domingo, 26 de setembro de 2010

"Acossado", por Ramon Dias Ferreira



A subversão sempre foi parte integrante da arte. Como um círculo vicioso, os movimentos e escolas artísticas são fadados a deparar-se, logo após seu ápice, com questionamentos que colocarão à prova sua estética e significação, para assim reinventarem-se ou abraçarem o seu ocaso. Este é um movimento natural no qual se torna possível a evolução, e coloco aqui a palavra “evolução” não no sentido restrito de aprimoramento, mas sim de surgimento de novos caminhos que, apesar de muitas vezes opostos ao seu predecessor, contribuem para o enriquecimento de sua expressão. E é nesta conjuntura de crise e recriação que se encontra a importância de Acossado.

Após o cume do star-system americano, o cinema europeu irrompe como uma resposta ao modelo hollywoodiano, que no contexto do pós Segunda-Guerra, parecia não fazer mais tanto sentido. Emerge então o neo-realismo na Itália, assim como a Nouvelle Vague francesa, que agora pensavam o cinema como uma expressão mais próxima do ser humano, e serviriam de influência para movimentos mais periféricos, como os Cinemas Novos. Mas além de uma transformação temática, a Nouvelle Vague possuiu também uma característica de revisão da própria linguagem cinematográfica. Os cineclubes e a Cahiers du Cinema já demonstravam o caráter cinéfilo surgido na França entre as décadas de 50 e 60, e foram pilares fundamentais para as discussões que precediam o nascimento da “nova onda” francesa. Surgia a teoria do autor, que retirava o diretor do seu lugar de um mero técnico e o colocava como um artista de fato, capaz de refletir em suas obras estilos próprios e singulares. E dentre estes autores, o que talvez mais tenha experimentado foi Jean-Luc Godard. Já em sua estréia com Acossado, o cineasta proporcionou inovações estéticas que rompiam com os padrões clássicos e revisavam a “gramática” do cinema. Apesar de ainda influenciado pelo cinema americano (a temática gângster, a trilha sonora noir), Godard incorporou tais aspectos a uma forma experimental que ao mesmo tempo negava o próprio modelo que o havia inspirado. Enquanto os americanos diziam “filme apenas em um eixo de 180 graus”, “mantenha a continuidade espaço/temporal”, ou ainda “é impensável o olhar para a câmera”, Godard brincava com essas convenções, em um ato antropofágico que foi muito presente nos anos 60: a assimilação da cultura tradicional para sua consequente subversão.

Contudo, Godard não recriou a gramática, mas sim adaptou-a. Ou melhor, organizou-a de maneiras diferentes. Todas as ferramentas que caracterizam a linguagem cinematográfica estão presentes: os planos abertos, médios e close-ups, os travellings e pans, entretanto, ajustados de uma maneira distinta. Um dos exemplos mais famosos dessa nova “práxis” criada por Godard foram os jump-cuts: cortes rápidos e secos que excluíam o “tempo morto” dentro das cenas. Esse recurso causou forte estranhamento na época, pois apesar dos cortes, os planos mantinham os mesmos cenários, ângulos de câmera e posição de atores dos planos anteriores, algo impensável para os moldes tradicionais. Mas a despeito desse cinema evidenciar o seu caráter enquanto artifício, ocasionando um distanciamento com o público, há os que defendem que essa reinvenção aponte para uma experiência fílmica mais intensa. Em sua idéia de continuidade intensificada, David Bordwell argumenta que desde meados da década de 60, os cineastas desenvolvem um maior repertório de recursos narrativos, num processo gradual que visa uma intensificação na percepção do espectador. Desse modo, pode-se fazer um paralelo entre Godard e outro cineasta de grandeza “inversamente proporcional”: D. W. Griffith. Enquanto Griffith é considerado o responsável pela organização sistemática dos recursos estilísticos que caracterizam a narrativa clássica, Godard foi aquele que “desconstruiu” esses recursos e os re-arranjou de maneiras distintas. O que mudou então não foi o princípio na estrutura narrativa, mas as ferramentas que a constroem.

Completando o círculo citado no início do texto, a Nouvelle Vague perecia à medida que a década chegava ao fim. O mundo havia se transformado, e as questões problematizadas por esses cineastas já não eram mais tão vanguardistas. Emergia nos Estados Unidos a “New Hollywood”, incorporando em suas obras muitas das inovações propostas pelos franceses, assim como estes incorporaram conceitos americanos. Hoje, pode-se perceber claramente o impacto da Nouvelle Vague no cinema de Tarantino ou Guy Ritchie, ou até mesmo no nacional Cidade de Deus. E é por esta fórmula, “vanguarda transforma a tradição, tradição assimila a vanguarda”, que a arte se pluraliza.

sábado, 25 de setembro de 2010

Bande à part, por Lucas Simões


Lucas vê "Bande à part".
Lucas destrói o teclado.
Anna Karina anda de bicicleta.
Lucas perde o foco.
Lucas fica "à bout de souffle".
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"Avenida Brasília Formosa", por Camila Nascimento


A partir do personagem-sujeito que constrói, o filme "Avenida Brasília Formosa" (2010) nega e assume sua condição de filme de ficção, com requintes de uma “autoria” moderna e mistura uma abordagem poética com um olhar mais objetivo da realidade.

O espaço, que recebe um tratamento estético rigoroso da fotografia, toma a forma de quadros marcadamente ficcionais e contrasta, mas principalmente ressalta uma atuação hiper-real, naturalista, impressionante, dos atores. O filme acompanha de perto a vida de alguns moradores do bairro de Brasilia Teimosa, na periferia do Recife, região de beira mar, ocupada de maneira ilegal por pescadores desde os anos 60 que atravessou inúmeros governos sem receber a atenção necessária até que um projeto Federal de urbanização do atual governo é executado, mudando a vida da população.

São personangens-sujeitos reais que representam a si mesmos dentro de seus espaços sociais habituais. O diretor Gabriel Mascaro aposta numa análise mais profunda de seus personagens do que aquela feita por ele em seu longa-metragem anterior “Por um lugar ao sol”, e consegue aliar a verdade do filme à verdade dos personagens sem opiniões pré-concebidas como fora o caso.

O filme exerce fascínio por manter firme o ponto de vista num entre-lugar entre o real e a ficção ao tempo em que reconfigura o distanciamento brechtiano em uma nova aproximação baseada numa realidade que já está dissolvida na ficção. Através de intervenções mínimas nas vidas reais dos personagens, o diretor traça um fio de narrativa ficcional entre eles e deixa pistas ao longo da estória. Longe de quebrar a ilusão de realidade, estas pistas só intensificam a realidade desta ilusão. Ocorre um casamento entre realidade e ficção como o que ocorre entre os personagens de Hilda Hilst, por exemplo, quando ela os confunde os e os mistura, cada um contendo o outro em seu romance “Estar sendo. Ter sido”. Mas ela o faz através da forma, Gabriel Mascaro fundiu os conteúdos.

Por outro lado, aliando abordagens estéticas mais antigas a uma construção em modelo mais atual, o filme traz uma montagem conceitual que sugere a natureza fragmentária do sujeito contemporâneo na era da predominância das imagens. É um híbrido bem pós-moderninho que apesar dos traços modernos suplanta a sensação de esgotamento contemporânea ao promover uma nova espécie de investigação da realidade não só no cinema, mas através do cinema e da relação do homem com sua imagem.

Ao percorrer os caminhos que constroem a identidade do sujeito num contexto específico – suas relações sociais, inter-pessoais, sua angústias e desejos, o filme adquire um irrevogável caráter político, mais amplo, que tem por base uma análise subjetivista mas mostra e portanto, denuncia, na medida em que é claro em sua escolha pelo discurso consciente.

O filme questiona ainda, a posição do próprio cinema na construção deste sujeito “personagenzado” contemporâneo, na medida em que evidência o poder de penetração das imagens – e, em última instância, discute o poder ideologizante da mídia - através da presença da câmera já naturalizada dentro das casas das pessoas.

O que o filme aponta é, neste sentido, a condição que proporciona sua produção, uma perfusão de fronteiras entre imagem e vida, entre o cinema e a realidade, entre o homem e sua representação.

Ascensor para o cadafalso, por Ana Luiza Fernandes Alencar



Alfredo Manevy descreve Ascensor para o cadafalso como um filme jazzístico que dialoga com o film noir. Essa talvez seja a definição mais precisa para ele, e mais interessante para um filme. Na visão de Amir Labaki, o que existiu foi um casamento perfeito entre a música de Miles Davis e o filme de Louis Malle. Para Marcel Martin, Malle fez uma utilização racional e inteligente do jazz, como um “contraponto permanente a uma ação visual”. Esse recurso obedece ao que ele chama de “música ambientação”, dessa forma, Martin considera que a música opera como um contraponto livre e independente da tonalidade psicológica e moral do filme considerado em sua totalidade (Martin 2007, p.128).

Sidney Lumet em seu livro Fazendo filmes, brinca com o papel da música no cinema, para ele aquele clichê que diz: “vai melhorar quando acrescentar a música” é totalmente verdadeiro. Nas suas palavras: “quase todo filme melhora com uma boa trilha musical”. Ele parte do pressuposto de que a música é um meio rápido de atingir emocionalmente as pessoas, logo o filme de Malle tem a trilha sonora totalmente a seu favor. Tarkovski sugere que a música quando bem utilizada tem a capacidade de alterar todo o tom emocional de uma sequência. Para ele, a música “deve ser inseparável da imagem visual a tal ponto que, se fosso eliminada de um determinado episódio, a imagem não apenas se tornaria mais pobre em termos de concepção e impacto, mas seria também qualitativamente diferente” (Tarkovski 1998, p.191). Prova disto é a uma sequência em que Jeanne Moreau caminha pelas ruas de Paris em busca de seu amante, e a música se torna responsável por transmitir a forte carga emocional da personagem.

Um elemento que condiz bem com a trilha sonora de Miles Davis é a ambientação nas ruas de Paris. A principal metáfora da cidade (como um todo), segundo Walter Benjamin, é a figura da passagem. Jean-Louis Comolli acrescenta a essa figura, a passagem dos homens, das mercadorias, dos desejos e, sobretudo, do tempo. “A cidade filmada se desdobra em um conjunto de temporalidades paralelas, de histórias sobrepostas. O cinema escolhe exaltar a cidade dos mistérios, das conspirações. Tempo, ficção, segredo, invisível, são partes ligadas” (Comolli 2008, p.182). Deleuze percebe na agitação urbana uma figura privilegiada da emoção cinematográfica, “o movimento de movimentos”.

Para Deleuze, Louis Malle procedeu se um modo quase evidente na maior parte de seus filmes, que ele caracteriza por “movimento de mundo”. Segundo ele, é sempre através desse “movimento de mundo” que o personagem se torna capaz de um crime. Em Ascensor para o cadafalso, Deleuze identifica na parada do elevador, o movimento que inibiu o assassino e que por sua vez impeliu outros personagens a praticar seus atos.

A noite, a chuva constante, o brilho das ruas molhadas, as luzes de neon das fachadas dos bares, entre vários outros elementos da estética noir são empregados em Ascensor para o cadafalso, de maneira a aumentar a sensação de incômodo, angústia e insegurança transmitida pelos personagens. Malle emprega na construção do filme também elementos temáticos dessa “estética”, tais como o crime, a traição, a troca de identidades, ou a identidade roubada. Os personagens, porém, parecem escapar das tentativas de enquadrá-los em categorias. A personagem de Jeanne Moreau, por exemplo, não é a típica femme fatale, apesar de ser o motivo de desencadear o crime.

O universo claustrofóbico próprio do film noir encontra no elevador sua forma mais opressiva de representá-lo. Passar um minuto dentro de um elevador já não é uma sensação muito confortável, que dirá passar uma noite inteira? E acrescente a isso, saber que a ajuda não virá e nem poderia. E mais, saber que você cometeu um assassinato e na condição em que se encontra não poderá ocultar a única evidência do crime que aponta você como o culpado. O que dizer de uma situação dessas? Bem, no mínimo angustiante, é quase como se o acaso tivesse se encarregado de punir o assassino, antes mesmo da justiça se encarregar de fazê-lo. E é de fato uma sensação cruel, porque não há meios de escapar, e o mais irônico é que talvez ele nem precisasse ter se dado ao trabalho de voltar para retirar a corda (isso porque há uma cena, quando Florence vai até o prédio onde Julien está, e no seu desespero ela sacode o portão violentamente; se aproxima então dela uma menina para lhe perguntar o que faz ali; as duas vão embora, cada uma para um lado, entretanto, a menina antes de ir embora, apanha no chão uma corda, com os fixadores, exatamente igual a que Julien havia esquecido pendurada).

Contudo, para o personagem, o mais desesperador não era o fato de ficar preso durante uma noite e um dia dentro do elevador, mas sim o fato de que quando saísse dali não seria para ir se encontrar finalmente com Florence, e sim para ir para outra prisão, e essa talvez definitiva. O interessante é que ele mantém uma postura relativamente calma, sua angústia é refletida pelo passar (ou pelo não passar) das horas em seu relógio, que ele se volta constantemente para conferir. Mas calma não é palavra correta para definir sua atitude, frieza está mais compatível. Julien é realmente um personagem interessante, porque ele é cínico, frio, até um pouco rude, porém se revela totalmente diferente através de sua relação com Florence, da qual entrevemos apenas fragmentos, no início, com a ligação telefônica e ao final, através das fotografias do casal.

O espelhismo é um dos elementos recorrentes na estética noir, de acordo com Marcia Ortegosa, ele remete a um universo de aparências, no qual as certezas desapareceram, estabelecendo assim, diversos sentidos. Há dois momentos em que a personagem de Jeanne Moreau se detém para olhar sua imagem refletida, na primeira no espelho do bar, onde entra em busca de vestígios de Julien; a outra, quando ela sai da delegacia e se vê refletida em seu carro. Nessas superfícies refletoras em que as imagens se duplicam e geram uma temporalidade subjetiva, se instaura uma parada, “um tempo para se voltar para si”, nas palavras de Ortegosa. A tentativa da personagem de recompor sua imagem diante desses espelhos se revela frustrada, uma vez que as imagens lhe escapam. O espelho nesse sentido ocupa o lugar da ausência, “do abismo entre a visão das coisas e sua aparência” (Ortegosa 2010, p.22). Além disso, como elemento gerador de cópias, pode ser considerado como uma metáfora da “perda da unidade”. Ele se constitui na verdade como um duplo, a imagem da imagem.

Outra questão recorrente no cinema noir é a da identidade roubada, da simulação, da farsa para fins escusos. Louis, ao roubar o carro de Julien assume sua identidade, incentivado por sua namorada Verónique. Após uma série de peripécias com o carro, acontece o encontro com um casal de turistas alemães. Nesse momento assumem a identidade de senhor e senhora Julien Tavernier. Louis acaba não sendo muito convincente em sua “representação”, colocando em ameaça a “realidade” encenada por ele e Verónique. Descrente da “fachada” empregada por Louis, e prevendo o que este iria fazer, o senhor alemão arma para que não lhe roubem o carro. Ao ver frustrada sua tentativa de roubo e temendo ser entregue a polícia, Louis mata o casal e foge com Verónique no carro deles, acreditando que dessa forma ocultava suas pistas. A polícia acredita então que o crime havia sido de fato cometido por Julien, logo que as evidências não deixavam dúvidas. Neste ponto se instaura uma busca pelo homem errado, algo que remete a Hitchcock e sua obsessão pelo “falso culpado”.

O filme evidencia com que facilidade as posições sociais podem ser invertidas. Com a revelação das fotos, Florence deixa de ser madame Carala, aquela que estava acima da lei, devido ao poder exercido pelo marido. Ao ser cúmplice (e amante) do seu assassino, ela havia abdicado do “direito” que gozava da impunidade, ou do status que a permitia. Mergulhamos então na questão da efemeridade do mundo, no qual o tempo representa o elemento de destruição. Ortegosa destaca que no universo do noir, encontramos a alegoria de um mundo que perdeu seu equilíbrio, resultado da sociedade contemporânea, na qual as pessoas sentem a inadequação, em virtude da extrema fragmentação de suas vidas. Esse mal estar social é responsável por uma constante vertigem e a conseqüente fragmentação das identidades (Ortegosa 2010, p.57).

Louis Malle construiu o filme de forma meticulosa como um quebra-cabeça, no qual as peças vão se encaixando pouco a pouco, mas que para os espectadores já foi dado praticamente montado, o suspense que se cria é que nós sabemos o que os personagens desconhecem. Porém, isso não nos priva de um desfecho surpreendente, pois “o envolvimento catártico é, reforçado por uma estratégia importante e bastante usada: a ilusão de participação na trama. No jogo de ocultar/revelar informações, garante-se uma maior cumplicidade do espectador com a ficção.” (Ortegosa 2010, p.20)

Perdemos a ilusão de que as fotografias são representações fies do mundo, que expressam a realidade “pura”, como acreditava Bazin. Nesse contexto e também no nosso (se podermos provar que não houve manipulação) uma foto equivale a uma prova incontestável de que uma determinada coisa aconteceu. Logo, no desfecho do filme, a prova que esclarece os dois crimes vem através das fotografias contidas em única câmera. Quando as fotografias são reveladas, o mistério também o é. “A água surge como líquido gerador da revelação da imagem, diluída entre os banhos químicos. A água reflete imagens fugidias, levando à vertigem o olhar que a contempla em demasia” (Ortegosa 2010, p.78). Para a personagem Florence a visão daquelas fotografias parece contrapor a efemeridade do tempo, podendo ser vista como um meio de “vencer” a morte, de congelar o tempo, tal como a figura do embalsamento, pensada por Bazin.

Todavia, podemos pensar na metáfora da imagem fotográfica não apenas como um fragmento imagético, mas também como uma narrativa de uma história. Desta forma, ela pode ser como escreveu José de Souza Martins: “memória dos dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do impossível, do que não ficou e não retornará. Memória das perdas. Memória desejada e indesejada” (Martins 2008, p.45). A fotografia parece se tratar de fato, como expressou Susan Sontag de “um mundo–imagem, que promete sobreviver a todos nós”. E como completa ela, “hoje, tudo existe para terminar numa foto” (Sontag 2004, p.35).











Referências bibliográficas:



*BAZIN, André. “Ontologia da imagem fotográfica”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

*COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

*DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

*LABAKI, AMIR. É tudo verdade: reflexões sobre a cultura do documentário. São Paulo: Francis, 2005.

*LUMET, Sidney. Fazendo filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

*MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007.

*MARTINS, José de Souza. Sociologia da imagem fotográfica. São Paulo: Contexto, 2008.

*MANEVY, Alfredo. “Nouvelle vague”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006.

*ORTEGOSA, Marcia. Cinema noir: espelho e fotografia. São Paulo: Annablume, 2010.

*SONTAG, Susan. “Na caverna de Platão”. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

*TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Fahrenheit 451, por Kátia Martins



Em um futuro indeterminado, num Estado totalitário, os "bombeiros" têm como função principal queimar qualquer tipo de material impresso, pois para esta sociedade a literatura levaria à infelicidade. Mas Montag (Oskar Werner) começa a questionar tal raciocínio quando conhece uma mulher que o incentiva a ler os livros antes de queimá-los.

Este é o enredo de Fahrenheit 451 (1966 – François Truffaut); o título se refere à temperatura em que os livros são queimados. E para quem assiste a este filme sem informações prévias sobre ele, é bastante surpreendente ver já na sua seqüência inicial, os bombeiros entrando em ação não para apagar algum incêndio, mas sim para provocar um fogo em alguns livros apreendidos. O protagonista do filme e um dos bombeiros, Montag (Orkar Werner), fazia seu trabalho sem nenhum questionamento, até conhecer Clarisse (Julie Christie), uma professora de primário, que faz perguntas sobre sua profissão e o faz refletir sobre ela, apresentando-lhe também a possibilidade de ler escondido os livros com os quais entra em contato através do seu serviço. A partir disso, Montag fica curioso para saber o conteúdo dos livros e passa a roubá-los das casas em que vai apreender os livros.

Fahrenheit 451, na verdade, é uma crítica contundente sobre o totalitarismo, a ausência de prazer e liberdade intelectual e a alienação das pessoas pela sociedade, alienação exercida especialmente através de meios de comunicação como a televisão. Isso fica bem claro no filme através da direção de arte, que dá bastante atenção aos objetos da casa de Montag, que tem uma presença massiva de aparelhos de TV por toda a parte, além de uma enorme TV na sala principal, muito parecida com as televisões existentes hoje em dia (bem grande e pregada na parede); ou no “jornal” que Montag apanha na entrada da casa, cheio de imagens, sem palavra alguma. A direção de arte do filme, aliás, tem um cuidado especial, já que o filme é futurista, tentando projetar os objetos de um tempo futuro, como no caso da TV. Mas como não poderia deixar de ser, esses objetos são datados, como, por exemplo, o aparelho de barbear mais recente que Montag ganha de sua esposa, Linda e o formato de alguns aparelhos, como o telefone. O figurino é outro aspecto do filme que é datado, e apesar de se pretender uma projeção para o futuro, às vezes cai no velho clichê das roupas prateadas ou brilhosas dos filmes futuristas. Afinal de contas, os filmes são documentos do período de sua produção, e qualquer representação do passado ou do futuro existente em um filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido.

Mas para além dessa datação, este filme, em se tratando de uma crítica a uma sociedade dominada pelo poder das imagens, paralelamente traz questionamentos políticos e ideológicos ainda bastante atuais.

“Roma, cidade aberta”, por Lucas Mariz



“Roma, cidade aberta” aborda um fato real freqüentemente ignorado pelo colégio nas aulas de história: a resistência italiana contra a ocupação alemã, sua aliada, na segunda guerra mundial.

Particularmente eu nunca tinha parado para pensar na reação da população frente seus líderes durante os períodos de guerra. Normalmente ouve-se o professor dizer: a Itália, junto com o Japão e Alemanha, formavam o Eixo, e tem-se a impressão de que todas as pessoas do país concordam com a ideologia dominante, como se elas agissem feito um bloco. Quando na verdade não é assim. Daí a importância de filmes como este agora analisado, principalmente pela forma como foi realizado.

Em condições mínimas, Rossellini conseguiu rodar o seu filme, dando um marco inicial para o que iria vir a se chamar neo-realismo italiano. Este diretor mostrou que um filme pode ter qualidade mesmo com baixos recursos. O que importa é a criatividade humana e não o poder tecnológico.

A Itália ficou ocupada nos anos de 1943 e 1944, o filme foi rodado em 1945. O realismo alcançado na película nos dá a impressão não de estarmos vendo uma história que aconteceu, mas que a vemos de fato acontecer. Quase como a sensação de comemorar o aniversário um dia depois.

Levar a verossimilhança ao limite é uma característica do neo-realismo. Entre outras técnicas adotadas por este grupo cinematográfico estão: uso de atores não profissionais, trabalhar com o improviso, locações reais, câmera na mão e planos longos. Normalmente o tema é atrelado ao cotidiano. A idéia é captar as problemáticas de um período, registrando-o para sempre.

Em “Roma, cidade aberta”, inclusive, pessoas do bairro interpretaram a si mesmas, e soldados alemães prisioneiros foram personagens de soldados alemães repressores. Algumas tomadas, como a marcha do exército, são filmagens reais, capturadas nos anos anteriores. Os cenários destruídos são realmente construções abaladas pela guerra. Imagino o nível de emoção por parte dos atores ao reproduzir um acontecimento ainda tão fresco na memória. A comoção transborda os participantes da produção e atinge o espectador.

Os protagonistas são resistentes ao domínio alemão. Por isso, vivem basicamente fugindo das garras dos poderosos. Talvez seja essa a sua maior manobra estratégica. Além da necessidade óbvia de salvarem a própria pele, eles ferem a moral do inimigo mostrando que ele não é tão forte assim. Essa luta desleal lembrou-me bastante a ditadura militar aqui no Brasil.

O lado “família” dos revolucionários é bem explorado. Vemos um governo tirano caçando homens simples, que por serem dignos, são forçados a lutar contra as injustiças. Por sua vez não temos idéia da vida pessoal do vilão. Na verdade, ele só sai do seu escritório uma vez, para uma sala próxima. A escolha de ponto de vista beneficia a maior parte da população italiana da época. Se a intenção é entender o clima de um tempo, então é preciso mergulhar na maioria.

Há vários momentos de tensão em que os principais escapam por pouco de serem pegos pelo exército. Em cada novo ataque o enredo dá um pulo. O espectador não sabe o que esperar. Não é um filme clichê ou previsível.

Por fim, os revolucionários são apanhados, torturados e mortos. Graças a uma traição da amante de um deles. Em troca de um casaco de pele ela entrega o próprio namorado. Na execução do padre, as crianças, também guerrilheiras ao seu modo, assobiam uma melodia indicando que a resistência não irá acabar com a morte daqueles indivíduos.

domingo, 19 de setembro de 2010

"Le Monde Vivant", por Rayssa Costa





Nascido em Nova York (EUA), Eugène Green se considera um francês típico, talvez por isso a mudança da fonética de seu nome. Mudou-se para a Europa e lá estudou letras, línguas, história e história das artes; fundou a companhia de teatro barroco Teatro da Sabedoria. Tem uma filmografia pequena, composta por curtas e longas metragens premiados. Suas direções mais conhecidas são seus longas: “Toutes les Nuits” (2001), “Le Monde Vivant” (2003), “Le Pont des Arts” (2004) e “La Religieuse Portugaise” (2009).

Em "O Mundo Vivente", Green traz ao espectador a narrativa do Cavaleiro de Leão que vai a um castelo salvar a donzela da torre do domínio de um Ogro. Nesse caminho, o destemido Cavaleiro encontra um rapaz que o acaba por ajudar nessa luta. A procura do Ogro, o guerreiro e seu “leão” chegam à casa do monstro e encontram então a mulher do bichano. As histórias começam a se entrelaçar e até um pouco a se confundir, mas isso só aumenta meu gosto pelo filme.

O cineasta francês mostrou nessa produção um estilo peculiar: assistimos a um faz de conta cinematográfico. A partir de um registro extraordinariamente fantástico, o filme adquire significados que ultrapassam o tom da fábula. Lembrei de muitas histórias e contos marcadamente infantis, mas fui capaz de expandi-los e acreditar, por exemplo, que quando um coelho é mostrado e dito um elefante, de fato é esse outro animal e isso não é, em nenhum momento, rebebido como trash ou inconsciente. Green se liberta da normativa e transforma os códigos a partir de um conceito próprio. Um cachorro faz o papel de um leão. Ele faz o público enxergar novas formas de percepção no que já é tido como formalizado nas amarras da idéia sã.

O filme é todo trabalhado a partir da ideia do poder do texto. A encenação aqui não foi sensorial, ela se libertou da figuração clássica instalada no cinema. Não é preciso sorrir para se dizer feliz ou chorar quando se está triste. A enunciação é mais um ponto extremamente forte deste filme. Palavras, palavras e palavras, os atores usaram delas para nos tocarem e nos imergirem por completo nas cenas que estão sendo vistas. O cinema de Green além de permitir a fantasia do espectador, também permite a imaginação do próprio cinema como artifício.

O diretor apresenta o inesperado em vários segmentos do filme. O figurino dos atores é paradoxalmente oposto e mesmo assim é aceitado como existente para o público. Enquanto as mulheres vestem-se com longos vestidos ou pequenos adereços mais próximos do que se espera dos contos de fata medievais, os homens usam simplesmente jeans, camisas de botão e sapatos contemporâneos. Enquanto no cenário existiu uma pesquisa técnica e muito cuidado no local onde o filme seria gravado, os artefatos usados pelos personagens, a exemplo das espadas, parecem de brinquedo.

Green, ao mesmo tempo em que quis sair do classicismo rigorosamente formal que uma produção cinematográfica impunha ao filme, preocupou-se também com detalhes marcantes de cena – a fita no cabelo da mulher do Ogro. Estamos no domínio do tempo, ou mais precisamente de uma estranha atemporalidade. É um filme que tem marcas de uma época, mas que não se resume nem se restringe a ela.

"O Mundo Vivente" é um filme incrível e verossímil, e a partir desse paradoxo hipnotiza o espectador. Existem entrelinhas em que Green trouxe à tela algumas ironias ou frases e nomes que talvez merecessem um prévio conhecimento, porém isso não transforma o filme em pílula para um “cabeça” cinematográfico. O filme de Eugène Green é história para se ver e se transmitir, é algo que nós faz acreditar que a imaginação é o mais importante artifício para a criação e para o sensorial, “No mundo vivente, o sopro do espírito é o sopro do corpo”

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"Jules e Jim – Uma mulher para dois ", por Sofia Donovan


A abertura de Jules e Jim já precede a confusão: Você disse “Eu te amo”, eu disse “espere”, eu quase disse “sou sua” você disse “vá”. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) são dois jovens que, através de uma identificação incomum, de uma mútua sensibilidade e paixão pela arte, criam uma amizade incondicional. Somos introduzidos a essa amizade rapidamente por um narrador também presente em vários outros momentos do filme. E então conhecemos Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher excêntrica e misteriosa com quem Jules começa a ter um caso, e por quem Jim também se apaixona. Ao falar de Catherine sinto-me obrigada a dar uma “fugida” dos limites desse filme.

Esta crítica inicialmente seria sobre Viver a Vida, de Godard, porém uma coisa me incomodou nesse filme: Nana (Anna Karina), a protagonista, não parecia um ser humano, eu não consegui encontrar nela uma “mulher de verdade”. Em meio às suas indagações e contradições eu a perdi, e foi esse o fato que me levou a trocar Viver a Vida por Jules e Jim. A relevância da minha mudança de escolha para essa crítica está exatamente na questão da representação das personagens, que são bem diferentes, mas em ambos os filmes, enigmáticas.

Também tive problemas inicialmente para assimilar Catherine, porém, aos poucos ela foi surgindo: Uma intensificação extrema da mulher, em suas inseguranças e desejos, uma figura instável e encantadora. Ao fim, diferente de Nana, ela se tornou palpável. O problema está em como esse processo ocorreu. Suas ações e intenções foram explicadas pelo narrador e pelo próprio Jules, tirando do espectador a liberdade de assimilar e interpretar sozinho o filme.

Catherine muda completamente a vida dos dois, a música que aparece mais de uma vez no filme “Le Tourbillon de la Vie”, sobre a fascinante femme fatale e encontros e desencontros marca bem a situação que os envolve. Mas o filme nunca perde o ar lúdico, com cenas simples e simbólicas como a em que Catherine se alegra ao sair vestida de homem e ser reconhecida como tal ou a que Jules, Jim e Albert (Boris Bassiak), outro homem que ela conquistará, se admiram com a figura de uma mulher de pedra.

A fotografia fragmentada excitante, as belas locações e as fortes atuações de Catherine Jeanne Moreau e Oskar Werner se complementam.

O filme propõe um amor “livre de hipocrisia” que a insegurança dos personagens, que seus defeitos humanos, impedem que funcione.

Os incompreendidos, por Ricardo Duarte



É de se admirar como Truffaut transformou um potencial melodrama em uma história lírica e madura. Tendo em mãos uma estória envolvendo um menor ignorado pelos pais, fugindo de casa e sendo mandado para um reformatório, o jovem diretor conseguiu fazer um filme em que as possíveis lágrimas da audiência são transformadas em pequenos sorrisos contidos, em que há doçura, mas sempre com a presença do amargo. Tais pensamentos também me ocorreram ao término do filme “Um gosto de mel”, de Tony Richardson, com o qual “Os incompreendidos” possui bastante semelhanças e formaria uma excelente sessão dupla.

Com uma forma de direção mais calcada no modelo clássico, ao menos quando comparada com a de seu colega Jean-Luc Godard, Truffaut conta uma história simples de maneira simples. A influência do neo-realismo é marcada, principalmente, pelo uso de atores não-profissionais e locações externas. Falando-se dos atores, seria um erro não comentar do garoto que interpreta Antoine Doinel, Jean Pierre Léaud, que é o grande trunfo do projeto. Sendo um filme que depende, basicamente, da conexão dos personagens com o público, Pierre brilha ao dar vida a um adolescente comum, com os mesmos anseios e curiosidades do que qualquer outro. Fica-se difícil, até mesmo, dividir o ator do personagem, pois aparenta que um foi feito para o outro. O monólogo de Antoine contando sobre sua vida para uma psicóloga é um dos maiores exemplos da potência artística do garoto.

Embora dito no parágrafo anterior que Truffaut segue mais uma espécie de direção clássica, pode-se perceber nesse filme, um manifesto. Não tão visível, violento e radical quanto o presente em “Acossado”, mas escondido de forma sutil já numa das primeiras cenas. O professor deixa Doinel de castigo e esse escreve uns pequenos versos na parede, sendo repreendido e humilhado pelo docente, que reclama de sua forma de escrever. Sendo preso por regras e normas, o protagonista acaba por ter de quebrá-las para se libertar. Uma grande metáfora ao que os cineastas da nouvelle vague faziam: quebravam as regras asfixiantes do cinema clássico, e tentavam inovar e dar um novo sopro de vida ao cinema francês, tão criticado por Truffaut no ensaio “Uma certa tendência do cinema francês”.

Um dos pontos mais positivos do filme é o seu final. Optando por um encerramento em aberto, o filme deixa com o público o poder de decidir o futuro de seu protagonista (ou deixaria, caso não houvesse continuações). No última cena, na qual Doinel olha para a câmera de uma forma extremamente marcante, vários sentimentos, como o medo, a incompreensão, a dor, são passados apenas com esse olhar, de forma bastante melancólica. O último fotograma é congelado, e o olhar fita fixamente a platéia por mais algum tempo. É o gesto máximo de carinho do diretor. O personagem é congelado após sua triunfante fuga, ficando preso para sempre naquela imagem estática, protegido da ação devastadora do tempo e guardado intacto nos nossos pensamentos, como um inseto no âmbar.

Jules e Jim - Uma mulher para dois, François Truffaut, 1962, por Bruna Belo



Jules e Jim, considerado por muitos a obra-prima de François Truffaut, é seu terceiro filme e um dos que melhor representa a nouvelle vague francesa, fazendo uso de técnicas de filmagem baseadas na improvisação e desrespeitando as regras clássicas da montagem. Baseado no romance autobiográfico de Henri-Pierre Roché, o filme possui dois dos temas centrais da obra do diretor: o amor e as mulheres.

Ambientado na Paris do inicio do século XX, em plena belle époque, conta a história de dois amigos: Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre), ambos escritores, o primeiro é austríaco, retraído e introspectivo, enquanto o segundo é francês, bem humorado e extrovertido. Depois de uma viagem às ilhas do mar Adriático, eles conhecem Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher livre, liberal e apaixonada pela vida. Ambos se apaixonam por ela, dando inicio a uma amizade sólida e a um dos mais famosos triângulos amorosos do cinema. Jules casa com Catherine e tem uma filha, porém após a Primeira Guerra Mundial – na qual os dois amigos lutam em lados opostos – ela já havia perdido o interesse no seu marido, passando a ter casos extraconjugais. Quando reencontram Jim, Catherine se descobre apaixonada por ele e os três passam a viver juntos.

O filme tem um narrador em off para, como disse Truffaut, evitar o corte dos textos mais belos, dando conta das partes mais densas do livro. Além disso, ele ajuda a dar sentido às ações e diálogos entre os personagens, que, sem a narração, poderiam parecer sem propósito, ajudando na fluidez do filme, que une cinema e literatura de forma encantadora.

Como não podia deixar de ser, Truffaut – um dos fundadores da nouvelle vague – incorporou a Jules e Jim o surgimento de tecnologias de filmagem, a fim de obter a nova linguagem cinematográfica tão desejada, fazendo uso de imagens congeladas e jump cuts. Foram usadas câmeras portáteis as quais, por serem leves, facilitavam a locomoção, já que podiam ser levadas na mão, aumentando a liberdade do cinegrafista (Raoul Coutard) para fazer o que quisesse, por exemplo, algumas cenas do pós-guerra foram filmadas por câmeras montadas em bicicletas. Apesar dessas técnicas já terem sido usadas em seus filmes anteriores, em Jules e Jim o diretor aperfeiçoa seu estilo, marcando uma transição, de uma direção livre e espontânea para uma mais refinada visualmente.

A utilização de congelamento da imagem usado ao longo do filme é um dos aspectos que chama mais atenção na montagem, pois perpetua determinados instantes, como expressões de Catherine e o reencontro dos amigos após a Guerra.
O filme pode ser dividido em três partes, assim como o livro: na primeira ele mostra a amizade de Jules e Jim, como se conheceram, como é a relação dos dois; na segunda parte eles conhecem Catherine, e Jules se apaixona e casa com ela; a terceira começa a partir do envolvimento de Jim com Catherine, concretizando o triângulo. Porém, essa divisão não ocorre apenas no roteiro, essas mudanças também podem ser percebidas através da montagem e da trilha sonora.

A fluidez e “rotação” (swirling) das imagens, a edição rápida e a musica vivaz da primeira parte do filme se encaixa perfeitamente à jovialidade, às brincadeiras e às emoções exageradas dos personagens. Na segunda metade, enquanto nós entramos mais fundo na intimidade dos personagens e enquanto a trama começa a se complicar, o filme desacelera.

A trilha sonora, composta por Georges Delerue, lembra composições de Claude Debussy e Erik Satie, dois dos mais proeminentes compositores franceses do período em que a historia se passa. É possível perceber que a relação entre personagens se torna mais tensa e complicada através do desenvolvimento dos temas musicais, por exemplo: há uma melodia que se repete durante toda a trama quando os personagens se encontram, primeiramente ela é idílica (quando eles visitam o campo e vão à praia de bicicleta), depois, com o decorrer da historia, essa mesma melodia se torna mais lenta e sombria. A partir desta reordenação dos temas musicais no decorrer das cenas, o diretor sugere significados implícitos na narrativa. Todo esse cuidado com a trilha sonora ajuda, e muito, a dar uma unidade à obra. A música Tourbillion, que ficou famosa após o filme, é cantada por Catherine em determinada cena e é capaz de sintetizar em poucos versos a sua personalidade e toda a relação dos três.

Embora Jules e Jim sejam os personagens principais, é Catherine quem rouba a cena, e sintetiza o espírito do filme. É ela quem os guia, comandando a relação entre eles. Jeanne Moreau, após essa sublime interpretação, ganhou fama internacional e passou a ser um dos rostos mais lembrados da nouvelle vague, já que esta personagem é uma das que melhor sintetiza os ideais desse movimento, a confusão e intensidade de emoções.
Com uma sutileza inerente ao diretor, Jules e Jim, se tornou uma celebração à sinceridade para com os seus sentimentos e emoções. Uma das melhores adaptações literárias para o cinema, a história é, como disse o próprio Truffaut, um “perfeito hino ao amor e, talvez, à vida”.



Fontes:
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: an introduction. Ninth Edition. New York, NY: McGraw-Hill, 2009.
http://www.scribd.com/doc/17704250/Jules-et-Jim-Fotonouvellevague

OS INCOMPREENDIDOS – Uma educação, por João Roberto Cintra


No filme “Educação” (An Education, 2009), da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, há o confronto entre dois tipos de educação: a formal, tradicional, como se tem nas escolas e uma outra, pouco ortodoxa, a da experiência, do dia a dia. Na Inglaterra dos anos 60, com Beatles e Rolling Stones a ponto de pipocarem, fica difícil para a protagonista não se seduzir em deixar a escola para conhecer o mundo. Entretanto, mais cedo do que esse período, a educação tradicional já não bastava para uma juventude que cada vez mais não queria olhar apenas para professores e livros, mas também para o mundo e fazer dele também um aprendizado.

Talvez seja a partir desses paradigmas sobre a educação que se possa começar a (sem trocadilho) compreender “Os incompreendidos” (Les 400 coups, 1959). Filme de estréia de François Truffaut, ele funciona como uma síntese desse sentimento de inadequação por parte dos jovens à educação tradicional que se impõe como “a verdade”. Antoine Doinel é um garoto que parece não pertencer a qualquer esfera em que esteja: em casa, enfrenta uma mãe descuidada; na escola, entra em conflito com o professor. Nesse meio tempo, suas escapadas à rua, ficando dias sem voltar para casa, parecem ser a melhor parte da sua vida, sem qualquer amarra social e tradicional em voga – apenas a descoberta da cidade e da (sua) própria vida.

Um dos clássicos mais celebrados do cinema, há talvez no enredo e na figura de Antoine Doinel a cara de toda a geração responsável pelo movimento do qual o filme se originou. A Nouvelle Vague trazia nos seus realizadores um olhar para o cinema o mais distante possível do que se vinha produzindo até então. O movimento nasceu dentre outras maneiras de uma consciência sobre a memória e a história do cinema, de como tinha sido feito até então – principalmente pela prática da cinefilia, com jovens assistindo e discutindo os filmes em reunião com amigos. Truffaut, Godard, Chabrol e outros da ‘turma’, começaram a enxergar o cinema de outra maneira – não pela gramática formal de se filmar, mas um modo mais livre, sem amarras desse formalismo. Assim como as experiências que buscava Doinel.

Essa ‘nova onda’ que propunha esses jovens realizadores iria de encontro à forma de se conceber o cinema, de se contar uma história. Isso já é claro na forma quase documental que é contado “Os incompreendidos”. Mais que a história do garoto é um recorte na sua vida, em um momento culminante de passagem da infância para a adolescência. As duas fases são recorrentes em todo o filme: as brincadeiras do protagonista com os amigos, a reação das crianças assistindo ao teatro de bonecos; do mesmo modo, Doinel fuma, rouba, é levado para uma delegacia e depois para um reformatório – universos não mais infantis. Sem grandes amarras na história de começo ou fim, o que temos é a história do ‘entre’, o meio, o que não é ainda. Em suma, um rito de passagem do personagem principal – e um rito também para o seu realizador. O olhar enrijecido dos adultos não via o que Doinel podia ver. Os cineastas da Nouvelle Vague não queriam mais enxergar daquele modo.

Interessante pensar que os filmes franceses até o movimento seguiam as convenções do cinema de forma extrema para parecer o mais natural, o mais real possível. Escrevendo para a revista Cahiers Du Cinema os críticos diziam que as convenções cristalizadas retiravam do público a verdadeira noção do que é real. Nos filmes da Nouvelle Vague essas convenções começaram a ser desrespeitadas em nome de mostrar o tempo inteiro ao expectador que aquilo não era a vida, mas um filme. Quebra de racord, montagem não linear, diálogos livres (sem estar diretamente atrelados a “contar” a história) são algumas das características dos filmes, que causaram estranhamento na época (ainda causam!), mas estão a serviço de uma legitimidade da mise-en-scène menos maniqueísta.

Uma das grandes cenas de “Os incompreendidos” está exatamente no encontro do protagonista com a psicóloga no reformatório: mesmo com a voz dela, há o estranhamento de sua imagem não ser mostrada em momento algum. De forma orgânica, Truffaut nos diz que não há um diálogo entre as duas instâncias, uma via de duas mãos, há, sim, um interrogatório. Apesar do estranhamento, não há nela nada de artificial: as respostas diretas, a inquietação das mãos, o olhar perdido de Doinel para nós (ele olha para a câmera, para a platéia) mostram agora muitas verdades e convergem para uma das mais reais e sinceras passagens que o cinema produziu.

Viagem à Itália – Rossellini, por Bruno Alves Ferreira


Dentro de sua baratinha, com o frescor do ar abafado de uma janela fechada lhe turvando os sentidos abalados pelo seu status de turista indefesa na terra de inocentes primatas italianos, Ingrid Bergman e o sr. Testabunda (é o que parece, sejamos francos) tem seu amor conjugal posto à prova pelo poderoso ardor do fazer nada.

Antes de retomar a história deixe-me argumentar um pouquinho sobre esta experiência singular que tanto sou experimentado: fiscal não-oficial da temperatura ambiente. A arte de fazer nada, ou melhor, como gosto de chamar, ficar à paisana sob uma paisagem distante interiorana é uma arte que contém muitas sutilezas. Primeiro, engana-se quem crê que fazer nada é apenas deitar na varanda como nossos protagonistas. O verdadeiro nada faz (só pra variar esta expressão tão íntima do meu ser) sabe que o estado de ócio puro é algo parecido como atingir um transe budista, só que sem o recitar dos mantras e com muito mais efemeridade. A mente deve esvaziar-se, seu ser derreter sob o sol Napolitano, seu corpo deixar-se tomar pela pressão relativa do ar, como um bebê entorpecido pela papinha nos braços de uma tia peluda.

Voltemos ao casal, antes que o leitor mais cinéfilo e menos filosofo perca-se no texto e volte à sua releitura do Pequeno Príncipe. Embora ainda tenha muito a dizer sobre a ociosidade. Ingrid Bergman, só “man” para os íntimos, mete-se nos cafundós deste país pequenucho mediterrânico (dizem que até europeu!) e junto com seu macho e sua testa de rêgo frondosa experimentam pela primeira vez a doce presença única de um ao outro. Peralá, oigalê, oxalá mano! Exclama o leitor incauto e com um vocabulário por demais eclético. Um casal que nunca teve seu “alone time” (inserção automática de expressão estrangeira para arregalar os olhos dos mais impressionáveis)? Como é que pode uma coisa dessa Batimã? Ainda mais com uma beldade com a ms. man ao seu lado? Só com muita dose de lico de cair o pinto, diria o curinga. Mas enfim, é isso. A presença do outro traz consigo dois males. A discussão da relação e o que fazer com ms. man quando se é um eunuco e Pong com entrada para dois jogadores ainda não foi inventado.

Relação discutida brevemente descobre-se algo que deveria ser mais óbvio que a elefantíase na testa do maridão: Não há relação. São um casal ligados através dos outros e quem sabe, casados através das expectativas dos outros (ecos de torneiras de pias de cozinhas britânicas suturam meus ouvidos com suas chamas do social realismo). Quando sozinhos descobrem-se desconhecidos com um rancor quase infinito que só é vencido pelo ímpeto de manterem-se à distância um dos outros. Ele procura fugir do ócio através de... Peralá!

Voltemos ao ócio enquanto a chama ardente (ai meu dedo!) da inspiração reflexiva dos enigmas da vida arde nas minhas entranhas (lá ele). É importante, que na sua atividade de não-atividade, a presença do outro seja eliminada de qualquer forma. De forma rude, dizendo-lhe um sonoro “Vá-te-se embora vade-retro satanás cruz credo da mão boba!” ou de maneira furtiva convidando-o para uma sessão morde fronha das tardes melodramáticas do TCM (Turner Classic Movies, só pra alongar este parágrafo). Também é importantíssimo cessar qualquer estímulo visual e sonoro que possam estimular algum mísero neurônio à cometer uma viagem milisegundos luz na sua massa cinzenta. Escutar música é estimular o cérebro. Então nada de trios mexicanos cantando o tema de Maria do Bairro. A verdadeira ociosidade é uma atividade de baixo custo glicósico. Tornas-te um semi-morto em contato com forças nunca dantes navegadas. Aliás, navegação, taí uma metáfora usada pelos projetos de paisanos que populam esse filme. Chegam à comparar a boa vida de ociosidade ao navegar de um navio, à deriva para onde o vento o levar. Meus filhos que não sabem o que dizem, derivar “il mare” é boiar, e boiar é oferecer resistência, é eliminar glicose preciosa no funcionamento da arte de não funcionar.

Os leitores mais espertos, com uma testa que não pareça a coxa do garoto Michelin como o maridão já notaram que eu não presto. Novamente enchendo a lingüiça com um vigor ímpar. Estou envergonhado e cessarei minhas reflexões por enquanto para me focar unicamente no filme.

Ele procura fugir do ócio atráves da comunhão boêmia (mulé). Ela procura através das cartas (haja paciência pra jogar paciência) e de homens sarados em mármore. Diga-me você leitor quem faz a melhor escolha e digo-te tua opção sexual. Enfim! O que a ms. man descobre é que sua vida é um verdadeiro vazio que aparentemente só pode ser preenchido pelo amor de um rebento. Deduzo isso através das inúmeras grávidas feiosas que apareceram durante o filme. O que o da testa peitoral descobre é que pegar mulher nem sempre é fácil, por mais oferecida que ela seja. Descobriu o Brasil.

Mas o meu tempo se encerra e meus comentários estão apenas começando... supostamente! Nunca confiem numa narrativa em primeira pessoa! Penso no que dizer e o tic-tac (do relógio adorável anta, não a bala) me empurra com tudo para uma conclusão incerta. Afinal, Bruno, tome vergonha na cara e sintetize uma opinião antes do fim desta resenha, me diz meu anjinho amiguinho de nome Vadinho que é personificado por este bigodinho ralo e charmoso.

Te atendo Vadinho! É um filme bacaninha que permite-se abster-se de certas convenções cinematográficas. É como um belo foda-se, ou com elegância, fornique-se para as regras do cinema. É um prazer assistir um filme que se abstêm de irrelevâncias como trama e direção. É um filme para se aproveitar da presença da ms. man em seus museus, vulcões e tumbas, com sua melancolia acentuada pela sua permanente cara de choro. Poxa, não tem pra mim? Pergunta-se ms. man cercada pela morte histórica. A resposta vem só no fim, aonde levada como uma lepre sendo surrado por uma gangue de tartarugas com machados, é socorrida pelo seu maridão e sua testa dentro de uma testa. Melodramaticamente, ou seja, de maneira tosca e irreal, meio kistch, meio brega, tipo assim, sacumé, tudo se conclui com um mudar de temperamento e humores mais mágicos que o cinegrafista que conseguiu enquadrar essa testa do maridão no filme. I love you, bebê! E seremos felizes para sempre. Kracauer concordará, pois chegou a dizer o alemão polêmicuzinho que o final feliz é mais adequado por dar uma sensação de continuidade. Teorias idiotas de lado. É o que recebemos. E tememos com este fim, happy together, pela eventual morte de ms. man esmagada pela testa pantagruélica do maridaço.

"Bande à part”, por Ana Lúcia Diniz



“ Para os atrasados que agora chegam, oferecemos umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: três semanas antes. Um monte de grana. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica” Essa frase, dita pelo narrador no início do filme, pode servir como um resumo da história que é contada em “Bande à part” (1964), de Jean-Luc Godard.

Parece simples, não é? De fato, o filme segue uma narrativa linear e não oferece grandes dificuldades de compreensão, principalmente se comparado a outras obras mais herméticas e pretensiosas do diretor. No entanto, se a frase dita pelo narrador pode servir para resumir a trama, não sintetiza , paradoxalmente, o filme. Não se trata aqui de uma escassez de palavras, é possível, seguindo a mesma ideia contida na frase , citar inúmeras outras: Dois rapazes. Três amigos. Odile, Frantz e Arthur. Um roubo. Um triângulo. A França... E ,por mais que essas palavras ajudem a completar o resumo da trama, não chegam nem perto de definir a experiência de assistir a este filme. É necessário vê-lo, é indispensável senti-lo.

Se, por um lado, a história é uma espécie de homenagem aos clássicos de gângster que Godard tanto gostava, por outro, como típica produção de um período de ruptura e redefinição que é a Nouvelle Vague, o filme também tem um caráter experimental e inovador em diversos aspectos. Em “Acossado” (1959) - outro filme de Godard aproximadamente da mesma época - o experimentalismo é enfatizado fundamentalmente no plano da imagem; tem-se, portanto, uma montagem inovadora, a exemplo da cena da perseguição de carro em que se utiliza pela primeira vez uma técnica chamada de “jump cut”: quando cortes consecutivos na imagem conseguem acelerar o ritmo da trama e paralelamente quebram a sensação de continuidade. Já em “Bande à part” o caráter experimental é perceptível principalmente no plano sonoro, talvez por isso se tenha a sensação de que as inovações nesse filme são mais sutis do que em “Acossado”.

Uma cena icônica - exemplo dessa ruptura - é quando os três personagens principais resolvem fazer um minuto de silêncio que é intensificado pela retirada total do som, inclusive dos ruídos do ambiente. Godard destrói , assim, o realismo e faz o silêncio transcender o plano ficcional. Outra cena em que a inovação se dá de maneira oposta mas também genial é quando Franz (Sami Frey) finge atirar em Arthur (Claude Brasseur), usando o dedo como revolver. Em vez da retirada, como na cena citada anteriormente , ocorre a inserção do som de um disparo, algo no mínimo ousado e que também questiona o conceito de realidade presente na trama.

É possível notar que, apesar de uma narrativa a princípio despretensiosa, “Bande à part” possui cenas que ficaram marcadas na história do cinema. Algumas delas serviram, inclusive, de inspiração a outros artistas. Bernardo Bertolucci em “Os Sonhadores” (2003) homenageia Godard quando os três protagonistas do seu filme ,Théo, Isabelle e Mathew, também correm pelo Louvre com o intuito de quebrar o record justamente conquistado pelo trio de Bande à part. Quentin Tarantino, além de colocá-lo como nome de sua produtora, é bastante influenciado por ele em “Pulp Fiction”(1994), pois a cena em que Uma Thurman dança com John Travolta é uma referência direta à do trio de Godard.

Essa cena em que os três personagens dançam no bar é influência não apenas para diretores de cinema, mas transcende ao ambiente da música e, inclusive, ao mundo televisivo. A banda Nouvelle Vague utilizou essa sequência como clipe da música “dance with me” e recentemente a série de televisão brasileira “ Aline” (2009) refilmou a cena ao som de “You Know I'm No Good” ( Amy Winehouse) com Pedro Neschling, Bernardo Marinho e Maria Flor incorporando o trio.

As cenas em “Bande à part” de fato encantam. A sensibilidade e delicadeza com que os personagens são filmados faz com que o espectador tenha prazer em observá-los nos mínimos detalhes. Anna Karina, esposa de Godard à época, que interpreta Odile, é filmada como se a câmera estivesse apaixonada por ela, seus olhos, no filme, aparecem realçados de tal maneira que é possível decifrar os sentimentos da personagem através deles.

Há quem diga que muitos filmes de Godard são verdadeiras aulas de cinema; em “Bande à part”, no entanto, em vez de aluno, o espectador se sente uma espécie de “cúmplice”. Cúmplice, claro, dos personagens no planejamento do roubo, mas – principalmente - cúmplice do diretor no ato de fazer cinema, descobrindo em sutilezas a metalinguagem que é recorrente nas obras de Godard e que torna esse filme encantador.

"Jules et Jim", por Marcílio Camelo


AVISO: SPOILERS!!

Assunto freqüente em filmes, o triângulo amoroso pode parecer tema sem muito valor para algumas pessoas, mas tudo depende da forma como é tratado. Truffaut traz para ao cinema uma história baseada no livro homônimo do escritor francês Henri-Pierre Rouché, e não faz a mínima questão de esconder o tom literal ao longo do filme. Pelo contrário, o diretor preenche a trama com diálogos vivos e narração em off, o que aparenta ser uma leitura visual de um livro, surpreendentemente interessante.

O filme retrata a França de 1912, onde uma amizade se inicia espontaneamente entre o austríaco Jules e o francês Jim, que é convidado para uma festa à fantasia pelo estrangeiro, mesmo sem se conhecerem. No início do filme Truffaut usa planos rápidos e curtos para montar o crescimento dessa amizade, que é pura, sem maldade. Vemos que os dois se divertem com namoricos, e chegam até a namorar uma mesma mulher, mas levianamente. Após o início veloz, somos apresentados a Gilberte, namorada de Jim, ela pede que ele não saia do seu quarto, mas o jovem não está disposto à estabilidade. Esse tipo de relação descompromissada que ambos os amigos costumavam ter com as mulheres é mostrado também quando Jules fala dos amores que deixou em sua terra. Nesse contexto, não era de se esperar que os dois sentissem um amor forte e duradouro por uma mulher. Mais estranho ainda seria eles dividirem um amor verdadeiro pela mesma mulher, o que estava por acontecer.

Quando Jules leva Jim para ver uns slides na casa de seu amigo músico Albert, ocorre um momento de fascinação pela figura de uma estátua feminina, um rosto que se fazia perfeição de mulher para ambos. Movidos pelo desejo, os dois vão ao museu numa ilha do mar Adriático e se deparam com a estátua, ficam admirando e depois retornam para casa. Jules conta a Jim da chegada a Paris de três moças que estudavam com um primo seu em Munique. Eles vão jantar com elas e acabam encontrando um rosto igual ao da estátua, é Catherine. Jules começa a sair com ela, sem a presença de Jim, mas depois o chama para um passeio a três. Porém, Catherine está vestida como homem, e assim os três se divertem na rua com seu disfarce. Quando chegam numa ponte, a moça aposta corrida com os rapazes, mas trapaceia e acaba vencendo. Uma metáfora da relação que se estabelecerá entre o trio.

Os três viajam para uma casa dita dos sonhos, junto à natureza, e desfrutam da amizade que amadurecia. É nesse cenário de isolamento da sociedade que Jules propõe casamento a Catherine, que não aceita, mas isso não deixa o rapaz magoado. Vemos aí a passividade que Jules manterá ao longo do filme em relação à sua amada. De volta a Paris, Catherine mostra sua personalidade forte e imprevisível quando se joga no rio em protesto aos comentários machistas de Jules. Ela quer ser sempre notada, jamais desprezada. Ela deve estar no comando, sempre à frente dos dois, como na corrida da ponte. Talvez para decidir algo importante na relação dos três, Catherine tenha marcado um encontro com Jim no dia seguinte. Mas devido ao atraso de ambos, eles não se encontram e a história toma um rumo diferente. Jules e Catherine se mudam para a Áustria e se casam. A Primeira Guerra Mundial irrompe, separando os amigos por vez.
Essa forte amizade resiste à guerra, na qual os amigos temem se matar enquanto seus países lutam contra si. Para retratar esse momento, Truffaut insere cenas de documentários bélicos, trazendo um tom realista. Enquanto isso, Jim mantém contato com Gilberte por correspondências e chega a se encontrar com ela por uma semana, mas o envolvimento dos dois continua inconsistente. Por outro lado, Jules troca cartas de amor com Catherine que, grávida, aguarda seu retorno. Com o fim da guerra, os amigos voltam a se escrever e Jim é convidado a ir visitar o casal.

Agora uma família completa, Jules, Catherine e a filha Sabine recebem o amigo no chalé próximo ao Reno. Jules fala de seu trabalho como pesquisador de insetos e Jim comenta que está escrevendo para um jornal francês. A aparente harmonia familiar, em que a esposa se situa como doméstica e mãe atenciosa, é perturbada quando Catherine mostra os aposentos da residência: o casal não dorme junto. À noite, Jules conversa a sós com o amigo e conta que seu casamento não é mais real, sua esposa não o trata mais como marido, apenas respeita-o na casa. Mas o amor de Jules é intenso e sem cobranças, ele aceita os amantes da esposa, só não quer que ela o deixe como chegou a fazê-lo por seis meses. Ironicamente, Catherine está prestes a abandoná-lo de novo, dessa vez para ficar com seu amante Albert, o mesmo músico que ‘apresentou’ ao amigo a beleza de Catherine em forma de estátua.

Uma vez ciente da situação, Jim conversa com Catherine e, durante um belo passeio pela mata, ela conta como deixou de amar Jules, que lhe pareceu um estranho ao voltar da guerra. Ele já não lhe era mais suficiente, já não lhe servia. Então, permeada por amores banais, amantes de diversão, Catherine assumia o papel do marido, do infiel na relação, e cedia a Jules a parte submissa da esposa resignada. Uma interessante inversão de valores dita as regras desse jogo amoroso que se encaminha para o trágico.

Jim não se deixa desejar a esposa do amigo, e o faz sem saber por quê. Mas a inibição é banida quando o próprio Jules lhe diz para amá-la e casar-se com ela, contanto que os três continuem se vendo. A absolvição de culpa faz com que Jim venha a morar no chalé. ‘Os três loucos’, como eram conhecidos na vila, estavam felizes com Sabine, morando juntos. Mas Jim teve de retornar a Paris por causa do seu trabalho. Assim, mais uma vez a felicidade é separada, e ficamos na dúvida de que ela iria retornar ou não.

Em sua filosofia, Catherine acreditava que o amor era curto, mas retornava constantemente. Suas aventuras de antes tinham acabado, ela estava disposta a esperar o seu amado. Porém, Jim volta para os braços de Gilberte, e adia seu retorno à Áustria. Os dois trocam cartas, e Catherine se pergunta se ele a ama. Até que ela nota a infidelidade de Jim, e se vinga dormindo com Albert, seu equivalente de Gilberte.

Finalmente Jim retorna e recomeça com Catherine sua história de amor, uma vez que ambos estão quites, mutuamente traídos. Dura pouco até que um novo problema surge: ela não consegue engravidar. O sonho do casamento e dos filhos começa a se destruir, juntamente com o relacionamento dos dois. Um novo fim aproxima-se, dentre tantas idas e vindas, tantos amores curtos que Jim e Catherine sentiram um pelo outro. Ele volta para Paris e troca cartas com ela, que se vê grávida e quer que ele retorne. Mas a doença de Jim o impede de voltar. Ele é cuidado por Gilberte, o que causa ciúmes e desconfiança a Catherine. Uma confusão com as cartas os afasta ainda mais. O relacionamento realmente acaba quando Catherine perde o filho que esperava.

Após algum tempo Jules e Catherine decidem morar em Paris. Albert continua sendo amante dela, e Jules permanece tolerante com a amada. O casal de fachada reencontra-se com Jim, que está noivo de Gilberte. Mas Catherine está mais desequilibrada e inconformada do que antes, assim, ela atrai Jim para sua casa e tenta sem êxito matá-lo com um revolver. Jim foge e eles só se vêem de novo casualmente em um cinema, com Jules presente. Os três saem no carro de Catherine e vão para um café perto de um lago. O alívio que Jim sentia por perceber uma frieza vinda de Catherine se fez curto, e um final definitivo apareceu para os dois: Catherine guiou seu carro até o abismo de uma ponte quebrada, matando a si e a quem ela muitas vezes amou.

Amor curto, longo, repentino, constante, intermitente, amor-paixão, amor-platônico, amor-amizade. Truffaut trata desses amores em seu filme nouvelle vagueano, amores tão diversos e complexos quanto aqueles que os sentem. A intensidade dos sentimentos vividos pelos personagens reforça o drama/tragédia desses seres confusos, ambíguos, que apenas agem, não tentam se explicar, que vivem e morrem por suas causas particulares desconhecidas. O único amor que consegue sobreviver aos encontros e desencontros do filme é o que une os dois amigos, permanecendo puro e admirável. A amizade de Jules et Jim.

“Beijos Proibidos”, de François Truffaut, por Renato Souto Maior



Antoine Doinel em plena juventude parisiense pode ser algo curioso de se observar, como um espião. O título em português, ao ser pessimamente traduzido, faz com que se perca boa parte do sentido e da relação do nome do filme com sua história. Em duas específicas cenas Doinel tenta roubar, literalmente, o beijo de duas igualmente jovens, em tom desastrado; e isso revela muito da personalidade de Antoine. Sua alcunha de incompreendido reaparece logo no início do longa, quando ele é expulso do militarismo por sua incapacidade de se adequar a tamanha mesquinhez e hipocrisia. O ano é 68, e as crises políticas e os conflitos de guerra fervem em um âmbito responsável pelo incidente no mês de maio daquele mesmo ano. A relação é colocada, mas não explorada. A câmera de Truffaut se debruça em um cotidiano por vezes “malandro”, com um estilo e ar de boêmia críveis e integrantes do personagem Doinel.

Sua dificuldade quase total – o quase por causa da sua pseudo-relação com Christine, jovem aparentemente disposta a ter algo com o “estranho” e problemático Doinel – em se relacionar com mulheres é explicitada nas tentativas do jovem em sair com prostitutas e insistir em beijá-las. O beijo do título em português está longe de ser proibido, de fato; é algo roubado, em tentativa. Depois de insucessos em vários empregos Antoine se encontra e vê em uma agência de detetives uma chance para exercitar e colocar em prática todo seu potencial de voyeur em ânsia para solucionar casos externos que acabam por lhe aparecer como “trabalho”. Doinel parece deslocado em uma sociedade não acolhedora ao seu jeito de ser e pensar. A solução, então, para este ajuste se dá perfeitamente adequada através de um emprego onde seu ofício é seguir e “investigar” a vida do outro, e não a sua própria. Como pessoa não pertencente ao meio em que vive, ele transita neste ambiente com transparência e facilidade próprias de uma pessoa física e socialmente desinteressante. A agência de investigação recebe alguns casos, e Antoine é encarregado de atuar em vários deles, com sucesso. O mais relevante dos pedidos é o de um dono de loja de sapatos que vai em busca de um detetive para descobrir o motivo pelo qual seus funcionários o odeiam. Em um trecho engraçado e inspirado o contratante se antecipa logo e diz que sim, é ali mesmo que quer estar, e não em um psicanalista.

O filme carrega uma narrativa leve, até ingênua, e o faz de maneira linear, comportada e muito bem filmada, mas previsível. O envolvimento de Antoine com a perfeita e intocável mulher do dono da loja no qual trabalha, a serviço de seu chefe detetive, aponta para uma possibilidade de deslumbre em uma via de seres humanos extremos. Quando o desengonçado e não muito atraente Antoine se vê assediado por uma mulher inquestionavelmente linda, as coisas parecem obter um estranho equilíbrio. A tal da “beleza interior” é o que parece ter atraído a suposta perfeita senhora, e o futuro do suposto relacionamento fica em suspenso. Truffaut coloca seu protagonista de volta ao convívio de Christine, sua amiga e pseudo-namorada do começo da trama, e parece ter nesta volta um fim possível. O incompreendido Antoine ensaia, finalmente, um possível “final feliz”. Ao passearem em parque parisiense, muito bem enquadrado, filmado e explorado, Truffaut revela um outro personagem, anteriormente mostrado, mas de forma sutil, como um segundo detetive, um olhar externo ao de Doinel. Ao se aproximar, vomitar um texto açucarado, e ir embora, o segundo “detetive”, ou vouyer, se declara a Christine, e confessa ter passado as últimas semanas a segui-la. Sua intenção é nobre, e verossímil, mas a estranheza com que se coloca faz Christine se amparar mais fortemente no já enlaçado Antoine. Em uma sucessão de “fracassos” e tentativas frustradas de adequação em ambiente estranho, Doinel é deixado, nesta produção, em situação muito favorável. O universo de “Beijos – sim – Roubados” sinaliza uma situação desfavorável, pela qual a própria França ultrapassava, que não parece atingir seus protagonistas. A ausência de um corpo, uma voz que seja, a retratar e ressaltar o turbulento período de 68 autentica e permite Doinel ser apenas um desengonçado, não muito atraente, rapaz boêmio de uma Paris suscetível ao puro e simples amor, roubado ou não; somente ele.

“Os Incompreendidos”, por Camilla Vanessa


"Os incompreendidos" narra a história de Antoine Doinel, um garoto de 14 anos que possui uma vida conturbada; professor carrasco, pais com o casamento em crise, falta de dinheiro, falta de compreensão, além de más influencias externas. Ele entra em várias enrascadas, foge, rouba etc.. Parece não conseguir paz.

O filme começa mostrando a Paris que todos conhecem, mostrando a Paris da torre Eiffel, mas o que ele tenta mostrar em seu desenrolar é a paris comum, de cidadãos comuns, que tem problemas a enfrentar.

Nessa obra que mistura ficção e documentário, Truffaut reforça a “infância de Jean Vigo” (em referência ao diretor que nos anos 30 fez o influente "Zero em Comportamento"), uma infância não mais inocente, mas cheia de problemas e responsabilidades. Hoje pode ser visto como mais um filme de infância/adolescência perturbada, mas deve-se levar em consideração seu poder de ruptura, não foi o primeiro a trazer este tipo de tema, mas a história envolvente e a forma delicada com que o tema foi tratado fazem com que se destaque e não seja esquecido facilmente. Diferente de vários filmes que tratam dessa mesma faixa etária, Truffaut deixa o personagem se fazer entender, faz com que ações atrapalhadas não sejam mais vistas como simples frutos de “Aborrescentes com nada na cabeça”, mas sim como uma espécie de fuga, de explosão sentimental. O filme não é cômico, nem melodramático, consegue um equilíbrio entre os dois. A fotografia ainda possui aspectos “conservadores”, com planos mais longos e distanciados do que era usado por outros diretores da Nouvelle Vague. Isso garante um envolvimento um pouco aberto do público, remetendo aos filmes do neo realismo italiano, os quais traziam histórias leves sem chegarem a ser um drama, e com um certo distanciamento que lembrava o documentário.

Deve-se dar destaque a cena final, de forma sutil, bela e delicada a câmera acompanha Doinel sem ser invasiva, mas mais uma vez fazendo do público, confidentes de sua vida.

"Viagem à Itália", por Igor Calado


Realizado em meio à paixão que arrancou Roberto Rossellini de sua musa anterior, Anna Magnani, e Ingrid Bergman de sua carreira e marido nos Estados Unidos, Viagem à Itália (Viaggio in Italia) é o terceiro filme de uma intensa colaboração artística, benéfica não só para o cinema (incluindo-se aí o nascimento da atriz Isabella Rossellini, filha do casal), como também para as revistas de fofoca da época.

O affair que uniu a estrela sueca de Hollywood ao nome forte do neo-realismo italiano recebeu críticas de todos os lados: Los Angeles ressentiu-se da fuga de sua atriz predileta; os moralistas europeus e, principalmente, americanos, condenaram a pouca vergonha; os intelectuais neo-realistas viram, a cada novo filme de Rossellini com a atriz, o distanciamento progressivo do realizador em relação à ideologia inicial do movimento. E os respectivos cônjuges, obviamente, não se sentiram confortáveis com um abandono “artístico-amoroso” tornado público.

A diferença entre este e os títulos mais icônicos do neo-realismo fica evidente desde a sinopse: um casal burguês britânico, Katherine e Alex Joyce (Bergman e George Sanders), viaja para Nápoles com o objetivo de vender a casa de um parente recentemente falecido; na jornada, repensam seu relacionamento, que entra em crise. Uma descrição que certamente remete mais aos casais problemático-existencialistas do diretor Ingmar Bergman que aos temas de guerra e preocupação social que marcaram a vanguarda italiana – assuntos presentes nos clássicos do movimento, como Ladrões de Bicicleta (1948), de De Sica, e Roma, cidade aberta (1945) e Paisá (1946), do próprio Rossellini. E essa heresia artística não foi bem digerida entre os italianos.

Em sua nova fase, iniciada pouco antes dos primeiros filmes com Ingrid, Rossellini sofreu duras críticas em seu país, apesar de ter sido saudado pela crítica francesa. A diferença de recepção a seus filmes culminou com uma carta escrita pelo crítico da Cahiers du Cinéma, André Bazin, endereçada a Guido Aristarco, editor-chefe da revista Cinema Nuovo,. Intitulado “Em defesa de Rossellini”, o texto se tornou testemunho da evolução do movimento, além de famosa e inteligente defesa do diretor.
A história do casal se passa calma e lentamente, sem acontecimentos marcantes, pontuada pelas saídas turísticas de Katherine (bastante semelhantes às peregrinações sem objetivo dos personagens do diretor Michelangelo Antonioni). Desde o início da película, dirigindo nas estradas italianas, os Joyce já sentem o estranhamento que se instala entre os dois quando deslocados de seu ambiente usual. As coisas pioram pouco a pouco, a cada comentário sarcástico, repreensão, discussão – e assim o diretor disseca um casamento burguês e a crueldade que faz parte dos relacionamentos, mas também sua beleza.

Apesar da câmera acompanhar as descobertas do casal britânico no país latino (e registrar suas reações e opiniões), a direção foge do erro comum do deslumbramento estrangeiro, filmando a paisagem e as peculiaridades da região sem exotismo. Isso se dá provavelmente graças à nacionalidade italiana do diretor, cuja familiaridade com o ambiente parece estar impressa nas imagens mais que as sensações do casal em relação ao lugar.

O uso de atores hollywoodianos, falando em inglês, também poderia ser uma ponto negativo do filme, mas tendo integrado esses elementos à história com maestria, Rossellini escapa novamente de um erro comum: o emprego da língua inglesa (e de elenco “internacional”) sem nenhum fim estético, o que acaba por deixar muito claro um viés comercial da escolha. A falta tem sido freqüente no cinema contemporâneo e certamente não contribui para o multiculturalismo; no que tange a isso, Viagem a Itália parece colaborar com as discussões, mesmo sem se aprofundar no tema.

Apesar das muitas diferenças com o movimento, elementos típicos do neo-realismo são facilmente observáveis no filme, principalmente a “desdramatização”, inovação amplamente difundida dentro da vanguarda e que a caracterizou fortemente. Essa técnica narrativa pregava a ênfase nas ações dos personagens, observadas com um distanciamento crítico em detrimento ao apelo emocional, e o abandono dos elementos típicos do “espetáculo”, até então comuns no cinema italiano.

Mas essas inovações foram incorporadas somente até certo ponto, porque o neo-realismo nunca se livrou completamente dos resquícios melodramáticos, tampouco restou imune às influências do noir americano, do qual era contemporâneo. Por mais que se prezasse por uma visão prosaica do que se passa na tela, os neo-realistas não se furtaram a despertar (manipular, talvez) a tristeza ou a compaixão do público com os sucessivos infortúnios de seus personagens, como as lágrimas de Bruno em Ladrões de Bicicleta e o próprio desfecho desse filme. Nem de empregar femmes fatales aqui e ali, como em Roma, cidade aberta, e criar personagens feitos sob medida para odiar, como em Alemanha ano zero.

Em Viagem à Itália, as brigas do casal têm pouco de sua carga emocional transmitida ao espectador, que não possui identificação clara com os personagens. Rossellini prefere empregar o já citado “distanciamento crítico”: a discussão é observada mais que sentida – abordagem que continua durante todo o filme. Nota-se aí a semelhança com o estilo documental da escola neo-realista, que dava considerável importância ao registro. Rossellini tenta o mesmo, com um efeito instigante: salvo raras ocasiões, os pensamentos dos personagens são relativamente inexplicados pelo diretor, sua linha de raciocínio é, na maior parte das vezes, oculta, obrigando-nos a um complicado esforço de empatia psicológica.

No plano formal, o rompimento é maior: há um abandono da estética do documentário, que privilegiava uma imagem acinzentada e uma câmera discreta. Rossellini opta por uma fotografia com movimentos simples, mas expressivos, e a manipulação estética do contraste, incluindo excesso de luz em diversos planos. Há também planos subjetivos pouco ortodoxos, que incluem inclinações de eixo e ângulos que fazem suspeitar se o plano é realmente um ponto-de-vista. A câmera continua, entretanto, a não tomar parte na ação.

A edição também é mais elaborada, criando confusões no espectador em determinados pontos: alguns planos, separados por cortes simples e que supomos que se sucedem no tempo, na verdade escondem uma elipse de tempo que só é percebida com algum atraso – e estranhamento.

O tratamento do espaço narrativo é sofisticado: de forma tênue, o diretor cria uma correlação entre os ambientes, notadamente os pontos turísticos visitados por Katherine, e o estado interno dos personagens. À medida que o abismo entre os dois se aprofunda, a inglesa conhece lugares cada vez mais mórbidos da região, começando por museus, passando por vulcões e chegando a templos repletos de caveiras. Esse artifício conhecerá seu aprofundamento máximo na obra de Antonioni, de forma menos temática e mais visual, através principalmente da composição.

O tema do casamento em crise já prenuncia uma problemática cara ao cinema moderno: possivelmente uma maladia social do pós-guerra (talvez aquilo que Antonioni chame de “Mal de Eros”), a crise do casamento e dos relacionamentos amorosos é tema recorrente nos filmes do período, a exemplo da filmografia do cineasta “existencialista” Ingmar Bergman (sem parentesco com a atriz); das obras do já citado Antonioni, em especial A Noite (1961); e nos filmes do cinema noir, que questionava as relações amorosas e de confiança entre os gêneros.

Uma crítica sutil aos personagens burgueses também é uma questão que será bastante aprofundada no cinema europeu do pós-guerra, especialmente por Antonioni e Federico Fellini. Uma passagem numa festa, quando a personagem de Bergman se diverte em meio aos italianos e o grupo discute o dolce far niente, lembra o clássico La Doce Vita (1960), de Fellini, retrato ácido da burguesia desse período.
O sobrenome Joyce também não parece ter sido uma escolha aleatória: remete ao escritor irlandês James Joyce, pilar da literatura modernista. E o esvaziamento narrativo que Rossellini emprega – um despojamento da trama em detrimento de outros aspectos estilísticos, a conhecida “história onde não acontece nada” – é outro recurso que se tornará comum no modernismo.

Contudo, ao contrário do pessimismo que tomará conta do cinema nas décadas seguintes, Rossellini encerra seu filme com uma boa dose de otimismo e com um espiritualismo que, freqüente no resto de sua obra, é outro ponto de divergência com o neo-realismo.

Apesar de elogios de André Bazin, François Truffaut e Jacques Rivette, críticos da Cahiers que perceberam no filme o início do cinema moderno, Viagem à Itália não foi bem sucedido nas bilheterias. De todo modo, sua influência não pode ser negada e o leque de inovações temáticas e estéticas do filme faz dos realizadores modernos eternos devedores de Rossellini.

“Fahrenheit 451”, por Mariana Fidelis



“Fahrenheit 451” é um filme de François Truffaut, lançado em 1966, adaptação do livro homônimo de Ray Bradbury de 1953. Sua trama desenrola-se no futuro, num país totalitário marcado pela censura cultural em que é proibida a posse e acesso a todo e qualquer tipo de livro. Nesse contexto os bombeiros tornam-se responsáveis por cumprir essa interdição através da caça e queima das obras literárias. Nosso personagem principal, um destes bombeiros, chama-se Guy Montag (Oskar Werner), distinto inicialmente pelo trabalho dedicado, um homem calado que apenas cumpre bem suas tarefas, digno da admiração de seus superiores, prestes a receber uma promoção. Ele é casado com Linda (Julie Christie), uma mulher que passa seus dias em casa, caracterizada pela forte influência e dominação que a televisão exerce em sua vida, basicamente uma mulher alienada que reproduz os valores passados através da programação televisiva, sem questioná-los.

Os argumentos utilizados para justificar a proibição aos livros são revelados na fala do Capitão à Montag quando encontram uma das maiores bibliotecas prestes a ser incendiada: 1) os livros são histórias tristes que causam infelicidade àqueles que as lêem, e tudo isso desnecessariamente, pois são inventadas, versando sobre pessoas e situações que nunca existiram; 2) os livros trazem de certa forma desigualdade entre os homens, pois instauram um universo de vaidades e arrogância entre eles. Dessa forma os livros são perseguidos, e devem ser banidos da sociedade. A ameaça trazida pelo conteúdo literário à manutenção do sistema governamental totalitário é transferida, sem justificativa e razão, para seu material, isto é, o objeto-livro, como nos mostra a cena em que Linda ao descobrir um livro que cai do seu esconderijo joga-o para longe, num gesto de medo e nojo.

O ponto de inflexão da trama é o encontro de Montag com Clarisse (Julie Christie), jovem que instaura um espírito de indagação, reflexão, e curiosidade no bombeiro, ao perguntar se ele alguma vez já havia lido um daqueles objetos que queima. A partir daí ele passa a ler escondido os livros que furta do trabalho.

Ao entrar em contato com o universo literário, descobre algo que havia se perdido na sua vida, considerada vazia, como se os livros resgatassem sentimentos e uma noção de humanidade até então esquecidos. A partir de presenciar a cena de uma mulher que prefere morrer queimada entre seus livros, Montag depara-se com a contraposição entre a paixão e os sentimentos envolvidos no universo literário e o vazio e a frieza da normalidade e mediocridade cotidiana. Essa contraposição transparece por exemplo quando ele lê o trecho de um livro para sua mulher e amigas, acusando-as de serem zumbis (“Vocês não vivem, apenas matam o tempo!”), ou quando traz a metáfora de que “por trás de cada livro há uma pessoa”, resgatando o sentido simbólico dos livros. Quer dizer, Montag reconhece nos livros uma humanidade que não encontra nas pessoas ao seu redor.

O contato com os livros lhe rende uma mudança de comportamento não só no trabalho, mas principalmente em casa, algo que é reprovado por sua mulher, que acaba por denunciá-lo para a própria corporação para a qual trabalha. Tendo sido descoberto por seus colegas de trabalho, Montag é obrigado a queimar seus livros em sua própria casa, salvando apenas um dentro da roupa, e acaba por assassinar seu chefe, o capitão da corporação, também queimado. Dessa forma ele torna-se um foragido procurado pela polícia, mas consegue fugir graças à referência dada pela sua amiga a jovem Clarisse de um grupo de pessoas admiradoras da literatura que moram nas florestas, fora das garras do estado.

Incomoda-me um pouco no filme essa mudança radical de atitude de nosso protagonista que passa de funcionário exemplar à fora da lei. Revela-me um pouco de superficialidade na construção da personalidade do personagem, que não possui muita consistência, mudando sua atitude de um lado para outro, sem um motivo aparente muito forte (a não ser pela conversa uma vez apenas com Clarisse). De forma que, se é tolerada a passagem de bombeiro exemplar à admirador da literatura de uma hora para outra, por que não seria aceitável por exemplo que sua mulher Linda o apoiasse ao invés de denunciá-lo? Isso para mim não fez muito sentido.

A questão do controle social pelo sistema de comunicação estatal através da presença e influência da televisão na vida das pessoas, tácita durante todo o filme (por exemplo no comentário da vizinha de Clarisse, que chama atenção para o fato de todas as casas possuírem antena parabólica), revela-se finalmente na manipulação de informações quanto ao paradeiro de Montag quando, após de chegar a essa comunidade na floresta, assiste a encenação de sua própria morte na televisão. Engraçado que essa manipulação e controle sociais sejam tão claramente revelados apenas para aqueles que já estão do lado de fora do sistema.

Nossa trama se desenrola, portanto, no contexto de uma sociedade totalitária que exerce seu poder de controle social institucionalmente através da polícia e dos bombeiros, e também culturalmente através do forte sistema televisivo de comunicação. Esse cenário faz parte de uma tendência literária dos anos 50 e 60, época de uma sociedade apreensiva marcada pelo totalitarismo do mundo pós-guerra, conhecida como “distopia” – ao lado por exemplo de “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa tendência pode ser caracterizada pelo pessimismo quanto ao futuro, geralmente marcado pela presença de um estado totalitário e opressivo, baseado no controle e na manipulação social exercida pelas tecnologias sobre a vida das pessoas, e justificado no motivo de uma “ameaça constante” que deve ser combatida (seja a ameaça de outros países combatida com guerras, seja, no caso do nosso filme, na ameaça que os livros trazem para a igualdade e felicidade das pessoas).


Quanto ao formato do filme, não vejo muitas aproximações com as inovações trazidas pela Nouvelle Vague, como por exemplo a estrutura fragmentada de narração. Apesar de Truffaut ser um dos diretores mas representativos do movimento, esse filme é um pouco diferenciado dos outros talvez por ser uma ficção cientifica, ou por ter sido gravado fora da França e em inglês.

Um dos pontos que podemos destacar de proximidade em relação à outras obras da Nouvelle Vague é a questão da autorreferência, não só na dupla atuação da atriz Julie Christie, como Linda e Clarisse (o que enfatiza ainda mais a contraposição em relação a personalidade das duas mulheres), mas também pelo enquadramento dado nos livros nas cenas de incêndio, quando surge a oportunidade de fazer referencia às influências do movimento, como Sartre, os Cahiers du Cinema, ou o próprio Ray Bradbury, autor do livro que dá origem ao filme.

Do ponto de vista estético, a construção dos cenários da sociedade futurista é marcada por cores fortes, embora possamos dizer que a ficção cientifica não é o apelo mais forte do filme. A não ser pelo metrô suspenso (o que deve ter custado caro para a produção), o modelo das televisões (finas, de tela grande, pregadas na parede, com opções de interação), e pela (tosca) cena dos policiais voadores já quase no final do filme (durante a perseguição à Montag), acredito que as referências estéticas sejam muito mais atuais que futuristas, como a arquitetura das casas e as roupas das mulheres.

A afinidade com a Nouvelle Vague e que o filme tornou extremamente atual, apesar da moldura futurista, deve-se principalmente à temática. A questão da censura, da luta contra a indústria cultural e a sociedade do consumo estão presentes no filme, através do argumento de salvação da cultura humana pelos livros, sem os quais “todo o conhecimento humano desapareceria”.

É a partir daí que analisamos o desfecho da história, na relação entre cultura e memória. A literatura, e a tradição escrita em geral, surge como uma tentativa de perenizar a(s) história(s) humana(s) no tempo, porém, tendo em vista a proibição em relação aos livros, não resta outra alternativa a não ser um retorno à oralidade. Numa volta à tradição de civilizações antigas que repassavam suas historias através do falar/narrar/contar, a comunidade das “pessoas-livro” resiste pelo esforço de uma forma diferente de relação com os conteúdos da cultura, sem a mediação dos livros, mas apenas através da memória e da oralidade.

A comunidade das “pessoas-livro” isolada na floresta revela a arquitetura da sociedade totalitária e opressiva da cidade, que na interdição do acesso à cultura, do acesso aos livros, pretende o sufocamento de qualquer possibilidade de crítica e oposição ao sistema. Resta apenas a possibilidade de se localizar completamente fora dessa sociedade, viver como outsiders, que recuam e recusam o confronto direto com a autoridade. Preferem a fuga, e ficam a espera do dia em que possam reproduzir aqueles textos que memorizaram fielmente para que sejam impressos de novo. Por isso, no comentário ao filme, Truffaut destaca o caráter do elogio à astúcia que perpassa o filme:

“Não pretendi transmitir qualquer mensagem, mas apenas mostrar uma forma de luta contra a autoridade arbitrária. [...] Sou contra a violência e a intolerância porque elas significam confronto. [...] Se quero alguma coisa, o meu desejo é tão intenso que não perco tempo com discussões. [...] Para mim, quem substitui a violência é a fuga, não a fuga do essencial, mas a fuga para se obter o essencial. Creio ter ilustrado isso em ´Fahrenheit 451´. É um aspecto do filme que escapou a todo mundo e me parece importante: a apologia da astúcia. ´Ah, então os livros estão proibidos? Então, muito bem, vamos aprendê-los de cor´. É o supra-sumo da astúcia.” (Truffaut, 1966, disponível em: )

A título de opinião pessoal sobre a obra, “Fahrenheit 451” é por fim um filme que recomendo não só pelo seu caráter político, mas principalmente por seu caráter poético na representação de um amor à literatura e à cultura do livro impresso, que perde cada vez mais seu espaço para outras formas de divulgação, em especial no meio digital.