sábado, 26 de junho de 2010
Uma noite nada difícil com os Beatles (A hard day’s night, Inglaterra 1964), por Renata Monteiro
Música e cinema nem sempre foram irmãos, mas quando a união surgiu ambos lados se beneficiaram. O cinema ficou mais dinâmico e a música encontrou um aliado para sua disseminação. Sendo dois dos mais populares meios de entreterimento, o cinema e a música criaram uma ligação muito forte e hoje imprescindível. De todos os gêneros musicais, o que mais se destacou dessa aliança foi o rock. Desde os papéis de Elvis Presley à filmes como “Pink floyd the wall”, o rock’n roll desfrutou do meio cinematográfico. Os Beatles foram a maior banda de rock de todos os tempos, e é claro eles não ficaram de fora das telonas. “A hard day’s night” (Os reis do iê iê iê, título no Brasil) é um filme do diretor Richard Lester, e o primeiro de sucessivos filmes que comporiam o lançamento de seus áluns homônimos (“Help” é um exemplo, que foi dirigido também por Lester).
Esses filmes teriam como intuito a promoção do álbum, de todas as músicas nele contidas, e da própria imagem da banda. Esse recurso foi muito usado na época, e não se restringia aos Beatles. Mas não só de intenções publicitárias se fez o filme, além de se tornar uma espécie de docuficção do “Fab Four”, o filme é considerado um marco na história do videoclipe.
No roteiro de Alun Owen (conterrâneo dos integrantes da banda), é relatado de uma maneira fictícia, o que se tornou a realidade da vida de John, Paul, George e Ringo após a fama e fenômeno que veio com ela, a “beatlemania”. Muitos fãs histéricos surgem na cena inicial, ao som da trilha principal “A hard day’s night”, correndo atrás dos Beatles. Essa cena ficou bastante conhecida, pois vemos os quatro rapazes fugindo da histeria de uma maneira muito engraçada. Além desse momento, o filme por completo possui esse tipo de números musicais, diegéticos ou não. É ai que encontramos sua relação com o videoclipe, por muitas vezes se esquece do filme e imerge-se no universo dinâmico videoclipe.
Elementos fundamentais do conceito de videoclipe surgiram com esse filme, um exemplo são as cenas de apresentações do grupo. O show é filmado por diversas angulações, e isso é utilizado até hoje para videoclipes de bandas em shows. Richard Lester chegou a receber um prêmio da MTV, o intitulando de “pai do videoclipe”. Ainda no enredo, o roteirista coloca os quatro rapazes numa jornada de Liverpool à Londres, onde eles terão de fazer de tudo para escapar do assédio dos fãs. Eles estão viajando de trem, e lá encontram com o personagem do avô de Paul MacCartney. John MacCartney é um “little old man”, que traz boa parte da comicidade ao filme, ele é o responsável por criar diversos conflitos. Segundo seu neto ele é um “vilão e causador de confusão”, além de tentar vender clandestinamente fotos autografadas da banda, ele influencia Ringo a aproveitar mais a vida e o rapaz é preso, e quase perde a apresentação ao vivo para a tv, na qual o grupo ia participar. O motivo da viagem é essa apresentação na tv que o grupo foi convidado.
Então, são retratados quase dois dias da vida dos Beatles, com muitas confusões, garotas e música. Nesse convite à intimidade dos rapazes descobrimos o estilo individual de cada um. Os Beatles são retratados como quatro rapazes descontraídos e com uma ligeira tendência a arrumar confusão. O grupo garante que tudo o que foi representado no filme, corresponde ao universo deles, e muitos dos diálogos da narrativa surgiram a partir de conversas originais, principalmente o caráter surreal presente neles.
O filme possui um tom irreverente, ocasionado por vezes pela banda e também pela direção de Richard Lester, bastante dinâmica e inserida no contexto da Swinging London. Numa cena em está havendo uma coletiva de imprensa com a banda, uma jornalista pergunta a Ringo se seu estilo é “moderninho” ou “rocker”, e ele responde que ele é um “mocker”, isso é uma crítica a imprensa da época que sempre rotulava a cultura. No momento em que Londres passava por transformações culturais, “A hard day’s night” afirma aquele espírito vigente na época, o de revolução cultural. O filme causou muito sucesso e hoje é uma referência, por criar essa “nova gramática”, aos filmes do gênero. O legado de “A hard day’s night” é extenso, muito se lucrou com o filme, não em termos comerciais (nem ao fato de George ter conhecido nas filmagens sua futura esposa), mas à importância do filme para o cinema e a música, para época, para outros dispositivos audiovisuais, e, sobretudo, como um registro da banda em uma forma recordação aos fãs dos Beatles, que até hoje reforçam, não mais de uma maneira histérica, a “beatlemania”.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
A loucura hereditária, por Milena Wanderley
“Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
Cecília Meireles
A infância é a fase da vida que nos traz as lembranças mais doces, e esse sabor perdura dentro de nós até perdermos a inocência que habita a criança. Entretanto nem todos temos a oportunidade de provarmos desse mel, a vida muita vezes pode nos ser amarga desde sua epigênese e as lembranças dos tempos em que sonhos pairavam como bruma diante dos olhos infantis passam a não ser características constitutivas das crianças, e elas, quando crescem, parecem abrir grandes olhos pra dentro de si, porque quando não se conhece o sonho passa-se a vivê-lo sem consciência de que o é, assim surge o não-convencional, as diferenças de olhares sobre a vida que, para aqueles que não habitam o plano do onírico, é difícil de ser reconhecido, pois olhos já estão viciados pelos padrões estabelecidos pela sociedade moderna, industrializada, capitalista, pesada.
Ao contrário de mel, Jô prova do chumbo, e tal peso aparece metaforizado em várias cenas, mas como estamos no começo desse humilíssimo comentário acerca da obra de Richardson, será conveniente nos trazer a primeira passagem em que ela, numa escola tradicional para meninas inglesas, aparece desajeitada tentando segurar uma bola que não lhe para nas mãos como fosse sua própria vida escapando por entre os dedos.
A testa franzida, o olhos grandes, claros e profundos, o rosto redondo, o corte de cabelo desajeitado e andrógeno, a boca pequena e os dentes curtos montam uma expressão de opressão diante da infância perdida, Jô é quase o “EU” escondido de todos aqueles que sofreram algum tipo de violência na infância e tem que lidar com tal fato pela vida inteira.
Ela e a mãe se suportam e vivem um relacionamento doentio de inversão de papéis e valores, em que Jô não tem direito de viver o que é natural para as meninas de sua idade. Ela, sem identidade ou referência, vive o onírico para fugir do real e em sua carência deixa-se possuir pelo primeiro que lhe parecera o príncipe encantado, e faz-se assim por reprodução: a filha que rejeita o comportamento da mãe, mas ao mesmo tempo o reproduz em um complexo de Electra sem referências masculinas. E a genialidade de Richardson neste filme reside na sutileza das intenções, nas entrelinhas dos diálogos, na trilha sonora infantil que junto às imagens remete ao paradoxo que era a vida de Jô com a sua mãe, uma personagem muito bem construída que traz a referência à vontade de ser eternamente jovem.
A omissão e a boemia são substantivos que definiriam bem as iniciativas de Helen, mulher madura que aceita um casamento em que o companheiro rejeita sua filha, que, por sua vez, passa a viver sozinha, sem a presença física da mãe, já que a psicológica se tinha ido embora junto com a palavra “mãe” que Jô não pronunciava.
Uma das cenas que mais sinalizam a inversão de valores é a que Jô acompanha sua mãe e o pretendente dela, Sr. Smith, ao parque de diversões. Os exageros das expressões dos atores nas cenas, as risadas de boca aberta, o andar por vezes cambaleante e as muitas pernas caminhando em uma mesma direção remetem à ilogicidade da vida de Jô que mesmo em ambiente destinado ao divertimento aparenta fragilidade e tristeza, se comporta como a criança que era mas não tinha direito de ser, enquanto sua mãe esbalda-se junto aos outros adultos nas atrações do parque; e é neste dado momento que sua mãe a deixa de vez, pois diante das infantilidades de Jô, o Sr. Smith pede a Helen que escolha entre ele e sua filha. Assim, a menina perde a única referência de mulher que tinha.
A incerteza, o não estar, a ausência e a superficialidade dos desejos são tônicas do enredo de A taste of honey, o fato de Helen estar sempre se mudando e ausente na vida da filha leva Jô a um espaço de nulidade que permeia suas atitudes e olhares diante das paisagens que se colocam a sua frente, pois não são poucas as tomadas em que a cidade é mostrada pelo prisma das mazelas causadas pela industrialização, uma delas caracterizadas, inclusive, na vida da personagem principal que está à margem da sociedade, tudo aparenta estar virado de cabeça para baixo em uma bagunça que parece não mais ter possibilidade de ser ordenada; vive-se um caos interior que é amenizado em Jô através do pouco cuidado que o marinheiro tem para com ela, porque quando não se tem quem se cuide, até um olhar de mais de três segundos pode convencer um coração perdido, e um carrinho ou um anel são sinais concretos suficientes para convencê-la de que o marinheiro a amava, assim Jô se entrega.
Ao entregar seu corpo ao marinheiro que vai embora e sua mãe abandoná-la a própria sorte, Jô encontra um emprego numa sapataria e se muda para uma casa construída com madeira, contudo bem maior do que o quarto que dividia com sua mãe, e ao vender um sapato conhece Geoff, garoto afetado que a convida para ir ao parque de diversões, nesta oportunidade ela se diverte e até ganha um peixinho que leva para casa. Agora ela é “um peixe dentro d'água” e compartilha de sua realidade com quem ela escolheu para o fazer. Ao perceber que Geoff não tinha para onde ir, o convida para acompanha-la e entrar na sua casa e, desajeitadamente, o convida para morar com ela já que ele também se encontrava numa situação de exclusão; ambos procuravam quem quisesse bem um ao outro, assim Geoff e Jô passam a viver como irmãos.
A natureza feminina também é questionada na obra de Richardson, pois insistindo na simbolização dos valores que são invertidos, Jô aparece agora grávida do marinheiro que foi embora, completando o quadro de marginalização que se agrava ainda mais quando ela sente medo de que a criança que carrega tenha algum tipo de alteração genética. A impressão é a de que Jô acredita, desde o início do filme, ser consequência da “loucura” de sua mãe como se seu estado mental fosse hereditário, uma carga genética que destinava suas ações re produtivistas. Desta forma, quando Jô via a criança com síndrome de down, enxergava a si mesma e sentia medo de que o bebê que carregava tivesse o mesmo destino que ela. Entretanto, é nesse momento de confusão interior que Jô parece ter encontrado sua identidade, são nesses espelhos de imperfeição que ela encontra o sentido de si mesma, e um desses reflexos é transmitido por Geoff que passa a se responsabilizar por ela, e embora o ciclo se repita como brincadeira de roda, com a volta de sua mãe que havia sido expulsa do casamento, Jô parece encontrar-se novamente na infância, e na última cena, em que ela desce da casa para Procurar Geoff que havia sido expulso por Helen, ela acende uma estrelinha e se comporta como a criança que ficou perdida dentro dela mesma diante dos fatos que marcaram o seu relacionamento com sua mãe.
Com um final aberto, Richardson, incita-nos ao questionamento e a imaginação, porque o que parece ter prioridade em A taste of honey é a expressão de inquietações universais, característica que torna seu discurso atual e arrebatador para aqueles que são mais sensíveis às vozes interiores independente do gênero de tal voz, todas as cenas podem dizer muito para quem tem os olhos libertos dos vícios de discursos alheios, por isso antes dos rótulos e do discurso pré concebido precisamos ter o visionarismo do experimento, deixando-nos ao sabor do novo, mesmo que para nós o sabor seja amargo, mesmo que diante dos espelhos significados em Jô tenhamos que minguar os nossos egos ocupando os espaços de nulidade diante das forças que o homem pensa que controla.
A Inglaterra de Austen, por Annyela Rocha
Jane Austen escrevia estórias de mulherzinha, definitivamente. Refinadas, irônicas, críticas até, mas todas mamão com açúcar, românticas, com um toque de drama e enredos extremamente parecidos. Ainda assim, é um dos nomes femininos mais marcantes na literatura mundial. Seus clássicos como Razão e Sensibilidade, Persuasão e Orgulho e Preconceito inspiram roteiros e releituras até hoje. Ultimamente, por exemplo, a moda é adicionar monstros e lutas nos romances da inglesa – e assim foram lançados Sense and Sensibility and Sea Monsters e também Pride and Prejudice and Zombies.
Mas vamos deixar as criaturas bizarras de lado. Vamos voltar para as estórias de mulherzinha. Vamos falar de Keira Knightley e de um Mr. Darcy lindo interpretado por Matthew MacFadyen. Estamos pensando então no filme Orgulho e Preconceito, de 2005, dirigido por Joe Wright. Segunda adaptação do livro para filme, o trabalho de Wright marca sua estreia como diretor em cinema.
A saga da família Bennet é, em suma, a mesma de outras famílias criadas por Austen: filhas pobres da área rural que veem num casamento a chance de suas vidas. E o casamento não é só oportunidade, mas necessidade. Essa temática escolhida por Jane Austen servia para criticar os costumes ingleses do século 18. No filme a crítica irônica da autora se revela, mas não chama muita atenção. Wright se centrou mesmo foi no amor iminente entre o casal principal da trama.
Elizabeth Bennet, interpretada por Keira Knightley, é a protagonista que acaba encantando o ricaço Sr. Darcy, apesar da rejeição inicial que os dois têm um pelo outro. Assim como Meg Ryan e Tom Hanks já discutiram em outro filme de mulherzinha (You’ve got mail, dir. Nora Ephron, 1998), nunca saberemos ao certo quem é o orgulhoso e quem é o preconceituoso no romance. Fato é que os dois personagens são orgulhosos e os dois se rejeitam reciprocamente antes de se conhecerem.
Nessa atuação que rendeu a primeira indicação ao Oscar para Keira, ela consegue transmitir com perfeição a inconstância dos sentimentos de Elizabeth. E cumpre bem o desafio da personagem de transparecer para o público sua paixão por Darcy ao mesmo tempo em que esconde de si mesma esses sentimentos. Mostrar sem deixar escancarar, querer e esconder. Além de mostrar a teimosia constante da personagem. A atuação de MacFadyen também é muito boa, dando vida ao quase sempre inexpressivo Darcy, que de tanto esconder os sentimentos aparenta ser uma pessoa fria, sem sentimentos. Apesar de não haver nenhum beijo entre o casal (com exceção da cena do final alternativo, nos extras do DVD), a química entre os dois é excepcional.
A direção de fotografia de Roman Oshin acentua ainda mais essa questão sentimental. Planos detalhes de pequenos gestos, como o toque entre as mãos dos dois quando inesperadamente Darcy ajuda Elizabeth a subir numa carruagem, dão paixão ao filme. Pequenas trocas de foco entre primeiro e segundo planos são outra constante que dão um ar gracioso à narrativa. E, obviamente, as belas paisagens nas tomadas externas, que realçam o patrimônio inglês, retratando a Inglaterra antiga. A ideia de patrimônio é firmada principalmente através das grandes casas rurais, do castelo da família Darcy, da igreja e do belo cenário em que o Mr. Darcy se declara para Elizabeth pela primeira vez.
Para completar esse retrato dos costumes ingleses de época, a direção de arte e o figurino são impecáveis, embelezando ainda mais a fotografia e criando ambientes detalhados e fiéis. A trilha sonora também é marcante, mas não chega a ser exagerada, apenas destacando discretamente os momentos chave do crescente amor entre o casal de protagonistas.
Orgulho e Preconceito não é tão doce quanto os romances norte-americanos, conseguindo manter o ritmo apesar das duas horas de duração. Muitos dos diálogos são uma transposição exata do livro de Austen. Pode não ser a adaptação preferida dos ingleses, nem a definitiva, mas ainda assim uma das mais belas e esteticamente bem acabadas.
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"Narciso Negro", por Ramon Dias
A mocinha delicada, o galã charmoso, a vilã ciumenta, e uma locação exótica: bata tudo isto no liquidificador, e você terá um típico melodrama americano. Ou pelo menos deveria. Michael Powell e Emeric Pressburger acrescentam a esta receita um pouco da peculiaridade (para não dizer estranheza) característica de seus filmes, e o que sai do forno chama-se Narciso Negro. Apesar de utilizar dos arquétipos e clichês típicos do gênero, essa produção britânica de 1946 acaba fugindo a regra geral, na medida em esses arquétipos são desvirtuados e explorados de uma forma pouco comum pela dupla, tornando o filme um dos mais importantes dramas para a história do cinema inglês.
Baseada no romance de Rumer Godden, a história gira em torno de um grupo de freiras que recebe a missão de transformar uma construção no alto do Himalaia em um convento. A construção, doada por um general indiano, outrora fora um harém e ainda preserva resquícios dessa época nefasta, como gravuras à lá Kama Sutra e uma velha criada hindu, saudosista dos “velhos tempos”. A mocinha é aqui personificada na irmã Clodagh (Deborah Kerr), recém promovida a Madre Superiora, e encarregada de supervisionar a árdua tarefa. Inexperiente, tenta agarrar-se com unhas e dentes na fé e na doutrina de sua Ordem, ao passo em que a própria natureza do lugar vai, pouco a pouco, trazendo a tona lembranças e sentimentos há muito esquecidos.
Para ajudá-las no processo, o general designa seu agente e faz-tudo, o inglês Sr Dean (David Farrar). Homem desprovido de bons modos, o Sr Dean é, no entanto, possuidor de um certo charme britânico, o que me lembrou, a grosso modo, uma espécie maltrapilha de James Bond. Seu iminente interesse e admiração pela irmã Clodagh irá despertar um ciúme doentio na mais reprimida das freiras, a irmã Ruth (Kathleen Byron), ciúme este que servirá de mote para o clímax da trama.
Como um personagem próprio, o ambiente adquire uma importância fundamental.
Fotografado em Technicolor, o cenário de cores vívidas contrasta com o monocromatismo de um meio de vida de repressão e omissão de sentimentos e emoções. Gradativamente, a crença em uma doutrina de negação de prazeres vai sendo abalada, e as freiras fragilizadas não tardam em sucumbir à atmosfera local. Como exemplo dessa tendência expressionista, há uma cena onde a irmã Ruth aparece sem o hábito, maquiada e com um batom vermelho vivo. Mais uma vez, as cores fortes são utilizadas como uma forma de expressar desejos reprimidos. Vale acrescentar que, devido a este bem elaborado trabalho de composição visual, o filme levou para casa duas estatuetas do Oscar, com as categorias de Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte, de, respectivamente, Jack Cardiff e Alfred Junge.
Em síntese, Narciso Negro é um filmes sobre fracassos. Primeiramente, o fracasso na tentativa de sobrepor uma religião hegemonicamente sobre outra. Talvez seja este um reflexo do próprio processo de colonização do império britânico, que, assim como qualquer outro país imperialista, tenta impor suas crenças e costumes aos povos “primitivos”, e se deparam com uma sociedade fortemente enraizada com princípios religiosos distintos e, muitas vezes, antagônicos. Do mesmo modo, esse pequeno grupo de freiras católicas chega a uma comunidade hindu na tentativa de converter seus habitantes, mas têm suas expectativas frustradas, pois estes (com exceção do pomposo sobrinho do general, que demonstra grande curiosidade pela vida de Jesus Cristo, e o que o leva à questionamentos bastante curiosos), não apresentam grande interesse pelo cristianismo. Talvez o personagem que mais sintetize esse conflito seja o Homem Santo, que fica sentado em silêncio sobre um monte próximo ao castelo, faça chuva ou Sol. Apesar dos esforços, as freiras não conseguem fazê-lo mover um músculo ou dizer uma palavra.
Em segundo lugar, o fracasso em conter as próprias emoções. Adeptas da Ordem das Servas de Maria, as irmãs dedicam-se ao trabalho duro como um meio de afastar-las dos prazeres mundanos da vida. Entretanto, ao entrarem em contato com essa cultura diferente e sedutora, vão cada vez mais deixando-se envolver pelos encantos quase místicos do lugar. Todas aparentam ter sofrido alguma espécie de desilusão num determinado momento de suas vidas, o que as teria feito procurar a Ordem no intuito de, através de sua doutrina, esquecer desse momento infeliz. O que, na verdade, só fica claro a respeito da irmã Clodagh, quando um noivado mal-sucedido é mostrado através de flash backs. As freiras são afetadas ao ponto de questionarem a própria vocação, chegando ao radicalismo com o já citado exemplo da irmã Ruth.
Desse modo, Powell e Pressburger acabam criando uma espécie de ET na cinematografia inglesa, pois enquanto os filmes de guerra e de escola das décadas de 1930 e 1940 pregavam um “british way of life”, Narciso Negro vem nos despertar para as nossas falibilidades enquanto seres humanos, e mostrar que, apesar de parecer uma fantasia agradável, nós nunca estaremos sobre o controle de nossas vidas.
“Fahrenheit 451”, por Bruna Belo
Uma voz em off narra os créditos de abertura, enquanto é mostrada uma sequência de imagens, em diferentes cores e ângulos, de diversas antenas de televisão o que nos remete a câmeras de vigilância. É assim que se inicia o filme Fahrenheit 451, do diretor francês François Truffaut.
Talvez por ser o seu primeiro filme em língua inglesa, ou por ter sido produzido na época em que Truffaut estava organizando o seu livro de entrevistas com Hitchcock, de quem era fã assumido, Fahrenheit tem algumas referências a este. Entre elas, a trilha sonora marcante, composta por Bernard Herrman – parceiro de Hitchcock em diversos filmes –, e as cenas de ação, nas quais Truffaut peca, não conseguindo atingir a tensão necessária. Justamente por se desviar do que ele estava acostumado a fazer, muitos críticos dizem que este é um filme menor, que não atinge o nível de genialidade do diretor.
Baseado no livro homônimo de Ray Bradbury, é ambientado em uma sociedade totalitária que proíbe qualquer tipo de leitura por considerá-la causadora de infelicidade. Os livros devem ser queimados, todos! Ironicamente, os responsáveis pela destruição destes são os bombeiros – o título vem daí, 451 é a temperatura em fahrenheit em que o papel entra em combustão.
O foco da narrativa é a transformação do bombeiro Guy Montag (Oskar Werner) de destruidor à amante dos livros. Ele tem uma vida normal – porém vazia, como todas as pessoas a sua volta –, um trabalho de destaque e um casamento estável com Linda (Julie Christie). Sua mulher é um perfeito exemplo da população desta sociedade, ela é fútil e viciada em pílulas e na televisão interativa.
Além de Linda, Julie Christie interpreta outra jovem também diretamente ligada ao protagonista, Clarisse. Enquanto a primeira é alienada e dominada pelo Estado, a segunda é consciente e intelectualmente livre. Uma é o inverso da outra. Como se fossem histórias paralelas, é mostrado os dois possíveis caminhos que uma pessoa (ou sociedade) pode percorrer, optando ou não pela cultura e liberdade intelectual. Esse duplo papel rendeu a atriz uma indicação ao BAFTA, em 1967.
A vida de Montag começa a mudar quando ele conhece Clarisse em um encontro casual no metrô. Através de alguns questionamentos, ela desperta nele a curiosidade sobre os objetos proibidos, a partir daí, ele começa a roubar e ler alguns dos livros que deveria queimar. Com as leituras, ele muda, passa a desacreditar totalmente no sistema
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Mães, filhas, negros e gays, por Annyela Rocha
Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, dir. Tony Richardson, 1961) conta a história de Jo. E Jo não é bonita. Jo não vive bem. Jo não está buscando um grande amor. Ela é apenas Jo. Não é rica. Não tem relacionamentos ideais. Tem uma mãe complicada. Um amigo de verdade. Uma gravidez indesejada. Ela é Jo e ela é real.
Relacionamentos entre mães e filhas nem sempre são perfeitos. Alguns envolvem sensações como abandono, fracasso, tristeza ou até ciúmes. No caso de Jo (Rita Tushingham), ela muitas vezes abandona o papel de filha para orientar a própria mãe, Helen (Dora Bryan). As brigas entre as duas caracterizam ambas as personagens como reais, possíveis. Além de constantes, ocorrem com diálogos bem escritos, instigantes, garantindo o enquadramento do filme no gênero de kitchen sink drama: a narrativa possui conflitos familiares, domésticos, desenvolvidos através de um realismo social, destacando a classe operária.
Apesar dos problemas com a mãe ausente, promíscua e festeira, Jo segue sua vida com uma aparente leveza. A interpretação de Rita também traz um ar de inocência para Jo, que por vezes beira a infantilidade. Isso inclusive é um dos pontos em que Um Gosto de Mel toca constantemente: a necessidade de amadurecer antes da hora, o peso da ausência de bons exemplos dentro de casa no decorrer desse processo, a perda da pureza, os conflitos juvenis. O contraste entre vida infantil e vida adulta é realçado ainda pela presença, ao longo de todo o filme, de crianças brincando em vários locais da área industrial onde Jo vive.
Todos os integrantes da narrativa vivem à margem de uma sociedade ideal, principalmente de uma sociedade ideal da década de 1960. Helen, a mãe, não cuida bem de Jo, bebe, saí muito e acaba se casando numa idade não muito comum para a época. Jo se relaciona com um marinheiro negro – e essa relação por si só podia ser um choque tanto dentro da diegese quanto para o público espectador. Depois da partida do marinheiro, Jo divide sua casa com um amigo que tem tudo em comum com ela, é atencioso, cuidadoso, supre as necessidades de uma figura masculina em sua vida, mas é gay.
Muito acontece na vida de Jo, entretanto no fim das contas nada parece mudar muito, o que mantém o toque de realismo através da falta de muitas perspectivas. Assim Richardson construiu um retrato de uma classe, partindo dos dramas familiares e completando tudo com um toque de choque cultural e escândalos sociais. E o retrato se encaixa perfeitamente no contexto das ruas sujas, dos becos e docas mostrados na fotografia naturalista de Walter Lassally. Um Gosto de Mel pode ser considerado, então, e sem exageros, um dos melhores filmes do cinema britânico.
Narciso Negro (1947), por Juliana Ribeiro
“Há uma atmosfera na região que exagera tudo”. Esse foi o motivo pelo qual Dean não queria um convento em primeiro lugar. Os motivos de Dean e a forma como são colocados em cena os personagens mostram claramente seu machismo, achar que as mulheres seriam as mais afetadas pelo confinamento numa região estranha, exótica e distante. O que no filme não deixa de ser uma verdade.
Narciso Negro, inspirado no livro de mesmo nome, dos diretores Michael Powell e Emeric Pressburguer, narra a trajetória de cinco freiras anglicanas que são levadas a montar um convento no Himalaia. Todas são perturbadas de algumas forma pela região, mas duas delas são praticamente levadas à loucura pela presença de Dean, que aparece como uma presença masculina ameaçadoramente sensual, que deixa dúvidas no espectador se ele busca realmente ou não um relacionamento com alguma das freiras.
A atmosfera exótica não combina em nada com a aparência delas, sempre com lábios rachados, muito pálidas e com olheiras acentuadas. A ausência de cor delas é sem dúvida o maior contraste com a região, que é indubitavelmente sensual. Narciso negro é o nome do perfume que um general, aluno das freiras, sempre carrega consigo, fragrância esta que as perturba. Talvez este aluno e Kanchi (uma das alunas) sejam a materialização de toda a sensualidade ao redor das freiras. Kanchi, sempre arrumada, com tornozelos a mostra e olhares arrebatadores, quer ter um marido e vê na presença do general um pretendente em potencial. Tudo parece divergir da vida casta que freiras buscam. No decorrer do filme elas se deixam envolver muito mais por essa “atmosfera”, pelo vento sempre presente que parece querer abalar as estruturas dessas personagens.
Mas o que o filme traz de mais especial seria o olhar exótico do próprio exótico. Os personagens são introduzidos como colagens deles mesmos, quase didaticamente, são nos apresentados e suas possíveis fraquezas. A irmã Ruth, no entanto, é a única que não é apresentada de maneira primária, provavelmente para criar a expectativa de uma personagem que não vai mudar muito de no decorrer da narrativa, mas sim se mostrar.
Mas Narciso Negro é envolvente principalmente por conta dos trabalhos belíssimos dos atores. Talvez algumas cenas pareçam estranhas não pelo diálogo ou pela atuação, mas por escolhas estéticas da direção, que preenche o filme de bizarrices, que são ao mesmo tempo dramáticas e hilárias. Enfim, cheio de surpresas.
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“Cul-de-Sac”, por Yuri Assis
Cul-de-sac é uma expressão catalã que quer dizer beco sem saída. Pois bem, é exatamente isso que significou o tempo inteiro a película de Roman Polanski, de 1966. O enredo, tragicômico, dialoga com duas peças do teatro do absurdo: “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett, e “Feliz Aniversário” de Harold Pinter. Essa influência fica clara na atmosfera esquizofrênica na qual o filme está imerso.
“Cul-de-Sac” vem após o sucesso de “Faca na Água”, de 1962, e “Repulsa ao Sexo”, de 1965. Polanski ali contava, portanto, com um orçamento firmeza, deixando em segundo plano preocupações com bilheteria. Foi esta a oportunidade de realmente experimentar a linguagem que lhe conviesse.
Os personagens são poucos: George (Donald Pleasence, que interpretaria mais adiante o arqui-inimigo de James Bond no “You Only Live Twice”), ex-empresário inglês, que largou os negócios e se divorciou de sua esposa Agnes para se isolar do mundo num castelo do século XI na ilha de Lindisfarne (leia-se meio do nada), costa nordeste da Inglaterra; Teresa (Françoise Dorléac), sua noiva francesa, tipo nouvelle vague, ar blasé, paquera constante, personificação do haikai de Leminski "não discuto / com o destino / o que pintar / eu assino"; Dickie (Lionel Stander), gângster que foi atingido no braço num tiroteio; Albie (Jack MacGowran), parceiro de Dickie, com um tiro na barriga e a morte no encalço; e Katelbach, líder da gangue, que embora não apareça em momento algum, acaba tendo importância ao prometer buscar os bandidos.
O jazz de Krzysztof Komeda, responsável pela trilha sonora, se encaixa numa boa com o tom de deboche. "Cul-de-Sac" é exatamente isso, um grande deboche. Satiriza franceses, ingleses, americanos, gângsteres, esposas, maridos, empresários, famílias, filhos, pais, mães, irmãos. Inclusive, rola uma crítica velada à sociedade britânica na cena em que parentes de George vão visitá-lo sem avisar.
São uma família: um pai, uma mãe, um filho e mais dois parentes, o filho uma peste, os pais condescendentes. O menino risca um dos discos de Teresa, ela lhe puxa a orelha, ele a chama de cadela, o pai pergunta "quem lhe ensinou a falar assim?", o menino responde sem titubeio "mainha ensinou" e o pai dá a contrapartida "pois então você tem que aprender a mentir". O pessoal da Grã-Bretanha definitivamente não é levado a sério; George e seus parentes ingleses são todos subservientes.
Apesar dos trechos risíveis, fazem parte de “Cul-de-Sac” questões existenciais e um completo descrédito pelo sujeito homem. É como se designa em catalão: um beco sem saída. É distópico, tem esperança nenhuma. Dickie não vai ser resgatado por Katelbach, Albie vai morrer, George tem nem sombra de sua fortuna. Futuro aqui não se sonha nem se pressente nem se adivinha. É para assistir rindo da desgraça alheia. Polanski é olhar de desdém, prováveis marcas do teatro absurdista. Quem sabe não é por isso que Teresa, a blasé, a irônica, é a única que se salva, fugindo com um cara da família de George, que voltou à ilha para buscar sua espingarda.
“Cul-de-Sac” termina assim: George, totalmente sozinho, corre para dentro do mar, sobe numa pedra, senta, chora e chama por Agnes, a ex-mulher. A maré está enchendo e logo já não haverá como voltar para o castelo. Polanski, então, dá a cartada final: fechadas todas as entradas, fechadas todas as saídas.
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"A dança dos vampiros", por Lucas Freire
É difícil acreditar que "A Dança dos Vampiros" tenha como diretor Roman Polanski. O principal motivo para se pensar isto: a temática sobrenatural em tom de comédia. O filme trata de basicamente, uma dupla de pesquisadores que vão para terras longínquas da Transilvânia à procura de evidências que comprovem a existência de vampiros. Mas logo vemos a marca autoral a partir da abordagem totalmente irônica sobre o tema. O filme é carregado de ironias, de humor negro e de críticas à sociedade, como em, muitos outros de seus filmes, como "O Inquilino" ou "Cul de sac".
Com o nome original de "The Fearless Vampire Killers or: Pardon Me, Madam, but Your Teeth Are in My Neck", o filme narra a chegada de uma dupla de pesquisadores, formada pelo o Professor Abronsius e por Alfred, num vilarejo da Transilvânia, onde eles têm indícios e estudos que comprovam a existência de uma forte manifestação de humanos sugadores de sangue, os ditos vampiros.
O Professor Abronsius, um ancião atrapalhado, tem como objetivo descobrir a todo custo se realmente os vampiros existem. Em vários momentos do filme, o Professor arrisca a sua vida e a de seu assistente (Alfred) para tentar achar alguma pista da existência desses seres noturnos. Já o jovem e medroso Alfred, é estritamente fiel ao seu mentor, porém a falta de coragem lhe é grande, e infelizmente, ela é testada diversas vezes na trama. Estes testes à coragem do assistente Alfred nos garantem boas risadas, tornando o filme mais leve da temática, a princípio, obscura.
Logo com a chegada da dupla no vilarejo, eles são recebidos por uma família, dona de uma espécie de pensão, e ficam hospedados nela. A família é composta pelo patriarca Shagal, um velho carrancudo e sem vergonha, que trai a mulher descaradamente. Rebecca, a volumosa esposa de Shagal, cujo seus gritos excessivos e estridentes nos irritam logo no início do filme. E terminando de formar a família, temos a Sarah, linda, jovem, ruiva e sedutora (interpretada de mulher de Polanski, Sharon Tate, que seria brutalmente assassinada por Charles Mason apenas dois anos após esse filme), que basicamente, assume esses papéis no filme. Na pensão, ainda se encontra uma serviçal da família, Magda, que é constantemente alvo dos olhares “maldosos” do patriarca da casa. Ela, curiosamente, também tem os mesmos atributos que Sarah, com uma leve exceção, possui as madeixas loiras.
No primeiro encontro entre Alfred e Sarah, se percebe que os dois sentem atração um pelo outro e que isso será um bom motivo para ele tomar certas atitudes no decorrer do filme. Shagal tem um grande receio de que algo aconteça com sua querida filha, pois bem sabe ele que Sarah possui dotes desejáveis por qualquer vampiro. Sim, toda a família sabe da existência de seres noturnos por aquela redondeza e mesmo tendo em sua casa alhos e crucifixos espalhados por toda parte, fazem questão de negar este fato para a dupla de pesquisadores.
Pois bem, o esperado acontece: Conde Krolock, o típico vampiro da década de 40, captura Sarah, deixando toda a família desesperada. O Professor Abronsius, sedento por indícios que provem a existência de tais criaturas, e Alfred, motivado claramente no resgate da donzela em perigo, partem rumo ao castelo onde reside o Conde. Na chegada da dupla, eles são recebidos por Koukol (pasmem!) um ajudante corcunda, com dentes aparentemente tortos e que se comunica por grunhidos! Na apresentação dos dois viajantes ao Conde Krolock, ele se surpreende com o fato do Professor Abronsius ser o autor de um dos seus livros preferidos, e com isso, além de pedir um autógrafo, os instala em seus cômodos com a boa hospitalidade pouco conhecida entre esses seres, principalmente quando suas vítimas são homens. Na ocasião, eles também conhecem o filho do Conde Krolock, Hebert, e seguindo a linha dos vampiros contemporâneos do séc. XXI demonstra “certos” interesses no jovem Alfred.
No decorrer do tempo em que eles residem no castelo, o Professor Abronsius vai obtendo indícios e mais indícios que aqueles seres que vivem ali não são nada normais e várias tentativas de extermínio dessas criaturas pela dupla são frustradas, ora pela extrema falta de coragem de Alfred, ora pelas trapalhadas do Professor Abronsius. Quando tudo está mais que claro, no caso, eles descobrem que Sarah se encontra no castelo e que o pai e seu filho são de fato vampiros, Conde Krolock dá seu golpe triunfante: prende a dupla numa sacada do castelo e vos conta todo seu plano maligno, que consiste basicamente em transformar todos na Terra em vampiros, e eles pretendem iniciar isso com a dupla de pesquisadores e a donzela indefesa. Como todo e qualquer vilão meia-boca, antes de prendê-los na tal sacada, ele revela que acontecerá um baile naquela noite no castelo, no qual todos os seres macabros estarão presentes e que a convidada de honra será Sarah, a jovem, indefesa, sedutora e ruiva que a dupla tanto procura.
Mais uma vez, como o esperado, o Professor Abronsius e Alfred conseguem fugir da sacada, e se vestem com roupas de gala para se passarem por despercebidos na festa. Na cena ápice do filme, onde toda a corja de monstros está coreografando uma dança ridiculamente medieval, a dupla tenta se comunicar com Sarah, entre um passo e outro, que também está participando da coreografia. Mas para a infelicidade dos dois, eles terminam a dança e se deparam com um espelho gigantesco diante deles fazendo-os refletirem para todo o salão, e denunciando assim, que existem dois humanos infiltrados no baile. A partir de agora se inicia a perseguição: Abronsius e Alfred correm desesperadamente levando-os consigo Sarah, enquanto toda corja de vampiros presentes ali os perseguem furiosamente. No fim da perseguição, os três conseguem escapar do castelo num pequeno trenó puxado por um cavalo. Abronsius guia o veículo enquanto Alfred respira aliviado. Aliviado? Nem tanto. Neste instante, Sarah surpreendemente se revela uma vampira e ergue seus dentes pontiagudos diante do pescoço de Alfred, e, segundo as próprias palavras do narrador em off: “Na naquela noite na Transilvânia, o professor Abronsius não imaginava que estivesse levando com ele o mesmo demônio que ele desejara destruir. Graças a ele, este demônio poderia finalmente se espalhar por todo o mundo.”
Um texto a respeito deste filme não poderia ter sido escrito de outra forma. Ironia e humor negro são os dois pontos-chaves, tanto deste texto, quanto do enredo. Roman Polanski usa e abusa de clichês dos filmes de terror, já existentes em 1967, e com esses clichês do gênero, consegue chegar ao ponto exato de equilíbrio, entre o ridículo e o irônico. Com o humor negro posto em prática, e, diga-se de passagem, com sucesso, não são apenas risadas que se consegue extrair desse belo experimento no gênero feito pelo diretor. O filme nos demonstra que às vezes, a ambição e a cobiça humana (inclusive por conhecimento, sabedoria, etc), ao invés de trazer os benefícios esperados, acabam por trazer males e provocam o efeito inverso. No caso, o Professor sonhava em pesquisar e descobrir a existência das criaturas vampirescas, e no fim, acaba sendo o responsável pela sua provável proliferação ao redor do mundo. Se você acha isso insuficiente para um filme de Polanski, as boas risadas podem preencher esse vazio.
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"Desejo e Reparação, uma adaptação de Ian McEwan", por Annyela Rocha
Por favor, nunca, mas nunca se deixe confundir e pensar que “Desejo e Reparação” (Atonement, dir. Joe Wright, 2007) é mais um romance de Jane Austen. Os geniais tradutores brasileiros, geralmente responsáveis por péssimas escolhas, põem os títulos pensando nas vendas e parece que só nisso. E é assim que From Paris With Love (dir. Pierre Morel, 2010) se torna, no Brasil, Dupla Implacável, só para tentar pegar carona no sucesso de Busca Implacável, (Taken, 2008), também dirigido por Pierre Morel. O título de Atonement para o Brasil tem mesmo essa ideia de confundir, ainda por cima por ter a direção de Joe Wright e incluir Keira Knightley no elenco (assim como Orgulho e Preconceito, 2007). Mas se ilude quem acha que vai ver mais um filminho doce.
Desejo e Reparação também é uma adaptação de uma obra literária, mas de um autor contemporâneo e bem diferente de Austen. Ian McEwan é esse autor, que não só permitiu a adaptação como foi produtor executivo do filme, garantindo a fidelidade ao seu livro. O resultado foi bem feliz e a transposição para as telas garantiu para o cinema inglês um ótimo título no catálogo.
Por ser de época e mostrar cenário e caracterização de personagens condizentes com esse gênero, Desejo e Reparação pode ser considerado um heritage film, ou filme de patrimônio britânico, mas não é um heritage qualquer. Os filmes de patrimônio em geral eliminam a problemática da vida contemporânea ao transpor suas narrativas para um cenário idealizado do passado. O passado se torna algo tão ficcional quanto a vida em outro planeta, permitindo a imaginação mitificada, platônica. Essa aniquilação dos conflitos da atualidade traz para o gênero a recorrência de filmes voltados para o público feminino, centrados no romantismo. Atonement não deixa de ser voltado para esse público, ou de ter o toque de romance, mas não faz o uso de tanta mitificação ou idealização de vida do passado.
Um detalhe que distingue o filme dentro do gênero é o fato de ele ter três tempos de narrativa, sendo o último na contemporaneidade. O que prova que ser um filme de época não foi uma tendência idealizadora para a trama. Outro fator inerente a Desejo e Reparação é a crueza no tratamento dos personagens. Não há uma segunda chance para eles nem salvação alguma em vista. Todos têm o mesmo fim de certa forma, principalmente Brinoy Tallis (interpretada por Saoirse Ronan, Romola Garai e Vanessa Redgrave), Cecilia Tallis (Keira Knightley) e Robbie Turner (James McAvoy).
É, ainda assim, um melodrama, com o teor dramático bastante acentuado pela trilha musical, mas sem pieguices. Mais ainda, Desejo e Reparação é uma reflexão sobre os atos que cometemos. Sobre as decisões precipitadas e o peso que elas podem ter nas vidas alheias. Sobre a culpa. Sobre a incompreensão. O amor impossível. A perda. É um pedido de redenção. Mas a redenção não existe, simplesmente porque assim é a vida; e a vida é um espaço de tempo onde se paga pelo que se faz.
Além das excelentes atuações de Keira Knightley, James McAvoy e das três atrizes que interpretam Briony, a trilha sonora chama atenção. No início, a trilha musical se confunde com o som de teclas de uma máquina de escrever e com os passos de Briony, enquanto ela termina sua primeira peça teatral. As tecladas de Briony são a única forma que a garota tem de se expressar e de perdoar a si mesma. As ideias da menina são capazes de controlar os colegas numa peça, mas também toda a vida de um casal apaixonado. E a composição musical de Desejo e Reparação evidencia tudo isso.
O diretor Joe Wright mostra sua marca autoral nessa adaptação e se redime com os críticos que não gostaram do seu trabalho anterior, Orgulho e Preconceito. A fotografia continua sendo um elemento importante, assim como o figurino. Destaque para o vestido verde de Cecilia. Verde e não vermelho, apesar de ser na cena mais passional de toda a narrativa, porque o vermelho mais tarde servirá para exibir a culpa. A direção de arte também marca presença, especialmente no momento de mais exuberância técnica do filme, o plano sequência da praia na costa norte em plena II Guerra Mundial. E é assim que, em meio a isso tudo, apenas Joe Wright se repara, mas é uma ótima reparação.
quarta-feira, 23 de junho de 2010
"Como eu presenciei o fim do mundo (1) ", por Victor Laet
Quando chegou ao Brasil, o filme “The Bucther Boy” recebeu o nome de “Nó na garganta”. E a partir da defesa de vários teóricos do cinema em afirmar que assistir a um filme é uma experiência voyeur, o título é coerente: um nó na garganta é a sensação mínima tida pelos espectadores ao testemunharem este longa cujo humor tipicamente irlandês (bufão, seco, pesado e por isso – ora outros fatores – tão comumente marginalizado na cultura britânica) transforma, em súbito, crianças no olhar de Victor Fleming para crianças no olhar Sam Peckinpah.
Sabe aquela imagem do mundo através de um microscópio ou telescópio? De alguém sempre observando, mas nunca interferindo? (ta, você acaba interferindo de um modo, mas esse não é o ponto) Aquela imagem de que alguém está monitorando o mundo por um microscópio e não agindo em mais nada (vide um episódio de “O Laboratório de Dexter”, esqueci o nome do episódio)? É partindo dessa idéia que surge mais uma empreitada do roteirista Pat McCabe e Neil Jordan: durante a tensão bipolar mundial com episódios como a “Invasão Baía dos Porcos”, o espectador observa, em suma, a sociopatia.
Protagonizado por Eamonn Owens, a história contada é a vida de Francis Brady, um típico menino ruivo irlandês (famoso estereotipo irlandês para ‘butcher boy’ [menino açougueiro]: ruivo, franzino, ajuda a família com as despesas). Francis brinca de caubói e índios, fazendo com que ele desenvolva o alter-ego de Algernon Carruthers (como muitos meninos faziam na década de 60), rouba fruta dos vizinhos, vê programas de western na televisão de imagem fantasma e tem problemas em casa: uma mãe suicida, um pai alcoólatra. Essa junção de elementos distintos são primordiais para o desenvolvimento dessa comédia homicida.
Ao assistir o filme constata-se que Francis é um sociopata na fase larval. Cabe ao determinismo fazê-lo descer os degraus existentes e, no passar do filme, rolar uma rampa restante (2) que o separa de vez da sociedade: pai violento + mãe infeliz + suicídio familiar + culpa + bullying + espancamento + encarceramento + moléstia + = Rousseau e Sartre de mãos dadas.
Todo o filme, do pôster a pequenos detalhes como o fato da história ocorrer simultaneamente à invasão da baía dos porcos, tem-se um totem estampado: o porco. Em minha mania de querer achar relação entre tudo, fui pesquisar sobre o porco na cultura irlandesa e eis o que descobri: durante os séculos de domínio inglês sobre o território irlandês o porco agia como animal de aluguel. Durante todo o ano, famílias irlandesas engordavam o animal para poder quitar a dívida das terras com os proprietários ingleses, logo a família nunca podia abater o animal – o qual se tornava membro familiar – pois era muito mais do que valioso. A partir disso é possível observar o brilhantismo da trama em trazer uma vilã inglesa para história e esta ser a primeira a tratar o protagonista como ‘porco’.
Procurando pela foto do pôster, eu me deparo com dois stills – um do filme e outro do Buster Keaton em seu primeiro filme intitulado (tremeis, vós, caros inexistentes leitores) “The Butcher Boy”. Observando isso, é perfeita a possível homenagem a Keaton feita pelo pequeno personagem ruivo: num dos poucos filmes no qual Keaton ri – diferente de Francis – ambos estão olhando para o nada, desejando uma mudança, uma alegria. (3)
Apesar da brincadeira de “o homem nasce bom, a sociedade que o corrompe” e “o que você faz do que fizeram de você?”, acredito que o tema mais importante a ser observado é do tratamento à amizade. Depois de inúmeras situações as quais desgastavam Francis (ora aderindo seu alter-ego ora aceitando o que lhe acontecia), ele suporta as mazelas pelo carinho tido ao amigo Joe (Peter Gowen). Vendo-se desesperado e marginalizado, Francis imagina o fim do mundo: os comunistas finalmente soltaram uma bomba e toda Irlanda sucumbiu. Entre chamas e destroços da pequena cidade espalhados estão vários corpos os quais todos são de porcos. Todos morreram. Todos são porcos na realidade. Todos menos ele e Joe. Ao ter sido negado pelo amigo tão quisto, o menino açougueiro parece não se importar mais com nada. Leminski escreveu: “não fosse isso e era menos; não fosse tanto e era quase”. Depois de ver azedar tudo aquilo lhe era tão rapidamente tido como açúcar (para evitar spoiler, vide o filme [sic]) a situação se inverte de maneira onde: não fosse menos e era isso; não fosse quase e era tanto.
É bastante peculiar o tratamento da amizade no cinema irlandês: ora aderente de um realismo mágico, ora junto a um humor direto e bruto (não é tão recalcado e minucioso como a forma que o humor é tratado no cinema inglês, por exemplo). A forma como o tema é abordado, sobretudo na visão das crianças, parece ser um diferencial deste cinema dentro do universo do cinema britânico.
Victor Laet
Quinze de junho de 2010
só porque eu estou citando muita gente e porque não consigo deixar essa citação de lado: “A Irlanda é a velha porca que come a ninhada” (“Ireland is the old sow that eats her farrow”) – James Joyce: “Retrato do artista quando jovem”
notas:
1. Brincadeira com “Como eu festejei o fim do mundo” (Cum mi-am petrecut sfârşitul lumii, Romênia, Cătălin Mitulescu, 2006).
2. Um gráfico para explicar melhor: http://lh4.ggpht.com/_rCJo-Oh4__M/TBcf93WF8sI/AAAAAAAAAb0/maMJ27S6i6c/s400/GRAF.JPG
3. The Butcher Boy, 1917, Fatty Arbuckle: http://www.fathom.com/course/21701779/21701779_s4_bustSit.jpg
The Butcher Boy, 1997, Neil Jordan:
http://www.metroactive.com/papers/metro/04.30.98/gifs/butcher-boy-9817.jpg
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"Inverno de sangue em Veneza" (Don't Loook Now), de Nicholas Roeg, por Sofia Donovan
ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS...
Inverno de Sangue em Veneza é um filme assustadoramente estranho. Na primeira sequência a filhinha de John e Laura Baxter morre afogada. Agora eles estão em Veneza, tentando se recuperar do trauma. John é restaurador e está trabalhando em uma igreja, seu outro filhinho, que viu a morte da irmã, está internado em um colégio na Inglaterra e sua esposa inda não conseguiu sair da depressão que sucedeu a tragédia. A questão é que John parece possuir uma espécie de clarividência. O filme está mergulhado em uma atmosfera sombria, sobrenatural.
O casal acaba conhecendo duas velhinhas e uma delas possui uma ligação com o “além”. John, que tenta não acreditar nem nas experiências que ele mesmo vivencia, continua cético, já sua esposa “mergulha de cabeça” na idéia da filha ainda existir, uma fuga conveniente. Coincidentemente ocorre uma série de assassinatos na cidade.
O vermelho, cor da capa plastificada que a filha na hora de sua morte, da bolhinha que a fez entrar na água, do sangue, é recorrente. Há também muitos closes, e o uso de câmera na mão, comuns em suspenses. A trilha sonora do filme quase sempre é tensa e soturna, acompanhando o conceito do filme e, digamos, no mínimo curiosa, na interessante montagem que alterna cenas de sexo entre o casal e eles se vestindo.
Entretanto o que é realmente estranho nesse filme são os closes em objetos e ações que interpretamos como “avisos”, mas que na verdade não possuem importância narrativa ou os momentos em que a música nos passa a sensação de que algo vai acontecer, mas nada acontece e essa tensão nem faz sentido no contexto. Todos os personagens parecem tramar contra os principais, tudo parece premeditado e ao mesmo tempo estranho e confuso. Essas características somadas à premonições, falta de figurantes, uma névoa quase incessante,o tempo nublado e frio, as aparições das irmãs, acabam nos deixando tensos. O filme é bem sucedido em seus objetivos (tive que atravessar o corredor da minha casa correndo depois de vê-lo). Nada é explicado, é uma experiência sensorial.
Há certo momento do filme em que eles se perdem em vielas vazias de Veneza e a atmosfera se torna tão sombria que quando John reencontra a cidade (que não é muito menos assustadora) comenta “achei o mundo real”.
A velhinha que está cometendo os assassinatos e que acaba matando John no final veste uma capa vermelha igual à da filha deles, tudo reflete a situação do casal. Com certeza “Thriller psicológico”, como alguns definem o filme, é o termo perfeito.
"If", por Rinaldo da Silva Pereira Junior
O ufanismo exacerbado e o apego à tradição e as instituições repressivas como igreja, estado, família e escola são os principais e mais recorrentes temas da fabula surreal e alegórica que é IF... . Desde a apresentação da escola College Hall, a proposta é de mostrar a Inglaterra como repositório de um arraigado esnobismo megalomaníaco e isso vai ser simbolizado no fato da escola estar fora e longe dos limites da cidade, que só é mostrada uma vez numa sequência surrealista, tornando a instituição inacessível á qualquer tentativa de modernização ou de correção de seus métodos sádicos e transformando-a em um microcosmo que espelha a Inglaterra.
A divisão hierárquica social e o enaltecimento dos valores da classe media são representados pela divisão dos alunos em juniors e seniors e pela submissão dos juniors aos ‘whips’ sádicos e pervertidos que abusam dos privilégios dados à eles pelo nível mais alto da pirâmide: o headmaster e seu conselho de múmias caquéticas e servem como elemento intermediário da repressão que vem de cima para baixo e reverbera no sentido contrário em forma de resistência violenta ao padrão. Entre os privilégios dados aos ‘whips’ o mais abusivo deles é o de fazer uso dos juniors (seus ‘scums’) como serviçais em tarefas como preparar chá e aquecer a água do banheiro.
College Hall é um modelo de intolerância. Quando da chegada do grupo de volta ao ano letivo, Mick esforçasse em esconder sua barba por trás de um cachecol, até que cedendo à pressão a tira. Seus cabelos longos e os de seus colegas irritam profundamente o senso estético britânico na figura sempre vigilante dos ‘whips’ e desvios de conduta são corrigidos na base da mais violenta disciplina, o que justifica o titulo de ‘whips’ e dá ao filme uma de suas sequências mais cruéis.
College Hall e seus alunos é uma metáfora do conflito entre uma tradição moribunda e a reformulação e abertura de valores que já batia na porta do império havia muito tempo, e que na verdade já estava colocando-a abaixo. A estória se passa nos anos sessenta e tenta dar conta dos movimentos estudantis do final da década e da escalada vertiginosa da liberação sexual que tomava conta da Europa e quem em pouco tempo corroeria a estrutura das instituições tradicionais mundo afora.
Enquanto as mini-saias e o rock faziam a cabeça da juventude na swinging London, os Juniors de College Hall são obrigados a freqüentar missas e ouvir discursos vazios e irreais da Inglaterra como ‘powerhouse’ e ‘ilha única’ e ainda agradecer seus algozes pelos castigos físicos impingidos, além de passar por constrangedores exames médicos.
Travis é símbolo dessa juventude que está lá fora e em breve será maioria e que logo vai ditar um novo modelo de comportamento. Inconformado e rebelde ele vai preparar o terreno para a completa desintegração do velho sistema, pelas armas e pela violência. Sua filosofia é contundente. Sua declaração bombástica de que “ Não existe guerra errada” e que “ Violência e revolução são os únicos atos puros “ refletem o espírito da juventude da época e sua insatisfação com os decadentes modelos vigentes duramente sustentados pela velha guarda. Travis, porém não é o único modelo de ruptura. Seus colegas fumam e bebem às escondidas. E já ouvimos declarações sobre famílias disfuncionais.
IF... é inscrito numa tradição de filmes de escola, de onde o precursor e protótipo é zéro de conduite de 1933, obra do diretor francês Jean Vigo, de onde IF... é declaradamente influenciado. Muito debatida também é a questão da utilização de película preto-e-branco e sépia em algumas passagens. Ao contrario do que a principio pode-se imaginar, a variação parece não se dever à questões estilísticas ou narrativas mas sim à questões muito mais pragmáticas como a facilidade em se filmar nestes tons mais do que em cores em determinados ambientes, a limitação no tempo de uso das locações e até limites no orçamento.
O tom surreal que o filme toma a partir da fuga para Londres e com a entrada do personagem feminino da garçonete do café parece apontar para a transformação radical pela qual o mundo, a sociedade tradicional e o comportamento vão passar após as barricadas contestatórias da nova geração pós-68, e a dificuldade da velha ordem em aceitar e conviver com esse novo e irreversível estado de coisas. A partir daí tudo parece irreal: College House transforma-se de súbito em campo de treinamento militar, em seu porão é encontrado um enorme arsenal, que não encontra razão de existir dentro de uma instituição de ensino e que será utilizado pelo exercito de resistência de Travis e temos finalmente reunidos simbolicamente no discurso moralista final os representantes das grandes instituições tradicionais, o estado e seu braço militar, a igreja, a família e é claro a educação repressiva.
"Blow Up", por Ricardo Duarte
“Um filme que pode ser explicado com palavras não é um filme verdadeiro.”
Michelangelo Antonioni
Há uma espécie de esboço de uma história de suspense nesse filme de Antonioni, mas, como em outros filmes de sua autoria em que isso acontece (Profissão: Repórter, A Aventura, entre outros), os expectadores desavisados são enganados e levados a crer que o filme se resumirá à resolução do mistério mostrado. Entretanto, em Blow Up, a situação é ainda mais especial: não sabemos se houve realmente uma morte. Tudo o que nós e o fotógrafo Thomas temos como prova são ampliações de fotografias tiradas num parque, em que o que vemos e que parece uma pessoa com uma arma, pode não ser nada.
Em seus projetos anteriores, Antonioni, focava-se na “relação entre as pessoas, sublinhando os conflitos que, na sociedade contemporânea, costumam opor o amor à ambição, o sucesso profissional à integridade artística. Em Blow Up houve mudança de rumo. Desde o início da narrativa, a imagem do jovem protagonista, que perambula por Londres, acionando compulsivamente o obturador da câmara fotográfica, adverte que não iremos assistir mais à disputa entre os homens, mas a um duelo com o mundo.”¹ Outro dos temas que usam constantemente para definir Antonioni, a incomunicabilidade, também não é um dos temas mais presentes numa leitura mais superficial do filme, embora esteja lá, especialmente no diálogo entre Thomas e Patrícia.
Então, quais temas característicos do diretor estariam no filme, além do falso clima de mistério? Primeiramente, podemos dizer do retrato da vida moderna e de como o homem reage a ela, mas, ao contrário dos personagens anteriores de Antonioni, Thomas não está em combate com esse mundo, já se adaptou a ele, sua única pendência é resolver um problema que diz respeito apenas à sua relação com a realidade. Há também um retrato crítico da burguesia, que, em eterno caminhar sem rumo, parece não ter nenhum objetivo nesse mundo. O tédio emana do fotógrafo e qualquer coisa nova parece-lhe dar uma nova energia, mas apenas algo efêmero, como o encontro com os mímicos no início do filme, a hélice que ele compra e, obviamente, o “assassinato”. Outras cenas deixam clara essa crítica, não apenas direcionada aos ricos, é verdade, mas também à alienação dos jovens ditos como “rebeldes”, e a cena, bastante onírica, ocorrida no show dos Yardbirds serve como exemplo disso: todos os jovens permanecem parados, quase como zumbis, enquanto a banda canta ou quebra seus instrumentos, apenas reagindo (de forma violenta) quando o vocalista atira sua guitarra para o público.
Mas, falar que o filme resume-se a essa crítica seria, no mínimo, ingênuo. Está presente no longa, algo muito mais interessante e profundo do que a já batida crítica ao mundo burguês: a indagação sobre a dependência quase total que a modernidade tem da visão e, mais particularmente, sobre a noção de que algo que esteja representado numa foto (ou num filme) seja verdade.
“A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução. Passamos de um efeito de realismo a um efeito de realidade.”². Tal “realidade”, segundo Walter Benjamin, seria usada para fim do próprio capitalismo, ao “transformar autenticidade de um fato em bem de consumo” ³. Há no filme uma inversão disso: a “realidade” só existe nas fotografias. São elas, e apenas elas, que mostram algo que pode (ou não) ter acontecido. O fotógrafo inicialmente acredita piamente no que elas lhe mostram, mas, ao longo da projeção, vê suas certezas se desintegrarem, até a cena final, em que há uma total desconstrução de seus pensamentos. O uso de um fotografo como protagonista em um filme questionador sobre a confiança excessiva no que vemos, o exagero do “ver para crer” e, de uma certa forma, um voyeurismo crescente, é algo extremamente importante. Ele tem sua câmera como uma espécie de continuação de seu corpo, e não mede esforços ou pensa na privacidade alheia para tirar boas fotos (como flagrar um casal se beijando, ou operários). Os mímicos, que aparecem no início e no final do filme, são a representação diametralmente oposta à nossa confiança excessiva no que vemos e servem como contraponto ao protagonista: são artistas que usam o inexistente como seu objeto artístico. No final do longa, com a belíssima cena do jogo de tênis, a própria câmera do diretor acompanha a bola, supostamente inexistente, e a torna tão real quanto todos aqueles personagens. Entretanto, Thomas permanece impassivo diante daquilo, não “acompanha o jogo”. Quando o fotógrafo pega a bola “não-existente”, o que seria uma espécie de teste (como podemos ver por todos os mímicos observando-o atentamente), para livrá-lo de todo ceticismo que vimos exibindo-o. Quando ele “joga” a bola de volta para os mímicos, aceita a falsidade do pensamento realidade = aquilo que vemos, e começa a acompanhar o jogo, e nós (espectadores) passamos a ouvir a bola. Então, o fotografo desaparece diante dos nossos olhos, demonstrando-nos ser apenas mais uma ilusão, embora nós pudéssemos vê-lo. Nesse final, percebemos as intenções anti-ilusionistas do filme: ele “esfrega”, embora de forma sutil, na cara do expectador que tudo que víamos era apenas ilusão, e tira-nos de uma catarse que o filme possa ter provocado. Há nisso algo que lembra o esforço constante de Godard de nos lembrar que o que vemos é apenas um filme, esforço esse que provêm, por sua vez de pensamentos de desmistificações muito antigos: desde o livro Don Quixote, o teatro Brechtiano, o cinema de Dziga Vertov etc. Embora, de forma bastante diferente do humor sarcástico e da violência dos exemplos citados acima, Blow Up triunfa nos seus desejos desmistificadores e é um ótimo exemplo para constar na lista de filmes dessa espécie.
Até agora, houve apenas uma análise dos intuitos, dos significados e da narrativa do filme, entretanto não é apenas por esses aspectos que esse magnífico trabalho é considerado por muitos uma obra-prima do seu diretor. Seria clichê dizer que as cores do filme são espetaculares, pois todos já estão cansados de saber do cuidado de Antonioni em relação a isso: a grama do parque teve que ser pintada de outro tom de verde para as cenas gravadas lá, pois o original não agradava ao diretor. Outros pontos que deixaram o filme famoso (esse foi o filme com maior audiência do diretor) foram seus figurinos, já que Thomas fotografa modelos, e sua trilha sonora, especialmente o show da banda Yardbirds.
Há também cenas memoráveis, além da do jogo de tênis entre os mímicos (já citado anteriormente), como o ensaio com Veruschka, que foi eleita pela Premiere como a cena mais sexy da história do cinema. A cena, que ficou sendo a mais representativa do filme, não mostra apenas uma sessão fotográfica, mas também algo sexual: “a câmera dispara fotos a todo momento como meio de união entre os dois, seus corpos movimentam-se juntos. No final da sessão, numa representação máxima de excitação, o fotógrafo ajoelhado sobre ela grita eufórico (...). O clímax é visual e inquestionável. A modelo continua deitada no chão extasiada com o que acabaram de fazer, passando a mão sobre o seu seio e exausta, está aí a representação visual do orgasmo. A cena nos mostra uma metáfora de relação sexual mediada por uma câmera fotográfica. É o exemplo máximo da influência da imagem em um ser humano, a possibilidade de juntar a capacidade de penetração do meio fotográfico em realidade física e visual. É uma forma de mostrar a vulnerabilidade humana quanto essa inversão de valores entre realidade e imagem, mostrar a necessidade de obter uma coisa representada cada vez mais próxima, se possível poder tocá-la, senti-la, é a necessidade de disfarçar uma vontade de poder criar uma realidade que possa ser controlada individualmente, montada por cada um de nós em que não haja necessidade de comunicação entre pessoas.”4 . Outra cena digna de aplausos é a que o fotógrafo arruma as fotos do “assassinato” em sua casa. Podemos ver toda a narração cinematográfica daquele crime acontecendo diante de nossos olhos, com cortes inclusos. Belíssimo.
Filme de um diretor italiano, Blow Up inscreve-se no movimento britânico da Swinging London, momento em que vários outros cineastas estrangeiros, como Godard, Truffaut e Polanski, filmaram em Londres, centro de uma incrível efervescência cultural. Talvez tenha sido esse enfoque das modernidades londrinas que causou o trunfo de bilheteria de Blow Up. É perceptível a demonstração dessa exaltada “modernidade” no filme (embora com críticas, como falado anteriormente): com seus figurinos exagerado, sua Londres agitada, suas festas com drogas, as cores berrantes do filme, a presença dos jovens, a primeira nudez frontal em um filme inglês, entre outras coisas. Talvez possamos dizer que isso tenha deixado o filme um pouco datado, mas, numa época dominada por reality shows e pela idéia cada vez mais presente de uma imersão total dos expectadores no filme, principalmente focando o elemento da visão (as novidades do 3D e muitas profecias do futuro do cinema), as indagações e críticas que ele deixa nas cabeças dos que o assistem, tornam-se cada vez mais importante.
¹ SOUZA, Gilda de Mello. (2005).
² DUBOIS, Philippe. (1999).
³ SOUZA, Augusto Cesar Cavalcanti de.
4 Ibidem.
Bibliografia:
DUBOIS, Philippe. “A linha geral. Cadernos de Antropologia e Imagem.” Rio de Janeiro: UERJ, n. 9, 1999.
MATOS, Yanet Aguilera Viruez Franklin de. “A crônica visual de Michelangelo Antonioni”. Tese de pós-graduação, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo, 2007.
SOUZA, Augusto Cesar Cavalcanti de. “A fotografia como informação”. In: UFSCAR. Disponível em: http://www.ufscar.br/~cinemais/framefoto.html. Visitado em: 09 de junho de 2010.
SOUZA, Gilda de Mello. “A idéia e o figurado”. 1 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2005.
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"Simplesmente Feliz ", por Renato Souto Maior
Felicidade é algo externo ou interno; como se dá essa relação?Certo, deve ter um pouco de cada, uma predisposição genética, por exemplo, elucidaria o caso da personagem central do filme?Bem, ela apenas pode ter o “dom” de ver o lado bom das coisas, e ser otimista. Não são dúvidas respondidas diretamente. Em “Happy Go Lucky” (Simplesmente Feliz), de Mike Leigh, Poppy (Sally Hawkins) é um enigma a ser observado, de perto. Aparentemente a primeira ideia e conclusão sobre Poppy é a mais rasa e superficial possível; ela é apenas uma pessoa feliz, otimista. Mas ao longo da produção suas atitudes e certas situações inusitadas colocarão e testarão o “temperamento” até aqui “feliz” da personagem de forma intrigante, curiosa e reveladora. Até ser confrontada e ter sua “personalidade” colocada em questão, Poppy segue toda a projeção com um específico e único humor, exagerados ao extremo. Em uma sociedade imersa em uma espécie de “epidemia” da depressão, onde certa glamorização, reforçada por uma cultura industrial forte, é atribuída ao sombrio, ao triste, ao mórbido e a infelicidade, até como estilos – moda, cinema, literatura e música –, a existência de uma espontaneidade relacionada ao feliz é deixada de lado; até porque o excessivamente feliz acaba se tornando chato, em uma felicidade eterna, sem fim. O exagero e a hiperatividade para o sentimento efusivo ou depressivo refutam em algo a mais, fora do controle, ou seja, irritante. Esse tom irritadiço é lançado ao público e quase acatado por todos; é difícil não se chatear com a excessividade de alegria de Poppy, em momentos inquestionavelmente “chatos”, como o roubo de uma bicicleta. Para ela o roubo de sua bicicleta é visto como algo “banal”, onde ao invés de ficar furiosa apenas diz, “nem tive tempo de me despedir dela”.
Em toda essa efusividade e excentricidade encontram-se outras, não iguais a Poppy, claro, mas igualmente felizes e bem-humoradas; assim sendo, ela não está só. No grupo sua alegria é notada e sobressai-se. A história debruça-se no cotidiano dessa professora de jardim de infância londrina e sua rotina com as crianças. A sua profissão, inclusive, não poderia ser mais apropriada e a impressão, às vezes, é a de integração total de Poppy com seus alunos, como se a professora tivesse uma idade mental semelhante à deles. Mas ela não é criança, nem boba. E a sua genuína personalidade é muito bem colocada e trabalhada no filme. O perigo em se abordar uma personagem com praticamente trinta anos nestas condições de felicidade inconteste é enorme e se não bem orquestrado pode resultar em caricatura, mal feita. Leigh escreve uma personagem feliz ao extremo, mas inteligente, com piadas afiadíssimas e rápidas em todo tipo de comentário, colocação. Ela não é uma perdida, boba e alienada – não totalmente -; características estas supostamente levantadas e consideradas no início do filme, quando não existe conhecimento apropriado, ainda, da personalidade de Poppy. A sua personalidade é muito bem aceita entre os ambientes em que circula; amigos, trabalho, casa. O estilo extravagante, único e desengonçado de Poppy podem até “enfeiá-la”; o que realmente acontece, até por se portar de maneira descolada. Mas isso não a impede de despertar desejo em um homem bonito e interessante.
Ela é encorajada a ser como é, e não vê necessidade de mudança; até o dia em que decide tirar a carteira de motorista. Durante as aulas de habilitação Poppy conhece Scott, o seu oposto. As diferenças entre ambos gritam, e é neste ambiente hostil que a hiperativa, feliz, “hippie” Poppy se verá confrontada e desafiada a rever sua vida aparentemente perfeita. Leigh filma o interior do carro, e as aulas, em digital, distinguindo a criando, assim, um mundo a parte para os dois. A impaciência de Scott e sua imutável feição rude e rabugenta não a assusta, de imediato, pelo contrário; a incentiva nas piadas, brincadeiras e tentativas de quebra daquele mau humor de seu instrutor. As investidas, porém, não funcionam, e a relação dos dois aprofunda-se e ganha, aos poucos, forma assustadora e duvida. Uma tragédia anunciada se inicia. Mesmo com demasiada força e tensão, as passagens entre os dois são as mais engraçadas do filme; até a cena final, claro. Entre um sábado – quando acontecem as aulas – e outro Poppy trás novidades de sua vida, que irritam Scott, frustrado e sem perspectiva. Ela insiste em dirigir de forma “irresponsável”, e ele, prestes a explodir – Eddie Marsan, excelente -, completamente vermelho, a repreende, em uma atitude confusa onde não se tem certeza da origem de tal repreensão; se é pelo seu profissionalismo em alertar e instruir adequadamente, ou se ele apenas despeja a “raiva” de conviver com alguém tão feliz, confiante e diferente. Poppy seria a projeção do que Scott quis, algum dia, alcançar e ser, sem sucesso. Essa amargura se direcionará para um clímax tenso, emotivo e nervoso, onde em um texto verborrágico e ininterrupto Scott acabará explodindo, em meio a um conflito psicológico e nervoso descomunais.
Em um final desconcertante, Leigh quebra toda a construção que havia feito de sua personagem, colocando-a em uma situação extrema e revelando uma faceta de Poppy até então desconhecida; o desfecho e a cena posterior a discussão é bem ambígua, onde o público decide se embarca novamente na felicidade dela ou se não consegue mais enxergá-la da mesma forma. Em plena crise, Scott não consegue sua ajuda, em atitude suspeita e intrigante da personagem, pois é esperado que ela seja receptiva e disponível, como sempre o demonstra ser, em situações como aquela. A frustração da protagonista em não atender ou solidarizar com a dor do outro não é muito investigada, permitindo, então, a análise de que Poppy, talvez, não seja tão amável e próxima dos outros assim – em todo o filme situações de solidariedade e conforto da personagem são mostrados –, colocando sua característica em dúvida. Talvez ela tenha agido como agiu em todo o filme por nunca ter sido pressionada; quando suas expectativas, ou sua imagem é vista de forma distorcida e “errada”, segundo seu parâmetro de perceber e ver o olhar do outro diante de si, Poppy deixa-se revelar mais humana e séria do que poderia-se exigir dela, até ali.
"Fahrenheit 451", por Renata Monteiro
Fahrenheit 451 é a adaptação cinematográfica do romance homônimo do autor americano Ray Bradbury, e foi dirigido por François Truffaut. A obra é a primeira produção da Universal Pictures na Europa, e a única de inglesa do diretor. Londres era uma capital mundial e estava fervendo, nada melhor para um diretor como Truffaut, que estava à frente de tudo de novo que acontecia no meio do cinema e viu na Inglaterra uma oportunidade inédita de dirigir. O filme foi gravado nos estúdios Pine wood (Buckinghamshire, Inglaterra), que é o estúdio britânico mais importante, por onde já passaram filmes desde Narciso negro à saga Harry Potter. Truffaut declarou ser o seu filme mais difícil e mais triste, em sua experiência como diretor. O motivo talvez seja o seu já conhecido desentendimento com o ator principal, Oskar Werner (Montag), durante as gravações.
A narrativa nos apresenta a representação de um futuro hipotético onde a leitura de livros escritos é proibida. A sociedade desse futuro acredita que os livros deixam as pessoas infelizes. Os romances, por exemplo, trazem infelicidade para as pessoas pelas histórias trágicas dos personagens fictícios e “faz com que elas queriam viver de uma maneira quase impossível”, os livros de filosofia todos dizem as mesmas coisas e pregavam que só os filósofos estavam certos e que os outros eram idiotas, as biografias queriam satisfazer a vaidade dos seus autores, e livros como A ética de Aristóteles serviam para que seus leitores acreditassem que estariam em um pedestal acima dos outros que não o fossem. Essas idéias fazem com que a sociedade retratada acredite que a única maneira de ser feliz é sendo igual a todos.
Os livros são contrários a isso e devem ser queimados. As pessoas se tratam como “primos”, para ressaltar essa idéia de igualdade, e são todos alienados, extremante dependentes e influenciados da televisão, que parece fazer parte da sociedade. Em todas as casas há uma antena, e a televisão age de maneira interativa com as pessoas acentuando esse caráter de integração com esse meio. Mas restam pessoas que ainda lêem e mantêm livros em suas casas, para isso os bombeiros são acionados, incinerar livros é a função desses profissionais nesse futuro relatado. Montag é um bombeiro que está para receber uma promoção, Linda (Julie Christie) é sua esposa, ela é bastante influenciada pela televisão. Montag conhece Clarisse (Julie Christie em seu segundo papel na trama), e a partir desse encontro Montag muda seu comportamento, afetando no seu trabalho e na sua vida pessoal. Ele começa a questionar suas funções, e desencadeia uma paixão pelos livros que tanto havia destruído.
Esse filme retrata muito bem essa sociedade alienada e sem leitura, já nos seus créditos iniciais não há textos escritos indicando a proibição, os nomes são narrados e imagens coloridas de diversas antenas de televisão aparecem. A cor no filme é algo bastante marcante, esse é primeiro filme colorido de Truffaut, e ele utiliza muito o vermelho, exaltando esse ambiente quente e em chamas em que se desenvolve a trama. Mesmo se passando em um futuro, o filme não perde as características dos anos 60, época em que foi produzido, as cores vibrantes, os objetos e a caracterização dos personagens (roupas, cabelos e etc) se assemelham muito com as desse período. É um futuro com moldes nos anos 60, esses equívocos são recorrentes em outras obras do tipo, pois não há como fugir de suas referencias temporais. Ainda assim Fahrenheit 451 é considerado um filme marco de produções futurísticas, pela sua representação do futuro e fonte de inspiração para futuras obras do gênero. Os atores principais são polêmicos, Julie Christie e seu duplo papel, que de duplo não tem nada, pois a atriz só troca de peruca e nada em suas nuances de atuação muda, e também Oskar Werner que além de suas intrigas com o diretor do filme, permanece quase o filme todo com o mesmo olhar intrigado (e irritante por ele ter uma enorme distancia pupilar). A trilha sonora do filme é de Bernard Hermann, o compositor favorito de Hitchcock, e isso de fato se percebe, pois quando ouvimos a música é como se esperássemos a entrada de Norman Bates com um facão, ou nesse caso com um lança-chamas, na cena. A fotografia é de Nicolas Roeg, que depois vai dirigir filmes como O homem que caiu na terra e Inverno de sangue em Veneza, e consolidar o cruzamento de gênero característico em suas obras. Com essa temática futurística e com um certo apelo as questões da época em que o livro foi escrito, o autor, que é americano, põe ao mesmo tempo a questão da alienação pelo meio televisivo (típico do capitalismo) e uma representação de uma sociedade comunista onde a ordem é que todos sejam iguais e uma extrema repreensão aos que não seguem a esse ideal. Centrado na questão do futuro do livro, é uma obra que no mínimo nos faz refletir sobre possíveis sociedades futuras e seus valores, seja convertendo a função do bombeiro (do inglês fireman, homem fogo) que ao invés de apagar, coloca fogo, a metrôs aéreos. Truffaut pode ter recebido diversas críticas negativas em relação a esse filme, por não corresponder ao que o diretor pregava na Nouvelle Vague. Fahrenheit 451 pode ser inserido na definição de cinema comercial, foi encomendado e produzido com alto custo e diversos recursos, não condizia com as outras obras do movimento onde existia ruptura com os padrões vigentes e marca autoral do diretor, que foi questionada nesse filme pelo trabalho final parecer mais com de um artesão e não de um artista. Mas não se nega a importância e qualidade da obra, Martin Scorsese diz que o filme influenciou suas produções, e que ele subestima o trabalho do diretor. De fato Truffaut alcançou uma perfeita interpretação e representação do livro, o que poucos conseguem numa adaptação literária. É um filme visualmente muito bonito. E pode não causar um incêndio de sensações, mas com certeza acende uma chama.
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"Repulsa ao sexo", por Ramon Dias
O diretor franco-polonês Roman Polanski é um homem que conhece de perto o lado obscuro da psique humana. Ainda muito novo, sua mãe foi morta em um campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra, e Polanski só conseguiu sobreviver por que passou parte da vida em fuga, evitando sua prisão. Em 1969, sua mulher foi assassinada pelas mãos da família Manson, liderada pelo maníaco Charles Manson, um dos mais conhecidos serial killers da história americana. Essas tragédias deixariam marcas profundas em sua vida, e sem dúvida influenciariam para uma aproximação de suas obras a temas como loucura, violência e barbárie. Filmes como O inquilino, Dança com vampiros ou O bebê de Rosemary flertam com o gênero de thriller/terror, e tornaram-se verdadeiros clássicos. Mas certamente foi em Repulsa ao Sexo (1965) que o diretor se projetou, ganhando a notoriedade da crítica internacional.
O filme acompanha a história de Carol (Catherine Deneuve), uma bela manicure que trabalha em um salão de beleza na agitada Londres dos anos 60, momento em que a cidade passou a ser um pólo da cultura de vanguarda, lançando ao mundo tendências inovadoras e ousadas nas áreas da música, moda e cinema. Era o momento dos Beatles, Rolling Stones e The Who, da minissaia, dos atores Julie Christie, Alan Bates e Terence Stamp, e dos cineastas Tony Richardson, Richard Lester e Lindsay Anderson.
Mas em meio a toda essa efervescência jovial, Carol mostra-se distante. Tímida, reprimida e obcecada por limpeza, apresenta uma grande dificuldade de se relacionar com as outras pessoas, principalmente do sexo oposto. Carol prefere passar as noites trancada em seu apartamento, que divide com a irmã mais velha Helen (Yvonne Furneaux), apesar dos constantes convites para sair do incansável aspirante a namorado, Colin (John Fraser). Qualquer coisa que remeta ao sexo a causa náuseas, e um simples beijo roubado por Colin é motivo de uma corrida desesperada em busca de uma pia para lavar violentamente a boca.
A situação piora quando Helen decide viajar para a Itália com seu namorado Michael (Ian Hendry), deixando Carol sozinha em casa por dez dias. A partir daí, o filme ganha uma conotação expressionista, quando o cenário começa a transformar-se à medida que a sanidade da protagonista entra em uma decadência progressiva. Rachaduras começam a aparecer nas paredes, que adquirem uma consistência cada vez menos sólida, e o apartamento parece ficar mais apertado, com mais objetos espalhados, aumentando a impressão de claustrofobia e loucura. A única companhia de Carol é um coelho cru e temperado em cima da geladeira, que vai apodrecendo com o tempo, causando também no espectador uma sensação de repulsa. Delírios e pesadelos sexuais vão se tornando mais e mais freqüentes, ao ponto de tornar-se difícil distinguir o real do imaginário, e o filme toma uma atmosfera etérea. Os sons também possuem uma grande importância na criação dessa atmosfera onírica, como a repetição do tic-tac do relógio, do sino da igreja vizinha, e dos barulhos noturnos de passos se aproximando ou coisas estalando. Entretanto, nas seqüências em que Carol imagina estar sendo estuprada, Polanski optou pela ausência de som, como que acentuando a impotência da personagem diante da situação, pois apesar dos inúmeros gritos proferidos, nada se ouvia. Também merece atenção a atuação de uma jovem Catherine Deneuve, sempre com o olhar perdido e fora do mundo externo.
O primeiro plano já sugeria o tom do restante do filme. Um plano-detalhe sufocante de um olho apreensivo, que termina com o rosto de Carol, aérea. Dessa forma, Roman Polanski conduz uma obra sobre as paranóias e psicoses criadas pela sociedade moderna, que, apesar de se considerar progressista e libertária, não dá espaço para aqueles que não se adéquam aos seus costumes e ritmos, gerando todos os dias histórias trágicas como aquela vivida por Carol. É só ligar a TV e assistir ao jornal.
"razão e sensibilidade", por Pedro Coelho
Quem, como eu, foi buscar no filme a excepcional razão e sensibilidade de Ang Lee, decepciona-se. O filme não alcança a beleza plástica de O Tigre e o Dragão, tampouco sensibilidade psicológica de O Segredo de Brokeback Mountain, para citar os mais conhecidos filme do diretor. O crédito do filme é de Emma Thompson, que além de atriz, adaptou a obra homônima de Jane Austen para o cinema.
O filme se passa na Inglaterra do início do século XIX, onde a burguesia já havia subjugado a nobreza há mais de um século( portanto estavam mais livres do fogo revolucionário continental) e implementado uma revolução industrial que os tornava a maior potência da época. Mas a visão desta burguesia com ares aristocráticos é dada pelas duas finas filhas que após a morte do pai se vêem pobres vivendo com a mãe e a irmã mais nova em uma casa de campo emprestada por um parente distante.
Eleanor e Marianne, razão e sensibilidade, enfrentam a procura de um casamento sem dote e lidam com a pobreza imposta pelo destino. Enquanto a primeira vê a situação com a frieza do bom senso, a segunda se entrega de maneira apaixonada, porém idealizada. Todo o filme é permeado por essas dicotomias do titulo e das personagens: razão e sensibilidade, riqueza e pobreza, cidade e campo e por fim, e o Bem e o Mal.
O filme é recheado de estereótipos, talvez mais por conta dos duzentos anos que separam a realidade do livro da do filme e dos lucros da bilheteria do que pela incapacidade da escritora e do diretor. Mas os personagens não são tão rasos como seriam em outros filmes de Heritage. A estética do filme centrada nas dualidades faz que os personagens carreguem em si os opostos das suas tendências naturais e a revelação das ambigüidades internas dos personagens faz com que estes entrem em choque e servem como motor para a narrativa.
Dentro desta proposta o filme foi bem executado, e as indicações ao Oscar não negam. Mas não é o suficiente, as explosões de sensações que brotam do espírito humano (e que Ang Lee já mostou ser um bom tradutor) não foram devidamente exploradas. O filme não consegue ir além do próprio gênero. A forma do heritage não é satisfatória para alcançar as mais profundas sensações e reflexões e ir além do bem e do mal. A forma contamina o conteúdo: o retrato da época só serve para reafirmar os mesmo valores e uma visão simplista do mundo. Assim como para Ang Lee, nossa razão e nossa sensibilidade não foram intensamente demandadas.
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