianças. É o ímpeto covarde (e egoísta) do marido, Tomas, ao fugir e deixar a família num momento em que quase ocorreu um desastre, deixando a esposa para cuidar sozinha dos filhos. E quando ele percebe que se tratava de uma falsa ameaça e volta à mesa do restaurante onde estavam, nada permanece como antes.

Tentar buscar um Bergman (como fiz durante a sessão) parece-me, neste momento, um tanto ingênuo: diferentemente do cinema do sueco, não há situações-limite ou um contexto desgastante para o surgimento dos conflitos dramáticos de Turistas. O ato da fuga apenas importa enquanto impulsionador do atrito, mero pretexto para se discutir questões bem mais complexas. Questiona-se, na verdade, os próprios papéis da figura masculina e feminina no bojo da família moderna.

Não se trata de pessoas boas ou ruins, de uma mãe bacana e de um pai escroto, mas da dificuldade de admitir os próprios erros, encarar o possível monstro que reside dentro de nós – e se revela, a revelia, numa situação de perigo. O extravaso fácil desse sentimento pelo berro nas distantes montanhas, pela cerveja no bar, ou seja, certa maneira de fugir da problemática.

O silêncio, no filme de Östlund, se impõe como agonia, verdadeira potência dramática, que diz muito mais do que qualquer diálogo. Quando Ebba fala tudo o que pensa em um jantar com um casal de amigos, a câmera fica no rosto de Tomas. Há nessa imagem muito do que precisamos saber sobre todo o conflito interno (e externo) dos personagens: a mãe que não se contenta com a covardia do homem (tanto por isto representar um abandono instintivo dos filhos quanto por desconstruir a ideia demarcada do “homem protetor”) e a falta de reconhecimento disso por parte dele - o questionamento do papel paterno naquela família - ao passo que há o rosto claramente incrédulo do pai, que não consegue admitir o que fez, entregando apenas o silêncio como resposta, se corroendo por dentro pois seu ato contraria seu ego de macho alfa, desmorona sua função estabelecida culturalmente na instituição familiar.

Assim, desloca-se a mulher e o homem dos seus papéis condicionados socialmente: Ebba está em pleno processo de descobrimento pessoal, começando a entrar em contato com ideais libertárias de casamento, ao passo que Tomas se depara com a desconstrução involuntária do macho alfa, do patriarca clássico. Nesse sentido, a sequência potente da (quase – e é importante pontuar isto) catarse revela todo o esfacelamento desse conceito enraizado do “pai”, na fragilidade do choro compulsório.

O ambiente interno modernizante, de paletas monocromáticas, onde a iluminação parece excessivamente artificial, e onde a dimensão do íntimo se perdeu (toda a discussão se dá de fora do quarto), tal como o branco frio da neve, constroem uma sensação de opressão, desconforto. Por outro lado, existe uma veia cômica fundamental para o cinismo do filme, construída pela vergonha alheia, o constrangimento do silêncio, da negação dos erros, dos debates em momentos adversos.
E o desfecho, última cena especificamente, que me parecia bem clara em seu significado – e problemática -, repensando me soa bem mais enigmático, inconclusivo. Admito que não consigo estabelecer um sentido definitivo. Seria a reorganização da família? Parece-me um final muito cômodo para uma obra tão pedrada. Ou seja, acho essa a interpretação menos plausível. Poderia estar estampado ali, na imagem, todo o desconforto da situação, as intrigas veladas, os atritos.


Todavia, decifrar esse final me parece uma tentativa de fechar o filme. Não gosto tanto disso. Prefiro que ele sobreviva sempre – e que eu permaneça me perguntando o que a última cena, tão forte, está querendo dizer.

"O fundo do coração" (1982), por Vanessa Beltrão



Frannie (Terry Gaar) é uma vitrinista que cria paisagens de lugares paradisíacos a partir de fotos e tudo o que ela quer é fugir da realidade criada peças luzes e letreiros de Las Vegas para entrar na “realidade” que ela cria nas vitrines, através de uma viagem para as Ilhas do Pacífico Sul. Hank (Frederic Forrester) é um rapaz “pé no chão” que trabalha num tipo de ferro velho, afastado do centro da cidade e que só pensa em construir um futuro mais sólido para ele e Frannie, o que fica claro quando, no aniversário de 5 anos que se conheceram, num 4 de Julho, Hank a presenteia com a escritura da casa em que vivem, mostrando oposição ao desejo de Frannie de sair do caos de Vegas.
Após perceberam que desejam coisas diferentes, os dois procuram uma forma de realizar suas vontades separadamente e logo encontram, em outras pessoas, vestígios da realidade que procuravam um no outro. Ray (Raul Julia) é um cantor/garçon que, como Frannie, quer viajar para Bora Bora. Leila (Nastassja Kinski) é uma garota de circo, uma ilusão criada por Hank que some da narrativa do mesmo modo como aparece, “num piscar de olhos” (palavras dela).
A produção de O Fundo Do Coração chegou á 30 milhões de dólares. Numa época em que todos usavam locações externas e fora dos Estados Unidos como forma de economia, Coppola filmou inteiramente dentro do estúdio, o que acarretou em diversos cenários. O filme não foi bem recebido pela crítica nem pelo público por ser um filme á frente de seu tempo. Todos esses fatores levaram a falência da Zoetrope Studios e a parada forçada nas produções de Coppola.
O filme é exagerado e caricato. Com luzes e letreiros de neon, com espelhos, cenas sobrepostas, cenários claramente falsos, choque com direito á cabelo em pé, musicais no meio da rua (como nos anos 50), a atuação vaga dos atores, quase encontro dos personagens, falsos possíveis momentos de reconciliação, o que faz do filme uma mistura de referências. No começo pode ser estranho todo o exagero, mas depois de um tempo você simplesmente aceita e entra na realidade do filme, se tornando completamente aceitável quando o filme se transforma numa espécie de clipe musical onde Laila dança e canta para Hank. Como não bastasse tudo isso e as luzes que já fazem parte de Vegas, Coppola adiciona uma iluminação em ambientes internos, como que para representar os sentimentos dos personagens e do momento. Em certo momento Hank, em extrema ironia ao filme diz “O problema com o mundo de hoje são essas luzes, tudo parece artificial”.

Depois de todo esse choque de informações, ao final o filme volta á “realidade”. Sem neon ou letreiros, sem luzes fake internas ou cenas sobrepostas. Apenas Frannie e Hank, juntos em sua casa, como se tudo o que tivesse acontecido antes fosse um sonho maluco. Apesar do fracasso na época de lançamento, hoje O Fundo Do Coração é considerado um grande filme por estar à frente de seu tempo e por ir contra as condições de produção da época e também por deixar bem claro os 30 milhões gastos na produção.

À espreita da fé (Stalker, Andrei Tarkovsky),por Danilo Tácito


Fé: Coragem de acreditar em algo que nos foi prometido e ainda não vemos, mas que esperamos, baseados na fidelidade da palavra que nos foi dada.
A definição da palavra “fé” é capaz de resumir o mote principal do filme Stalker (em russo Сталкер), palavra inglesa que quer dizer: aquele que espreita.
Num mundo pós-apocalíptico uma suposta queda de meteorito teria dado origem há uma região denominada “Zona” esta área é protegida por barreiras policiais e a população é proibida de adentrar-la. No mundo ao redor da “Zona” alimenta-se a fé da existência de um quarto capaz de realizar os desejos ou sonhos dos indivíduos com coragem o suficiente de aventurar-se por suas perigosas armadilhas. A Zona tem vida própria e se altera a qualquer momento, A zona é mortal e só um Stalker é capaz de guiar as pessoas em segurança.
O filme mostra a viagem de um Stalker guiando dois homens que tem suas identidades protegidas e conhecemos apenas como professor e escritor. São homens fracassados num mundo devastado. O Stalker é um homem casado e que tem uma filha paralítica, arrisca sua vida atravessando pessoas para a Zona em troca de dinheiro.
A fotografia é digna daqueles adjetivos que devemos evitar, mas que fica impossível não usar por que é esplendida! Inicia-se no mundo fora da Zona é em tons ocre sem colorido, a cenografia é suja e úmida, o filme inteiro é muito úmido, e quando entramos na Zona tudo tem cor, é uma metáfora de que naquele ambiente a vida do stalker tem mais sentido e importância lá fora ele é um nada, aqui dentro a vida das pessoas dependem dele.
A narrativa passa por estilos diferentes, por cenas de aventura numa frenética passagem pela barreira policial e entra num forte suspense, temos medo da morte a qualquer passo, não sabemos de que forma, não podemos voltar, não sabemos para onde vamos ou o que exatamente buscamos, mas o mais importante no filme esta na filosofia e na poesia que é recitada, algumas vezes em palavras e grande parte do filme com imagens, como são belas as imagens, como são fortes as expressões dos quadros fechados que Tarkovski nos expõe. Quadros e cenas muitas vezes monótonos, mas cheios de beleza na escolha artística de suas composições elaboradas, como quadros do maneirismo barroco.

Até onde vai a fé dos desesperados? Até onde o mundo pode ser mantido como esta, seguro nos pilares dessa fé? Essas são questões fortemente levantadas em Stalker, elementos que eu jamais conseguirei decifrar, como o cão pastor que se afeiçoa ao nosso herói enquanto seus companheiros o desagradam, o corvo voando no galpão e a bela sequência final em que sua filha paralítica move copos apenas com o olhar, como uma mutante.  A fé que é capaz de mover o que não podemos mover.

Mestre das Canções. Sayat- Nova (A cor da romã, 1968, Sergei Paradjanov), por Lorena Arouche




Sayat- Nova não é um filme corriqueiro.

Sayat- Nova não é um filme narrativo ou biográfico. Muito embora represente cronologicamente (em aproximadamente 9 fases que vão desde a sua infância, passando pela sua vida na corte e no monastério, até sua morte na velhice) vários ritos da vida do poeta trovador armênico do século XVIII, vulgo Sayat-Nova, ainda que essa não seja a pretensão primeira do diretor soviético.

Sergei Paradjanov, quase dois séculos depois de Sayat-Nova, teve vida atribulada. Persona non grata em seu meio, foi perseguido, preso, censurado e proibido de filmar por desafiar manuais e regras do senso comum, dentro e fora das telas. Diretor de cinema e artista, nascido na Geórgia soviética, sua obra fílmica foi de grande contribuição para a Ucrânia, Geórgia e Armênia.

Sayat- Nova não é um filme político. Apesar de toda a controvérsia e perseguição política ao Paradjanov, o filme é um experimento artístico, diria, bem sucedido imageticamente. Imerge no mais essencial campo da poesia, o metafísico, o transcendental. Sayat- Nova funde poesia e poiesis. Tal apelo criativo e poético converge e associa-se às demais artes visuais e perfomáticas, teatro e pintura, quiçá dança.

Alegorias, metáforas, simbolismos… Sayat- Nova é um sonho lúcido que permite o sonho dentro do sonho. Cada plano é uma tela de confuências artísticas, de influência barroca, com remanescência na arte bizantina, suas cores de alto contraste, equilíbrio na composição, riqueza de detalhes e do decorativo, raros são os momentos pontuais nos quais o plano é minimalista.

O filme se utiliza de planos fixos, nesse ponto mantém-se refém do teatro e da pintura, da frontalidade, posicionando o protagonista no centro do ecrã. Os personagens nos encaram interpelativos, não ignoram a câmera, que, fixa, nega movimentar-se.
Os cortes não prezam pela invisibilidade. Por vezes são abruptos na tentativa de fazer o espectador descolar e adentrar com limitações ao ilusionismo, à apreciação e, ou, ao apelo ocasionado pela força centrípeta da imagem.

Entre as imagens iniciais do filme vemos um livro aberto, enquanto versos do poeta são recitados em off, e temos a primeira alegoria produzida: 3 romãs vermelhas, inteiras, sangram, imóveis.
A Cor da Romã não é o título original e talvez tenha sido sugerido ao tradutor neste exato momento inicial, reforçado pela imagem posterior, próxima ao epílogo, de outras 3 romãs apunhaladas que sangram despedaçadas e simbolizam a morte do poeta.

Sayat- Nova é uma janela, um portal. Qualquer tentativa de interpretação da obra há de ser cautelosa para não recair em mero reducionismo, devido ao seu potencial abstracionista e sua grandiosidade.

Sayat- Nova não é um filme corriqueiro.

É uma obra de arte em 24 quadros por segundos.

Recordações da Casa Amarela (Portugal, 1989, dirigido por João César Monteiro), por Carla Bellot




Esta comédia portuguesa conta das palhaçadas de João de Deus (uma versão cinemática do diretor e roteirista João César Monteiro), um magro homem de meia idade que mora numa pensão barata e austera com uma estrita dona. Porém, ele e os outros moradores sempre encontram maneiras a evitar as regras da casa. Eles fumam cigarros contrabandeados e usam a eletricidade da casa sem permissão da dona Violeta. João passa seus dias andando pela cidade de Lisboa, e também observando Julieta, a filha bela da dona. Os acontecimentos do filme são acompanhados pelo diálogo sombrio de João. Coisas acabam mal para ele na pensão, e mais tarde ele é preso para a representação falso de um policial. A prisão é a "casa amarela" que é mencionado no título.

Das suas ações, é claro que João é um oportunista, e não tem vergonha de fazer certas coisas. Um exemplo é quando ele visita a sua mãe idosa para pedir dinheiro; quando fala com ela, parece frio e indiferente às necessidades dela. Também, depois da morte da sua amiga Mimi, uma prostituta brasileira que morava na casa com ele, João invade o quarto dela e rouba uma quantidade de dinheiro que ele encontra lá. Ele não é um homem saudável, pois vai ao médico no início do filme com muitas doenças e reclamações. Ele reclama constantemente para percevejos que poderiam ser um produto da sua imaginação. Há uma vez na qual ele insiste que ele pegou um num pote, mas ninguém mais, não dona Violeta nem a audiência, pode vê-lo. A aparência e a saúde (e provavelmente o estado mental também) de João se deterioram ao longo do filme, e as suas ações e decisões ficam ainda mais estranhas e questionáveis. Logo antes do fim do filme, ele se sente num banco de um parque. Com roupas surradas e uma aparência suja, ele quase parece um mendigo. Durante esta cena, ele conta à audiência que a mãe dele faleceu, porém ele não parece triste ou com remorso.

Julieta, a filha da Dona Violeta, é a joia da vida da sua mãe. Dona Violeta fala sempre da beleza e dos talentos da sua filha, e que ela toca o clarinete na banda policial. A mãe sonha que Julieta se case com um homem rico no futuro, que poderia se beneficiar ela – a mãe -  também. João está obcecado por Julieta, e a observa em momentos privados no quarto dela, e uma vez até bebe a água do banho dela depois que ela saiu do banheiro. Uma vez, ele encontro um pêlo pubiano, e ele o mantém como uma lembrança. Das cenas como assim, a audiência não pode deixar de pensar que João tem as caraterísticas de um “dirty old man”. Há muitas tentativas desajeitadas de seduzir a Julieta, que são quase dolorosas de assistir. No entanto, ele consegue pegá-la no final, e dorme com ela brevemente.

Na minha opinião, uma cena que era bem poderosa foi quando Dona Violeta entra no quarto da Julieta, e encontra João e a filha depois de fazer sexo. Ele joga cédulas de dinheiro (provavelmente os que ele roubou da morta Mimi) em cima do corpo dela, e sai do quarto rapidamente, falando com si mesmo. Violeta diz nada, mas vai mais perto para pegar todo o dinheiro e esconde os cédulas na sua própria camisa. Isto é uma confirmação dos meus pensamentos anteriores que Violeta pensa na sua filha como um fonte de ganhar dinheiro e avanço na sociedade. Após disso, ela corre na rua, acusando João da violação da Julieta, mas os outros moradores apenas riam dela. Talvez elas já sabem de suas intenções de usar a filha para ficar rica, e que Julieta não é tão perfeita como ela aparece.

“Recordações da Casa Amarela” se chama “uma comédia lusitana” nos créditos do início. O enredo do filme e a combinação de personagens interessantes têm potencial para ser engraçado, porém achei que o filme um pouco lento e melancólico, sem muitos elementos de humor. Há muitos espaços de silêncio ao longo do filme, que enfatizam o sentimento de solidão, especialmente com o personagem de João. Os interiores dos edifícios, especialmente o da pensão, são sombrios e sem muita cor ou decoração, e os personagens não parecem ter alegria em muitas coisas.


Quando o filme acaba, não temos certeza do destino do personagem na "casa amarela" com que agora ele está atribuído. O filme é o primeiro de uma trilogia, então nós sabemos que as aventuras de João de Deus vão continuar. Podemos ter a certeza, que ele continuará a sobreviver de sua forma especial, como sempre faz.

A paulada de Marilyn Jordan (BASEADO EM FATOS SURREAIS), por Matheus Beltrão






PÉROLAS: um macaco é questionado por uma menina se não preferia estar em seu habitat natural

Uma dona de casa desesperada e desmotivada estadunidense residente em Estocolmo, que passa os seus dias vazios brincando à pinceladas de humor negro, colocando fogo no edredom de sua cama, estragando com a beleza informal de seu quarto róseo kitsch, ou tentando envenenar o seu cão, que ela julga esperto o suficiente para não beber, é casada com um rico empresário sueco (com quem tem filhos perfeitamente inteligentes) que a menospreza, dando-lhe a estigma de paciente psiquiátrica e a preferência pela sua vida profissional, traduzida em viagens ao redor do mundo, principalmente por locais distantes “exóticos” (para a categoria eurocêntrica) como a cidade do Recife, que além de ser lembrada extensamente ao longo da película, tem vôos de conexão direta entre os dois pontos divergentes do mapa, sendo assim, o abalo inicial da descoberta de um universo social e cultural paralelo – que até há pouco, talvez, Marilyn só soubesse nos filmes que passava a vista, rapidamente, apertando o controle remoto da TV compulsivamente.

PORCOS: quem com eles anda, de farelo se lambuza

Com sua nova galera, Marilyn, vai para o Zanzi-Bar, uma espécie de cabaré, restaurante e destilaria ilegal, que parece ter saído de uma pornochanchada underground brasileira com fotografia e roteiro freak como um vibrador falocêntrico sobreposto em um tanque de guerra de pilhas, chefiado por Alex, um sérvio canastrão de meia-idade, e sua ex-exposa, Rita, e lá vive as mais loucas experiências da sua vida, como ser tida como uma cantora internacional dos EUA, ser uma garçonete no pirigão, fazer um ménage desastroso (com os donos do bar) e logo após um sexo lésbico (vitorioso), além de tomar banho espionando o belo corpo nu de Montenegro (vendedor do seu cachorro esperto, alimentador de macacos no zoo e pau para toda obra no bar) e ter o seu belo corpo espionado pelo mesmo, também.

Montenegro é uma experiência cinematográfica ultrajante super freak, que a cada quadro não seqüencial que passa, é como uma onda ilícita, que provoca, assusta e lombra o espectador, que assimila a mensagem de que o filme vivido por uma dona de casa é chato (e ela é a que mais pensa assim), graças a uma tradição matrimonial machista institucionalizada que faz da mulher um objeto do lar, que vive para ser o braço esquerdo amputado do seu marido e a eterna guia (ou seria melhor “liga”) de seus filhos. Ainda bem que Dusan vingou sua hereditariedade matriarcal, fazendo com que uma do-lar (mesmo que de classe média alta) vivesse como uma rockstar, vendo o pôr do sol ouvindo Faithfull, socorrendo viciados com facadas na testa, trepando com um homem chucro (e delicioso), dançando pela night zombie da Europa Oriental, se cansando e depois retornando ao lar, para fazer com que toda a sua prole (e não prole, um salve ao sogro militarizado e eterno true blue) prove uma deliciosa sobremesa, enquanto, de relance, Montenegro apareça em um quadro-luz, rápido e ácido, para que assim, a vingança seja feliz e calórica.

ESSE PAPEL FOI ENVENENADO

Das memórias vistas, por Raian Oliveira





Fico me perguntando se por acaso gravasse tudo aquilo que vejo, quais seriam as imagens projetadas. Me pergunto quantos momentos e narrativas vão se perdendo com o tempo, sem estarem dissociadas de onde estão inseridas. Por vezes as memórias se materializam de forma a se separarem do momento, dando autonomia para que cada frame fale por si só e anuncie mesmo que em um zumbido inaudível um falso estar lá, “vivendo” aquilo tudo. Discurso esse que aquele que vos escreve se deparou dias antes com algumas imagens de arquivo e áudios aos quais nem lembrava que existissem. Imagens, sons de pessoas e lugares aos quais sofreram com o tempo a alteração de sua leitura. Talvez ter tido contato com isso me fizesse devorar em Paul (Bruno Ganz), em Na Cidade Branca [1983, Alain Tanner], não apenas suas vivências, mas especificamente não conseguir desgrudar o olho de suas fitas de filmagem, e para onde sua filmadora apontava. 

O distanciamento com qual Tanner filma o personagem compreende a não-completude de seu modo de nos apresentar as angústias e pensamentos. Se faz necessário mostrar tudo aquilo que é gravado compulsivamente pelo marinheiro Paul, de forma que a câmera intra-diegética intensifica o papel narrativo em forma de deslumbre, como se naquele momento o filme esquecesse sua estética e seus formalismos para uma imagem mais apaixonada, diria uma imagem de fluxo em que, por mais deslocado que Paul se afirme, ele sofre o peso de estar ali, naquele lugar, em Portugal, mesmo que várias vezes apontada para paisagens onde a visão se perca, sempre em direção ao mar, como quem almeja chegar do outro lado independente do que se tenha, apenas pelo movimento de não estar no mesmo lugar. 

O mar, lugar onde se amarram grande parte das lembranças de Paul, já que sua vida é estar se deslocando, é um ponto onde tudo se fixa mas ao mesmo tempo se perde, assim como as lembranças não exteriorizadas. A cama de Paul serve como apoio de várias imagens. De um efêmero, como mais uma passagem por algum lugar desconhecido, como consumação de trepadas intermináveis, pensamentos sobre sua esposa, descanso e impotência diante de um sangue que mancha seus remendos e, por fim, lugar de nostalgia (para ele, para Rosa). Rosas figuradas em toda a cama, inclusive nos lençóis, em que servem como apoio para suas filmagens, suas narrativas tão mutáveis quanto os estados da água do mar que tanto contempla, que tanto pontua sua câmera, imerso no paradoxo de se sentir parte de algo cuja essência é fluxo de deslocamento.

Por mais que se mostre a visão de Paul, por vezes o observar do lado de fora faz criar uma atmosfera vazia, na qual a vontade por mais daquelas imagens se torne compulsiva, pedindo quase que um abandono de um apego com a tentativa de localização, dos cortes e das imagens milimetricamente organizadas e estáticas por Tanner. As imagens amadoras, basicamente flertando com as de Jonas Mekas, trazem em si um certo deslumbramento ao qual as imagens mais contemplativas parecem carecer de algo, como se faltasse uma certo sentimento naquilo tudo — já que o peso das outras imagens parecem preencher as lacunas do indizível. 

 Nos primeiros segundos do filme uma imagem de um barco no mar surge em uma atmosfera quase de universo paralelo, em que tudo no quadro é infinito. O céu rosado, as ondas calmas e um barco quase se apagando. Um universo de memórias, flutuantes em uma massa que não contém esforços pra engolir o que quer que seja, nos dá a impressão de que a qualquer momento aquele barco possa sumir, seja do campo de visão, seja dentro mar, pra ser enfim esquecido. Mas, é na paixão pelos instantes e na crença do vir a ser eterno que as memórias de Paul se ramificam entre textos, imagens e histórias. Externas e livres dele mesmo, prontas pra serem reinterpretadas, revistas, revividas. E, fazendo crer que por mais que, por mais que seja inevitável o esquecimento de alguns instantes, o próprio ato de se desfazer deles é de puro amor. Pura pulsão a qual não importa quando ou como elas serão vistas, mas serão mutáveis e dignas de sobreviverem além dos próprios realizadores, como resquícios ou vultos de uma existência borrada, à deriva. 

"O mensageiro", por Hugo Nogueira



Vítima do macarthismo nos Estados Unidos, impedido de trabalhar em Hollywood, Joseph Losey refugia-se no Europa. Entre os filmes realizados nessa fase europeia, encontramos o “O Mensageiro”, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1970. Ambientado numa propriedade rural de uma família aristocrática do Reino Unido, o filme traz a história de um garoto, Leo Colston (Dominic Guard), convidado passar suas férias de verão com seu amigo.

A narrativa desenvolve-se primordialmente na infância de Leo, alternando com cenas dele adulto. Isso não fica claro inicialmente. Vemos apenas a silhueta de um adulto em cenas que a princípio não conversam com a trama principal. Mais tarde é evidenciado que se trata de Leo mais velho (Michael Redgrave) a visitar Lady Trimingham, também envelhecida (Julie Christie). Ou seja, apenas ao final do filme descobrimos que ele se passa todo num flash back de reminiscências.

Ao observar as memórias de Leo, narradas na tela, acompanhamos o garoto num ambiente quase hostil. No desenvolvimento do filme, vemos o garoto envolver-se num conflito amoroso entre a Lady Trimingham, Ted (Alan Bates) e Hugh Trimingham (Edward Fox). Leo está de férias nessa casa de campo da família de seu amigo e se vê deslocado socialmente. Pela sucessão de eventos, como quando ele é questionado quanto às suas roupas serem inadequadas para o verão, vemos certo desdém de classe. Rodeado dessa nobreza esnobe, o garoto passa quase inocente, por sucessivas cenas de constrangimento.

Percebemos que ele era quase que usado como motivo de divertimento entre seus anfitriões. Quando seu amigo fica doente, Leo, passa a vagar pelas pelos campos nos arredores da casa. Assim, ele vai parar na fazenda de Ted, vizinho mais pobre  que possui uma relação secreta com a Lady Trimingham. Dessa forma, ele acaba se tornando o mensageiro entre os dois, levando e trazendo cartas secretas. Enredado e de certa forma seduzido pela personagem de Julie Christie, o garoto torna-se joguete nessa trama amorosa. Envolvendo-se nos conflitos que permeiam a família que o acolhe. Dessa forma, através dos olhos do garoto, acabamos por ver um desenho dessa sociedade aristocrática com seus mesquinhos valores.

"As duas faces da felicidade", por Juliana Soares Lima


A primeira sequência do filme, um imenso jardim de girassóis onde se vê ao fundo uma pequena família, que é também uma família na vida real, passeando é quase a síntese da vida levada por aquele casal e seus dois filhos: François, o carpinteiro e Thèrese, a costureira, levam uma vida bucólica na pequena cidade francesa de Fontenay. Não há dúvidas do carinho mútuo e os dois são felizes em passar os dias seus dias revezando entre o trabalho e a criação do pequeno casal de irmãos Gisou e Pierrot. Seu lazer nos fins de semana é fazer piqueniques e passear no campo. A trilha sonora composta por Mozart combinada com a fotografia em cores pastel ajuda a tornar a rotina daquela casal que não precisa de muito para considerar-se feliz, tão detalhada ao longo do filme, ainda mais encantadora. Max Ophuls disse uma vez "a felicidade não é alegre". A felicidade do casal é simples, serena, quieta e parece inabalável, mas até que ponto?
Numa viagem a uma cidade próxima, ao dirigir-se algumas vezes ao centro dos correios para fazer ligações interurbanas conhece uma funcionária. O encanto é mútuo: depois de um encontro num café os dois acabam envolvendo-se num relacionamento amoroso. François diz “Eu conheci Thèrese primeiro, e casei com ela, e a amo, e amo você e sou feliz. Se tivesse conhecido você primeiro, teria casado com você”. François ama Thèrese, acredita que é capaz de somar os dois amores, somando assim felicidade. Mas será possível somar dois amores? Será que François realmente ainda ama Thèrese da mesma forma?
É interessante a forma com que Agnes Varda discute a questão da poligamia. Agnes disse "No meu filme, o pecado não existe. Nem a baixaria." François não sente culpa, não se deixa tomar pelo moralismo, também não omite a verdade de sua mulher: em mais um dos passeios ao campo com a mulher e os filhos ele lhe conta a verdade, diz que está encontrando outra pessoa há um mês, teme a reação da esposa mas espera que ela entenda que ele jamais negligenciaria sua família por causa de outra mulher, mas pelo contrário, seria um homem ainda mais feliz e traria mais felicidade pro seu lar. A reação de Thèrese é ainda mais inesperada: ela diz que se ele está feliz, ela também está. E qualquer coisa que o faz feliz, também a faz. Parece bastante altruísta, mas será que uma mulher apaixonada por seu marido seria capaz de conviver com o fato de que seu marido é feliz com outra mulher? Não Thèrese, porque apesar da aparente tranquilidade diante da notícia, deixa os três enquanto tiram um cochilo e comete suicídio no lago do bosque onde estavam.

A beleza estética provocada pela combinação de trilha sonora, fotografia, cores, cortes, a brincadeira com o foco e o jogo de plano e contraplano na montagem do filme, que torna a experiência tão amena contrasta com a força das questões levantas por Varda: o alcance da felicidade, amor, moralismo, sentimento de culpa, ciúmes e sofrimento. E após os curtos 79min de duração do filme é capaz de suscitar questões dignas de bastante reflexão sobre nossa própria postura. Desde "Qual seria minha reação se eu fosse Thèrese?" até "O que é preciso para ser feliz?".

Natureza e transcendência, por Jonas Menezes




“O que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, um tudo em relação ao nada, um ponto a meio entre nada e tudo.”  (Blaise Pascal)

O filme já se inicia com a intrigante frase: “Todos nós somos feras selvagens por natureza. Nosso dever como seres humanos é tornarmos adestradores que mantêm seus animais sob controle, até os ensinarem a cumprir tarefas distantes da bestialidade.” Se para Aristóteles “Todo homem, por natureza, quer saber”, Apichatpong Weerasethakul proporciona uma experiência completamente diferente das noções de linearidade e busca por respostas a que estamos habituados em nossa sociedade. Uma verdadeira ruptura com a nossa visão ocidental de cinema e com o racionalismo cientificista.
Grande parte das cenas são desconexas e vazias de sentido, denotando certo niilismo. Imagens do cotidiano de um grupo de soldados são intercaladas com o cotidiano de uma família camponesa e com planos que demostram o ritmo acelerado da cidade grande, com suas luzes, cores fortes e toda sua agitação diária. O filme que se divide em duas partes, possui um inicio simples. No decorrer da narrativa vamos lentamente reconhecendo a existência do amor entre, Keng, um soldado, e Tong, um camponês que vive com a família em um vilarejo. A primeira parte é permeada de situações comuns na vida dos cidadãos tailandeses, como ir ao cinema, reuniões familiares para o jantar, jogar futebol, ir a um bar para apreciar música ao vivo, e entrar em contato com a religiosidade, retratadas de maneiras bastante singela.
Apesar de tratar-se de um romance homossexual, o filme não é panfletário. Não abarca a questão da homofobia e retrata um romance que aparentemente é aceito de maneira natural pelo convívio social. Fala sobre amor num aspecto geral. Em dado momento somos levados a uma caverna, e ouvimos histórias macabras de uma velha vendedora de flores. São desafiados a atravessar a gruta, porém Keng se opõe, contrariando seu parceiro. Temos nesse trecho a introdução do elemento místico na trama. Exatamente no momento em que há o ápice da troca de afetos entre os dois rapazes, quando simbolicamente Ken e Tong lambem seus respectivos dedos das mãos, Tong interrompe esse gesto e estranhamente vai embora, desaparecendo por entre a escuridão da floresta.
Após alguns minutos de cenas de felicidade e sorrisos de satisfação de Keng caminhando pela cidade em sua moto, O diretor nos surpreende e constrói uma narrativa totalmente diferente. Uma segunda parte do filme que pode ser interpretada como continuação metafórica ou simplesmente como um outro filme. Vacas da região começam a ser decapitadas por um animal selvagem e um mito local explica que um xamã que habita a floresta pode transformar-se em animais selvagens e seres humanos. O filme que possuía uma trama simplória toma ar de suspense sobrenatural.
Keng passa a habitar o coração da floresta tropical e depara-se com diversas situações sublimes e inexplicáveis. Se para Sêneca “Toda arte é imitação da natureza”, Apichatpong retrata uma trama onde a própria natureza é a personagem. Essa perspectiva acerca do mundo natural, certamente influenciada pela religiosidade budista e hinduísta, é possível de ser observada em outros diretores orientais como Satyajit Ray com seu A canção da estrada e Akira Kurosawa em Dersu Uzala, mas Apichatpong eleva isso a outro nível. Temos aqui um mergulho no mistério. Diálogos com macacos, uma luta corporal com um homem que pode transformar-se em tigre e visualização de espíritos de animais são algumas das situações inexplicáveis racionalmente e apenas passíveis de serem sentidas por nossos instintos primitivos.
É um filme sobre entrega pessoal. Há implicitamente a mensagem de que o amor transforma as pessoas. O embate entre o homem-tigre e o soldado lentamente revela-se em uma atração mútua. Ambos exercendo influência sobre o outro. O ultimato é dado: Matar o tigre ou entregar-se a ele. Por fim Keng decide render-se permitindo que o este devore sua alma recitando essas palavras: “Monstro, eu te dou meu espírito, minha carne  e minhas memórias. Cada gota de meu sangue canta nossa canção. Uma canção de alegria Então... Você está escutando?”. Se na primeira parte do filme o jovem camponês ironizava seu companheiro quando este dizia que por suas mãos formarem o desenho de uma barca real viveriam eternamente, respondendo que na verdade formavam uma frágil canoa, no segundo momento, o tigre interpretado pelo mesmo ator está devorando a alma do soldado.
Em seu artigo intitulado “O instante dos amantes: Cinema, tempo e corpo nas periferias do capitalismo flexível” Ely Vieira Jr afirma que “essa segunda estória prolonga o caráter de fascinação e mistério da primeira, fantasiando e reconfigurando a banalidade dos eventos que constituem sua antecessora, tal qual os enamorados fantasiam os pequenos fatos cotidianos... “Weerasethakul trabalha com uma série de ambiguidades para enredar o espectador sob regimes temporais diferenciados. Esses dois filmes trabalham muito mais de maneira sensorial que racional, de modo que podem ser melhor apreendidos intuitivamente do que sob uma lógica de começo-meio-fim.”




"Os anões também começaram pequenos", por Nuno Aymar




O cinema alemão deixou um grande legado no que se refere às temáticas do grotesco, pitoresco ou simplesmente daquilo nos provoca repulsa desde o expressionismo. Herzog assumiu essa herança ao revisitar esses temas e de aprofundá-los na perspectiva de um cinema moderno e capaz de penetrar por alegorias mais complexas, sendo Os anões também começaram pequenos, o mais radical dos seus trabalhos nesse aspecto.
O filme usa de uma linguagem bastante alegórica e de humor negro, criando um micro universo onde só existem anões (muitas vezes deformados) e moralmente repulsivos. Existe uma discussão latente ao longo do filme cujo coloca a natureza como um lugar de caos, refletindo a própria ideia de sociedade humana. Herzog desenvolve uma antirrealidade que nos aproxima daquilo que seria um estado perverso de natureza. A natureza se torna em si um lugar de desordem e no decorrer do filme uma série de planos vai revelando, pelos próprios animais, o que a sociedade humana considera repulsivo: Uma galinha que devora a outra, porcos amamentando na mãe morta; cada momento do filme é pontuado por esse jogo entre imagens “da natureza” e a sociedade dos anões. Além disso, o filme ainda apresenta um descompasso estilístico. As blasfêmias nos chocam com seu humor estranho, muitas vezes infantil, trabalhando o caos alegórico em cenas de puro nonsense.

O filme se define pela sua capacidade de provocar o estranhamento sob si mesmo, não sendo o mesmo estranhamento recorrente em outros filmes de Herzog,  tratando mais de inverter essa relação e perceber como lidamos ao ver os elementos que só nos existem enquanto objetos de repulsa.

"O imaginário romântico", por Juliane Travassos



"Num recanto, apoiada ao parapeito da muralha, estava uma mulher. Com os cotovelos apoiados no gradeamento, parecia olhar com muita atenção a água turva do canal. Trazia um bonito chapelinho amarelo e uma encantadora mantilha negra. “É uma moça e certamente morena”, pensei. Parecia não ouvir os meus passos e nem sequer se moveu quando passei por ela, retendo a respiração e com o coração a bater violentamente."
Fiódor Dostoiévksi


Poética, cheia de graça e ao mesmo tempo solitária é a atmosfera que Luchino Visconti cria em "Noites Brancas", que foi produzido logo após "Sedução da Carne" de 1945 que rompe com o neo realismo e aponta para o pós-guerra, impregnando melodrama a um mundo limitante; e distintamente, em 1957, Visconti dirige Noites Brancas, uma história de paixão que estabelece um clima de sonhos e utopias.

O filme é baseado na obra de Dostoiévksi,. O elenco é mínimo, que pode ser resumido em um jovem solitário e sonhador que se apaixona rapidamente, uma moça ingênua que vive na esperança do retorno de seu amado, e o inquilino um tanto quanto misterioso, que é o personagem por quem a moça anseia.

As filmagens acontecem em lugares abertos. A cenografia tem um ar melancólico, com muitas pontes e rios gelados, deixando claro o desgaste da realidade social italiana. Tudo é muito pesado e tristemente ilusório. Os efeitos de iluminação fazem com que as ruas e as paredes pareçam fantasiosas. O fascinante é que o ambiente e a exterioridade das pessoas mudam ao decorrer das transformações e construções dos personagens principais, a exemplo disso está a sequência do bar, quando a moça se diverte genuinamente e finalmente com o personagem principal, a cena mostra muitos jovens dançando alegremente, saindo totalmente daquele delírio bucólico que transpassava antes. Almejando narrar essa eterna busca pela felicidade, pelo romantismo que liberta da solidão e ativa o imaginário.

Deste modo se passa Noites Brancas, noites e mais noites de espera dolorosa e compartilhamento das mesmas que pareciam não acabar, por fim a sequência que aparece a neve caindo deixa a sensação do "estar" numa fantasia, que logo é quebrada pela chegado do inquilino, a moça se desculpa pela esperança de um futuro imaginado que criou com o rapaz e corre para abraçá-lo.

"Os verdes anos", por João Vitor Carvalho Silva


Considerado um ponto histórico na cinematografia portuguesa, sendo um dos primeiros filmes do Novo Cinema português, Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1964) marca por trazer uma renovação tanto estética como temática, trazendo um olhar mais cru de Lisboa e dos seus modos de vida.

No inicio somos logo apresentados pelo tio do protagonista à realidade de Lisboa, alertando sobre os perigos de se andar depressa demais, recomendando a cautela para evitar ser engolido pela cidade, como tantos outros. Não é uma fala meramente introdutória, mas sim algo que faz referencia a Júlio, o protagonista, e a situação de jovem provinciano que vem tentar a vida na cidade.

A história do filme então é basicamente a tentativa de Júlio em conviver com a sua nova realidade, abandonando a sua inocente mentalidade de província para sobreviver no mundo adulto da metrópole, ao mesmo tempo em que se envolve romanticamente com Ilda, uma jovem empregada doméstica. Porém, as adversidades se mostram mais fortes do que Júlio, tornando-o uma daquelas pessoas derrotadas pela cidade de Lisboa, o que acaba resultando em um final trágico.

É importante a forma como se dá relação do protagonista com Lisboa. A cidade se mostra viva, com o seu povo trabalhando, dançando ou bebendo em bares, tudo isso ao redor de Júlio e do seu drama intimo. Está sempre ocorrendo um pequeno choque entre o personagem e o ambiente em que ele está situado. Seja a porta que não se abre ou a falta de habilidade na dança que se descobre em um clube até a confrontação acontecendo no ultimo momento do filme. É a oposição entre o individuo e a metrópole.

Mas o interessante em Os Verdes Anos é que mesmo marcado por um clima de fatalidade, com o seu argumento baseado em um crime noticiado pelo jornal, não é dado ao espectador uma experiência melodramática.  Pelo contrario, o que se torna mais perceptível no filme é a pureza das personagens, com a mocidade de Ilda e Júlio ocupando muito mais espaço do que a infelicidade que está presente na história.


Fica clara a busca de Paulo Rocha por um caminho mais singelo para construir um drama sobre a confusão mental de um individuo. A busca pelo simples é tanta que o momento do ápice dramático é dado ao espectador somente através de um delicado suspiro, com a nossa visão bloqueada por uma janela opaca. É nesse desvio na forma de narrar o drama que o filme de Paulo Rocha rompe com o cinema clássico português, abrindo as portas para tantos outros nomes do novo cinema de Portugal.

Solidão e relações pessoais na modernidade, por Júlia Meireles

         
   Em seu quarto longa, ' O Mundo',  Jia Zhang-Ke retrata e insere o espectador na atmosfera da contemporaniedade, explorando as relações pessoais, culturais e o paradoxo entre distanciamento e proximidade.
            O filme mostra um parque temático nos arredores de Pequim, que busca, através de miniaturas e réplicas, oferecer a quem visita os principais monumentos do mundo com o slogan de 'O mundo em um dia'. É nesse ambiente que se entra em contato com diversas relações pessoais dos funcionários, entre elas a da dançarina Zhao Tao com seu namorado Taicheng e outras pessoas. Tais interações retratam problemas estendíveis e existentes, principalmente, nas metrópoles mundiais.
            O Big Ben encontra-se a passos da Torre Eiffel, assim como o Taj Mahal e o Arco do Triunfo. Réplicas reduzidas criam a possibilidade de visitar monumentos originalmente distantes com facilidade. Tal fato associa-se com as relações estabelecidas entre os funcionários do local, que estão proximos fisicamente, mas criam um distanciamento pessoal; se utilizam de meios de comunicação para estabelecer um contato que poderia ser presente, estão rodeados de outras pessoas, mas continuam solitários. É essa solidão que estimula ao mesmo tempo, um certo desejo de alguns personagens de criar uma relação afetiva com outros. Tao, por exemplo, conhece uma russa de nome Anna, que apesar de não entende-la pelas diferenças linguísticas, estabelece uma relação de quase amizade e cumplicidade, ainda que de forma pontual no filme. Os funcionários ao mesmo tempo que criam uma barreira em relação ao mundo, sentem uma vontade, ainda que não possa ser concretizada, de destrui-la.
            Não só trazendo contradições comunicativas, 'O Mundo' cria a ideia de uma 'prisão' contemporânea, onde a diversão insere-se como arma aprisionadora dos que lá trabalham. Ao mesmo tempo que estão no mundo inteiro condensado, pouco exploraram a realidade externa ao trabalho.
            Com ampla movimentação de câmera, Jia faz da imagem fluida e melancólica, expondo de maneira contemplativa, ainda que inquietante, o parque e a sua diferente influência  nas pessoas. Retrata a Torre de Pisa com turistas tirando foto, ao mesmo tempo que viaja no tempo com a cena de uma funcionária andando a cavalo pela London Bridge.

            'O Mundo' nos faz questionar até que ponto a modernidade e a tecnologia influenciam as relações humanas, assim como a globalização, contraditória, cria um isolamento pessoal que as vezes parece ser involuntário.