sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Viagem à Itália – Rossellini, por Bruno Alves Ferreira


Dentro de sua baratinha, com o frescor do ar abafado de uma janela fechada lhe turvando os sentidos abalados pelo seu status de turista indefesa na terra de inocentes primatas italianos, Ingrid Bergman e o sr. Testabunda (é o que parece, sejamos francos) tem seu amor conjugal posto à prova pelo poderoso ardor do fazer nada.

Antes de retomar a história deixe-me argumentar um pouquinho sobre esta experiência singular que tanto sou experimentado: fiscal não-oficial da temperatura ambiente. A arte de fazer nada, ou melhor, como gosto de chamar, ficar à paisana sob uma paisagem distante interiorana é uma arte que contém muitas sutilezas. Primeiro, engana-se quem crê que fazer nada é apenas deitar na varanda como nossos protagonistas. O verdadeiro nada faz (só pra variar esta expressão tão íntima do meu ser) sabe que o estado de ócio puro é algo parecido como atingir um transe budista, só que sem o recitar dos mantras e com muito mais efemeridade. A mente deve esvaziar-se, seu ser derreter sob o sol Napolitano, seu corpo deixar-se tomar pela pressão relativa do ar, como um bebê entorpecido pela papinha nos braços de uma tia peluda.

Voltemos ao casal, antes que o leitor mais cinéfilo e menos filosofo perca-se no texto e volte à sua releitura do Pequeno Príncipe. Embora ainda tenha muito a dizer sobre a ociosidade. Ingrid Bergman, só “man” para os íntimos, mete-se nos cafundós deste país pequenucho mediterrânico (dizem que até europeu!) e junto com seu macho e sua testa de rêgo frondosa experimentam pela primeira vez a doce presença única de um ao outro. Peralá, oigalê, oxalá mano! Exclama o leitor incauto e com um vocabulário por demais eclético. Um casal que nunca teve seu “alone time” (inserção automática de expressão estrangeira para arregalar os olhos dos mais impressionáveis)? Como é que pode uma coisa dessa Batimã? Ainda mais com uma beldade com a ms. man ao seu lado? Só com muita dose de lico de cair o pinto, diria o curinga. Mas enfim, é isso. A presença do outro traz consigo dois males. A discussão da relação e o que fazer com ms. man quando se é um eunuco e Pong com entrada para dois jogadores ainda não foi inventado.

Relação discutida brevemente descobre-se algo que deveria ser mais óbvio que a elefantíase na testa do maridão: Não há relação. São um casal ligados através dos outros e quem sabe, casados através das expectativas dos outros (ecos de torneiras de pias de cozinhas britânicas suturam meus ouvidos com suas chamas do social realismo). Quando sozinhos descobrem-se desconhecidos com um rancor quase infinito que só é vencido pelo ímpeto de manterem-se à distância um dos outros. Ele procura fugir do ócio através de... Peralá!

Voltemos ao ócio enquanto a chama ardente (ai meu dedo!) da inspiração reflexiva dos enigmas da vida arde nas minhas entranhas (lá ele). É importante, que na sua atividade de não-atividade, a presença do outro seja eliminada de qualquer forma. De forma rude, dizendo-lhe um sonoro “Vá-te-se embora vade-retro satanás cruz credo da mão boba!” ou de maneira furtiva convidando-o para uma sessão morde fronha das tardes melodramáticas do TCM (Turner Classic Movies, só pra alongar este parágrafo). Também é importantíssimo cessar qualquer estímulo visual e sonoro que possam estimular algum mísero neurônio à cometer uma viagem milisegundos luz na sua massa cinzenta. Escutar música é estimular o cérebro. Então nada de trios mexicanos cantando o tema de Maria do Bairro. A verdadeira ociosidade é uma atividade de baixo custo glicósico. Tornas-te um semi-morto em contato com forças nunca dantes navegadas. Aliás, navegação, taí uma metáfora usada pelos projetos de paisanos que populam esse filme. Chegam à comparar a boa vida de ociosidade ao navegar de um navio, à deriva para onde o vento o levar. Meus filhos que não sabem o que dizem, derivar “il mare” é boiar, e boiar é oferecer resistência, é eliminar glicose preciosa no funcionamento da arte de não funcionar.

Os leitores mais espertos, com uma testa que não pareça a coxa do garoto Michelin como o maridão já notaram que eu não presto. Novamente enchendo a lingüiça com um vigor ímpar. Estou envergonhado e cessarei minhas reflexões por enquanto para me focar unicamente no filme.

Ele procura fugir do ócio atráves da comunhão boêmia (mulé). Ela procura através das cartas (haja paciência pra jogar paciência) e de homens sarados em mármore. Diga-me você leitor quem faz a melhor escolha e digo-te tua opção sexual. Enfim! O que a ms. man descobre é que sua vida é um verdadeiro vazio que aparentemente só pode ser preenchido pelo amor de um rebento. Deduzo isso através das inúmeras grávidas feiosas que apareceram durante o filme. O que o da testa peitoral descobre é que pegar mulher nem sempre é fácil, por mais oferecida que ela seja. Descobriu o Brasil.

Mas o meu tempo se encerra e meus comentários estão apenas começando... supostamente! Nunca confiem numa narrativa em primeira pessoa! Penso no que dizer e o tic-tac (do relógio adorável anta, não a bala) me empurra com tudo para uma conclusão incerta. Afinal, Bruno, tome vergonha na cara e sintetize uma opinião antes do fim desta resenha, me diz meu anjinho amiguinho de nome Vadinho que é personificado por este bigodinho ralo e charmoso.

Te atendo Vadinho! É um filme bacaninha que permite-se abster-se de certas convenções cinematográficas. É como um belo foda-se, ou com elegância, fornique-se para as regras do cinema. É um prazer assistir um filme que se abstêm de irrelevâncias como trama e direção. É um filme para se aproveitar da presença da ms. man em seus museus, vulcões e tumbas, com sua melancolia acentuada pela sua permanente cara de choro. Poxa, não tem pra mim? Pergunta-se ms. man cercada pela morte histórica. A resposta vem só no fim, aonde levada como uma lepre sendo surrado por uma gangue de tartarugas com machados, é socorrida pelo seu maridão e sua testa dentro de uma testa. Melodramaticamente, ou seja, de maneira tosca e irreal, meio kistch, meio brega, tipo assim, sacumé, tudo se conclui com um mudar de temperamento e humores mais mágicos que o cinegrafista que conseguiu enquadrar essa testa do maridão no filme. I love you, bebê! E seremos felizes para sempre. Kracauer concordará, pois chegou a dizer o alemão polêmicuzinho que o final feliz é mais adequado por dar uma sensação de continuidade. Teorias idiotas de lado. É o que recebemos. E tememos com este fim, happy together, pela eventual morte de ms. man esmagada pela testa pantagruélica do maridaço.

"Bande à part”, por Ana Lúcia Diniz



“ Para os atrasados que agora chegam, oferecemos umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: três semanas antes. Um monte de grana. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica” Essa frase, dita pelo narrador no início do filme, pode servir como um resumo da história que é contada em “Bande à part” (1964), de Jean-Luc Godard.

Parece simples, não é? De fato, o filme segue uma narrativa linear e não oferece grandes dificuldades de compreensão, principalmente se comparado a outras obras mais herméticas e pretensiosas do diretor. No entanto, se a frase dita pelo narrador pode servir para resumir a trama, não sintetiza , paradoxalmente, o filme. Não se trata aqui de uma escassez de palavras, é possível, seguindo a mesma ideia contida na frase , citar inúmeras outras: Dois rapazes. Três amigos. Odile, Frantz e Arthur. Um roubo. Um triângulo. A França... E ,por mais que essas palavras ajudem a completar o resumo da trama, não chegam nem perto de definir a experiência de assistir a este filme. É necessário vê-lo, é indispensável senti-lo.

Se, por um lado, a história é uma espécie de homenagem aos clássicos de gângster que Godard tanto gostava, por outro, como típica produção de um período de ruptura e redefinição que é a Nouvelle Vague, o filme também tem um caráter experimental e inovador em diversos aspectos. Em “Acossado” (1959) - outro filme de Godard aproximadamente da mesma época - o experimentalismo é enfatizado fundamentalmente no plano da imagem; tem-se, portanto, uma montagem inovadora, a exemplo da cena da perseguição de carro em que se utiliza pela primeira vez uma técnica chamada de “jump cut”: quando cortes consecutivos na imagem conseguem acelerar o ritmo da trama e paralelamente quebram a sensação de continuidade. Já em “Bande à part” o caráter experimental é perceptível principalmente no plano sonoro, talvez por isso se tenha a sensação de que as inovações nesse filme são mais sutis do que em “Acossado”.

Uma cena icônica - exemplo dessa ruptura - é quando os três personagens principais resolvem fazer um minuto de silêncio que é intensificado pela retirada total do som, inclusive dos ruídos do ambiente. Godard destrói , assim, o realismo e faz o silêncio transcender o plano ficcional. Outra cena em que a inovação se dá de maneira oposta mas também genial é quando Franz (Sami Frey) finge atirar em Arthur (Claude Brasseur), usando o dedo como revolver. Em vez da retirada, como na cena citada anteriormente , ocorre a inserção do som de um disparo, algo no mínimo ousado e que também questiona o conceito de realidade presente na trama.

É possível notar que, apesar de uma narrativa a princípio despretensiosa, “Bande à part” possui cenas que ficaram marcadas na história do cinema. Algumas delas serviram, inclusive, de inspiração a outros artistas. Bernardo Bertolucci em “Os Sonhadores” (2003) homenageia Godard quando os três protagonistas do seu filme ,Théo, Isabelle e Mathew, também correm pelo Louvre com o intuito de quebrar o record justamente conquistado pelo trio de Bande à part. Quentin Tarantino, além de colocá-lo como nome de sua produtora, é bastante influenciado por ele em “Pulp Fiction”(1994), pois a cena em que Uma Thurman dança com John Travolta é uma referência direta à do trio de Godard.

Essa cena em que os três personagens dançam no bar é influência não apenas para diretores de cinema, mas transcende ao ambiente da música e, inclusive, ao mundo televisivo. A banda Nouvelle Vague utilizou essa sequência como clipe da música “dance with me” e recentemente a série de televisão brasileira “ Aline” (2009) refilmou a cena ao som de “You Know I'm No Good” ( Amy Winehouse) com Pedro Neschling, Bernardo Marinho e Maria Flor incorporando o trio.

As cenas em “Bande à part” de fato encantam. A sensibilidade e delicadeza com que os personagens são filmados faz com que o espectador tenha prazer em observá-los nos mínimos detalhes. Anna Karina, esposa de Godard à época, que interpreta Odile, é filmada como se a câmera estivesse apaixonada por ela, seus olhos, no filme, aparecem realçados de tal maneira que é possível decifrar os sentimentos da personagem através deles.

Há quem diga que muitos filmes de Godard são verdadeiras aulas de cinema; em “Bande à part”, no entanto, em vez de aluno, o espectador se sente uma espécie de “cúmplice”. Cúmplice, claro, dos personagens no planejamento do roubo, mas – principalmente - cúmplice do diretor no ato de fazer cinema, descobrindo em sutilezas a metalinguagem que é recorrente nas obras de Godard e que torna esse filme encantador.

"Jules et Jim", por Marcílio Camelo


AVISO: SPOILERS!!

Assunto freqüente em filmes, o triângulo amoroso pode parecer tema sem muito valor para algumas pessoas, mas tudo depende da forma como é tratado. Truffaut traz para ao cinema uma história baseada no livro homônimo do escritor francês Henri-Pierre Rouché, e não faz a mínima questão de esconder o tom literal ao longo do filme. Pelo contrário, o diretor preenche a trama com diálogos vivos e narração em off, o que aparenta ser uma leitura visual de um livro, surpreendentemente interessante.

O filme retrata a França de 1912, onde uma amizade se inicia espontaneamente entre o austríaco Jules e o francês Jim, que é convidado para uma festa à fantasia pelo estrangeiro, mesmo sem se conhecerem. No início do filme Truffaut usa planos rápidos e curtos para montar o crescimento dessa amizade, que é pura, sem maldade. Vemos que os dois se divertem com namoricos, e chegam até a namorar uma mesma mulher, mas levianamente. Após o início veloz, somos apresentados a Gilberte, namorada de Jim, ela pede que ele não saia do seu quarto, mas o jovem não está disposto à estabilidade. Esse tipo de relação descompromissada que ambos os amigos costumavam ter com as mulheres é mostrado também quando Jules fala dos amores que deixou em sua terra. Nesse contexto, não era de se esperar que os dois sentissem um amor forte e duradouro por uma mulher. Mais estranho ainda seria eles dividirem um amor verdadeiro pela mesma mulher, o que estava por acontecer.

Quando Jules leva Jim para ver uns slides na casa de seu amigo músico Albert, ocorre um momento de fascinação pela figura de uma estátua feminina, um rosto que se fazia perfeição de mulher para ambos. Movidos pelo desejo, os dois vão ao museu numa ilha do mar Adriático e se deparam com a estátua, ficam admirando e depois retornam para casa. Jules conta a Jim da chegada a Paris de três moças que estudavam com um primo seu em Munique. Eles vão jantar com elas e acabam encontrando um rosto igual ao da estátua, é Catherine. Jules começa a sair com ela, sem a presença de Jim, mas depois o chama para um passeio a três. Porém, Catherine está vestida como homem, e assim os três se divertem na rua com seu disfarce. Quando chegam numa ponte, a moça aposta corrida com os rapazes, mas trapaceia e acaba vencendo. Uma metáfora da relação que se estabelecerá entre o trio.

Os três viajam para uma casa dita dos sonhos, junto à natureza, e desfrutam da amizade que amadurecia. É nesse cenário de isolamento da sociedade que Jules propõe casamento a Catherine, que não aceita, mas isso não deixa o rapaz magoado. Vemos aí a passividade que Jules manterá ao longo do filme em relação à sua amada. De volta a Paris, Catherine mostra sua personalidade forte e imprevisível quando se joga no rio em protesto aos comentários machistas de Jules. Ela quer ser sempre notada, jamais desprezada. Ela deve estar no comando, sempre à frente dos dois, como na corrida da ponte. Talvez para decidir algo importante na relação dos três, Catherine tenha marcado um encontro com Jim no dia seguinte. Mas devido ao atraso de ambos, eles não se encontram e a história toma um rumo diferente. Jules e Catherine se mudam para a Áustria e se casam. A Primeira Guerra Mundial irrompe, separando os amigos por vez.
Essa forte amizade resiste à guerra, na qual os amigos temem se matar enquanto seus países lutam contra si. Para retratar esse momento, Truffaut insere cenas de documentários bélicos, trazendo um tom realista. Enquanto isso, Jim mantém contato com Gilberte por correspondências e chega a se encontrar com ela por uma semana, mas o envolvimento dos dois continua inconsistente. Por outro lado, Jules troca cartas de amor com Catherine que, grávida, aguarda seu retorno. Com o fim da guerra, os amigos voltam a se escrever e Jim é convidado a ir visitar o casal.

Agora uma família completa, Jules, Catherine e a filha Sabine recebem o amigo no chalé próximo ao Reno. Jules fala de seu trabalho como pesquisador de insetos e Jim comenta que está escrevendo para um jornal francês. A aparente harmonia familiar, em que a esposa se situa como doméstica e mãe atenciosa, é perturbada quando Catherine mostra os aposentos da residência: o casal não dorme junto. À noite, Jules conversa a sós com o amigo e conta que seu casamento não é mais real, sua esposa não o trata mais como marido, apenas respeita-o na casa. Mas o amor de Jules é intenso e sem cobranças, ele aceita os amantes da esposa, só não quer que ela o deixe como chegou a fazê-lo por seis meses. Ironicamente, Catherine está prestes a abandoná-lo de novo, dessa vez para ficar com seu amante Albert, o mesmo músico que ‘apresentou’ ao amigo a beleza de Catherine em forma de estátua.

Uma vez ciente da situação, Jim conversa com Catherine e, durante um belo passeio pela mata, ela conta como deixou de amar Jules, que lhe pareceu um estranho ao voltar da guerra. Ele já não lhe era mais suficiente, já não lhe servia. Então, permeada por amores banais, amantes de diversão, Catherine assumia o papel do marido, do infiel na relação, e cedia a Jules a parte submissa da esposa resignada. Uma interessante inversão de valores dita as regras desse jogo amoroso que se encaminha para o trágico.

Jim não se deixa desejar a esposa do amigo, e o faz sem saber por quê. Mas a inibição é banida quando o próprio Jules lhe diz para amá-la e casar-se com ela, contanto que os três continuem se vendo. A absolvição de culpa faz com que Jim venha a morar no chalé. ‘Os três loucos’, como eram conhecidos na vila, estavam felizes com Sabine, morando juntos. Mas Jim teve de retornar a Paris por causa do seu trabalho. Assim, mais uma vez a felicidade é separada, e ficamos na dúvida de que ela iria retornar ou não.

Em sua filosofia, Catherine acreditava que o amor era curto, mas retornava constantemente. Suas aventuras de antes tinham acabado, ela estava disposta a esperar o seu amado. Porém, Jim volta para os braços de Gilberte, e adia seu retorno à Áustria. Os dois trocam cartas, e Catherine se pergunta se ele a ama. Até que ela nota a infidelidade de Jim, e se vinga dormindo com Albert, seu equivalente de Gilberte.

Finalmente Jim retorna e recomeça com Catherine sua história de amor, uma vez que ambos estão quites, mutuamente traídos. Dura pouco até que um novo problema surge: ela não consegue engravidar. O sonho do casamento e dos filhos começa a se destruir, juntamente com o relacionamento dos dois. Um novo fim aproxima-se, dentre tantas idas e vindas, tantos amores curtos que Jim e Catherine sentiram um pelo outro. Ele volta para Paris e troca cartas com ela, que se vê grávida e quer que ele retorne. Mas a doença de Jim o impede de voltar. Ele é cuidado por Gilberte, o que causa ciúmes e desconfiança a Catherine. Uma confusão com as cartas os afasta ainda mais. O relacionamento realmente acaba quando Catherine perde o filho que esperava.

Após algum tempo Jules e Catherine decidem morar em Paris. Albert continua sendo amante dela, e Jules permanece tolerante com a amada. O casal de fachada reencontra-se com Jim, que está noivo de Gilberte. Mas Catherine está mais desequilibrada e inconformada do que antes, assim, ela atrai Jim para sua casa e tenta sem êxito matá-lo com um revolver. Jim foge e eles só se vêem de novo casualmente em um cinema, com Jules presente. Os três saem no carro de Catherine e vão para um café perto de um lago. O alívio que Jim sentia por perceber uma frieza vinda de Catherine se fez curto, e um final definitivo apareceu para os dois: Catherine guiou seu carro até o abismo de uma ponte quebrada, matando a si e a quem ela muitas vezes amou.

Amor curto, longo, repentino, constante, intermitente, amor-paixão, amor-platônico, amor-amizade. Truffaut trata desses amores em seu filme nouvelle vagueano, amores tão diversos e complexos quanto aqueles que os sentem. A intensidade dos sentimentos vividos pelos personagens reforça o drama/tragédia desses seres confusos, ambíguos, que apenas agem, não tentam se explicar, que vivem e morrem por suas causas particulares desconhecidas. O único amor que consegue sobreviver aos encontros e desencontros do filme é o que une os dois amigos, permanecendo puro e admirável. A amizade de Jules et Jim.

“Beijos Proibidos”, de François Truffaut, por Renato Souto Maior



Antoine Doinel em plena juventude parisiense pode ser algo curioso de se observar, como um espião. O título em português, ao ser pessimamente traduzido, faz com que se perca boa parte do sentido e da relação do nome do filme com sua história. Em duas específicas cenas Doinel tenta roubar, literalmente, o beijo de duas igualmente jovens, em tom desastrado; e isso revela muito da personalidade de Antoine. Sua alcunha de incompreendido reaparece logo no início do longa, quando ele é expulso do militarismo por sua incapacidade de se adequar a tamanha mesquinhez e hipocrisia. O ano é 68, e as crises políticas e os conflitos de guerra fervem em um âmbito responsável pelo incidente no mês de maio daquele mesmo ano. A relação é colocada, mas não explorada. A câmera de Truffaut se debruça em um cotidiano por vezes “malandro”, com um estilo e ar de boêmia críveis e integrantes do personagem Doinel.

Sua dificuldade quase total – o quase por causa da sua pseudo-relação com Christine, jovem aparentemente disposta a ter algo com o “estranho” e problemático Doinel – em se relacionar com mulheres é explicitada nas tentativas do jovem em sair com prostitutas e insistir em beijá-las. O beijo do título em português está longe de ser proibido, de fato; é algo roubado, em tentativa. Depois de insucessos em vários empregos Antoine se encontra e vê em uma agência de detetives uma chance para exercitar e colocar em prática todo seu potencial de voyeur em ânsia para solucionar casos externos que acabam por lhe aparecer como “trabalho”. Doinel parece deslocado em uma sociedade não acolhedora ao seu jeito de ser e pensar. A solução, então, para este ajuste se dá perfeitamente adequada através de um emprego onde seu ofício é seguir e “investigar” a vida do outro, e não a sua própria. Como pessoa não pertencente ao meio em que vive, ele transita neste ambiente com transparência e facilidade próprias de uma pessoa física e socialmente desinteressante. A agência de investigação recebe alguns casos, e Antoine é encarregado de atuar em vários deles, com sucesso. O mais relevante dos pedidos é o de um dono de loja de sapatos que vai em busca de um detetive para descobrir o motivo pelo qual seus funcionários o odeiam. Em um trecho engraçado e inspirado o contratante se antecipa logo e diz que sim, é ali mesmo que quer estar, e não em um psicanalista.

O filme carrega uma narrativa leve, até ingênua, e o faz de maneira linear, comportada e muito bem filmada, mas previsível. O envolvimento de Antoine com a perfeita e intocável mulher do dono da loja no qual trabalha, a serviço de seu chefe detetive, aponta para uma possibilidade de deslumbre em uma via de seres humanos extremos. Quando o desengonçado e não muito atraente Antoine se vê assediado por uma mulher inquestionavelmente linda, as coisas parecem obter um estranho equilíbrio. A tal da “beleza interior” é o que parece ter atraído a suposta perfeita senhora, e o futuro do suposto relacionamento fica em suspenso. Truffaut coloca seu protagonista de volta ao convívio de Christine, sua amiga e pseudo-namorada do começo da trama, e parece ter nesta volta um fim possível. O incompreendido Antoine ensaia, finalmente, um possível “final feliz”. Ao passearem em parque parisiense, muito bem enquadrado, filmado e explorado, Truffaut revela um outro personagem, anteriormente mostrado, mas de forma sutil, como um segundo detetive, um olhar externo ao de Doinel. Ao se aproximar, vomitar um texto açucarado, e ir embora, o segundo “detetive”, ou vouyer, se declara a Christine, e confessa ter passado as últimas semanas a segui-la. Sua intenção é nobre, e verossímil, mas a estranheza com que se coloca faz Christine se amparar mais fortemente no já enlaçado Antoine. Em uma sucessão de “fracassos” e tentativas frustradas de adequação em ambiente estranho, Doinel é deixado, nesta produção, em situação muito favorável. O universo de “Beijos – sim – Roubados” sinaliza uma situação desfavorável, pela qual a própria França ultrapassava, que não parece atingir seus protagonistas. A ausência de um corpo, uma voz que seja, a retratar e ressaltar o turbulento período de 68 autentica e permite Doinel ser apenas um desengonçado, não muito atraente, rapaz boêmio de uma Paris suscetível ao puro e simples amor, roubado ou não; somente ele.

“Os Incompreendidos”, por Camilla Vanessa


"Os incompreendidos" narra a história de Antoine Doinel, um garoto de 14 anos que possui uma vida conturbada; professor carrasco, pais com o casamento em crise, falta de dinheiro, falta de compreensão, além de más influencias externas. Ele entra em várias enrascadas, foge, rouba etc.. Parece não conseguir paz.

O filme começa mostrando a Paris que todos conhecem, mostrando a Paris da torre Eiffel, mas o que ele tenta mostrar em seu desenrolar é a paris comum, de cidadãos comuns, que tem problemas a enfrentar.

Nessa obra que mistura ficção e documentário, Truffaut reforça a “infância de Jean Vigo” (em referência ao diretor que nos anos 30 fez o influente "Zero em Comportamento"), uma infância não mais inocente, mas cheia de problemas e responsabilidades. Hoje pode ser visto como mais um filme de infância/adolescência perturbada, mas deve-se levar em consideração seu poder de ruptura, não foi o primeiro a trazer este tipo de tema, mas a história envolvente e a forma delicada com que o tema foi tratado fazem com que se destaque e não seja esquecido facilmente. Diferente de vários filmes que tratam dessa mesma faixa etária, Truffaut deixa o personagem se fazer entender, faz com que ações atrapalhadas não sejam mais vistas como simples frutos de “Aborrescentes com nada na cabeça”, mas sim como uma espécie de fuga, de explosão sentimental. O filme não é cômico, nem melodramático, consegue um equilíbrio entre os dois. A fotografia ainda possui aspectos “conservadores”, com planos mais longos e distanciados do que era usado por outros diretores da Nouvelle Vague. Isso garante um envolvimento um pouco aberto do público, remetendo aos filmes do neo realismo italiano, os quais traziam histórias leves sem chegarem a ser um drama, e com um certo distanciamento que lembrava o documentário.

Deve-se dar destaque a cena final, de forma sutil, bela e delicada a câmera acompanha Doinel sem ser invasiva, mas mais uma vez fazendo do público, confidentes de sua vida.

"Viagem à Itália", por Igor Calado


Realizado em meio à paixão que arrancou Roberto Rossellini de sua musa anterior, Anna Magnani, e Ingrid Bergman de sua carreira e marido nos Estados Unidos, Viagem à Itália (Viaggio in Italia) é o terceiro filme de uma intensa colaboração artística, benéfica não só para o cinema (incluindo-se aí o nascimento da atriz Isabella Rossellini, filha do casal), como também para as revistas de fofoca da época.

O affair que uniu a estrela sueca de Hollywood ao nome forte do neo-realismo italiano recebeu críticas de todos os lados: Los Angeles ressentiu-se da fuga de sua atriz predileta; os moralistas europeus e, principalmente, americanos, condenaram a pouca vergonha; os intelectuais neo-realistas viram, a cada novo filme de Rossellini com a atriz, o distanciamento progressivo do realizador em relação à ideologia inicial do movimento. E os respectivos cônjuges, obviamente, não se sentiram confortáveis com um abandono “artístico-amoroso” tornado público.

A diferença entre este e os títulos mais icônicos do neo-realismo fica evidente desde a sinopse: um casal burguês britânico, Katherine e Alex Joyce (Bergman e George Sanders), viaja para Nápoles com o objetivo de vender a casa de um parente recentemente falecido; na jornada, repensam seu relacionamento, que entra em crise. Uma descrição que certamente remete mais aos casais problemático-existencialistas do diretor Ingmar Bergman que aos temas de guerra e preocupação social que marcaram a vanguarda italiana – assuntos presentes nos clássicos do movimento, como Ladrões de Bicicleta (1948), de De Sica, e Roma, cidade aberta (1945) e Paisá (1946), do próprio Rossellini. E essa heresia artística não foi bem digerida entre os italianos.

Em sua nova fase, iniciada pouco antes dos primeiros filmes com Ingrid, Rossellini sofreu duras críticas em seu país, apesar de ter sido saudado pela crítica francesa. A diferença de recepção a seus filmes culminou com uma carta escrita pelo crítico da Cahiers du Cinéma, André Bazin, endereçada a Guido Aristarco, editor-chefe da revista Cinema Nuovo,. Intitulado “Em defesa de Rossellini”, o texto se tornou testemunho da evolução do movimento, além de famosa e inteligente defesa do diretor.
A história do casal se passa calma e lentamente, sem acontecimentos marcantes, pontuada pelas saídas turísticas de Katherine (bastante semelhantes às peregrinações sem objetivo dos personagens do diretor Michelangelo Antonioni). Desde o início da película, dirigindo nas estradas italianas, os Joyce já sentem o estranhamento que se instala entre os dois quando deslocados de seu ambiente usual. As coisas pioram pouco a pouco, a cada comentário sarcástico, repreensão, discussão – e assim o diretor disseca um casamento burguês e a crueldade que faz parte dos relacionamentos, mas também sua beleza.

Apesar da câmera acompanhar as descobertas do casal britânico no país latino (e registrar suas reações e opiniões), a direção foge do erro comum do deslumbramento estrangeiro, filmando a paisagem e as peculiaridades da região sem exotismo. Isso se dá provavelmente graças à nacionalidade italiana do diretor, cuja familiaridade com o ambiente parece estar impressa nas imagens mais que as sensações do casal em relação ao lugar.

O uso de atores hollywoodianos, falando em inglês, também poderia ser uma ponto negativo do filme, mas tendo integrado esses elementos à história com maestria, Rossellini escapa novamente de um erro comum: o emprego da língua inglesa (e de elenco “internacional”) sem nenhum fim estético, o que acaba por deixar muito claro um viés comercial da escolha. A falta tem sido freqüente no cinema contemporâneo e certamente não contribui para o multiculturalismo; no que tange a isso, Viagem a Itália parece colaborar com as discussões, mesmo sem se aprofundar no tema.

Apesar das muitas diferenças com o movimento, elementos típicos do neo-realismo são facilmente observáveis no filme, principalmente a “desdramatização”, inovação amplamente difundida dentro da vanguarda e que a caracterizou fortemente. Essa técnica narrativa pregava a ênfase nas ações dos personagens, observadas com um distanciamento crítico em detrimento ao apelo emocional, e o abandono dos elementos típicos do “espetáculo”, até então comuns no cinema italiano.

Mas essas inovações foram incorporadas somente até certo ponto, porque o neo-realismo nunca se livrou completamente dos resquícios melodramáticos, tampouco restou imune às influências do noir americano, do qual era contemporâneo. Por mais que se prezasse por uma visão prosaica do que se passa na tela, os neo-realistas não se furtaram a despertar (manipular, talvez) a tristeza ou a compaixão do público com os sucessivos infortúnios de seus personagens, como as lágrimas de Bruno em Ladrões de Bicicleta e o próprio desfecho desse filme. Nem de empregar femmes fatales aqui e ali, como em Roma, cidade aberta, e criar personagens feitos sob medida para odiar, como em Alemanha ano zero.

Em Viagem à Itália, as brigas do casal têm pouco de sua carga emocional transmitida ao espectador, que não possui identificação clara com os personagens. Rossellini prefere empregar o já citado “distanciamento crítico”: a discussão é observada mais que sentida – abordagem que continua durante todo o filme. Nota-se aí a semelhança com o estilo documental da escola neo-realista, que dava considerável importância ao registro. Rossellini tenta o mesmo, com um efeito instigante: salvo raras ocasiões, os pensamentos dos personagens são relativamente inexplicados pelo diretor, sua linha de raciocínio é, na maior parte das vezes, oculta, obrigando-nos a um complicado esforço de empatia psicológica.

No plano formal, o rompimento é maior: há um abandono da estética do documentário, que privilegiava uma imagem acinzentada e uma câmera discreta. Rossellini opta por uma fotografia com movimentos simples, mas expressivos, e a manipulação estética do contraste, incluindo excesso de luz em diversos planos. Há também planos subjetivos pouco ortodoxos, que incluem inclinações de eixo e ângulos que fazem suspeitar se o plano é realmente um ponto-de-vista. A câmera continua, entretanto, a não tomar parte na ação.

A edição também é mais elaborada, criando confusões no espectador em determinados pontos: alguns planos, separados por cortes simples e que supomos que se sucedem no tempo, na verdade escondem uma elipse de tempo que só é percebida com algum atraso – e estranhamento.

O tratamento do espaço narrativo é sofisticado: de forma tênue, o diretor cria uma correlação entre os ambientes, notadamente os pontos turísticos visitados por Katherine, e o estado interno dos personagens. À medida que o abismo entre os dois se aprofunda, a inglesa conhece lugares cada vez mais mórbidos da região, começando por museus, passando por vulcões e chegando a templos repletos de caveiras. Esse artifício conhecerá seu aprofundamento máximo na obra de Antonioni, de forma menos temática e mais visual, através principalmente da composição.

O tema do casamento em crise já prenuncia uma problemática cara ao cinema moderno: possivelmente uma maladia social do pós-guerra (talvez aquilo que Antonioni chame de “Mal de Eros”), a crise do casamento e dos relacionamentos amorosos é tema recorrente nos filmes do período, a exemplo da filmografia do cineasta “existencialista” Ingmar Bergman (sem parentesco com a atriz); das obras do já citado Antonioni, em especial A Noite (1961); e nos filmes do cinema noir, que questionava as relações amorosas e de confiança entre os gêneros.

Uma crítica sutil aos personagens burgueses também é uma questão que será bastante aprofundada no cinema europeu do pós-guerra, especialmente por Antonioni e Federico Fellini. Uma passagem numa festa, quando a personagem de Bergman se diverte em meio aos italianos e o grupo discute o dolce far niente, lembra o clássico La Doce Vita (1960), de Fellini, retrato ácido da burguesia desse período.
O sobrenome Joyce também não parece ter sido uma escolha aleatória: remete ao escritor irlandês James Joyce, pilar da literatura modernista. E o esvaziamento narrativo que Rossellini emprega – um despojamento da trama em detrimento de outros aspectos estilísticos, a conhecida “história onde não acontece nada” – é outro recurso que se tornará comum no modernismo.

Contudo, ao contrário do pessimismo que tomará conta do cinema nas décadas seguintes, Rossellini encerra seu filme com uma boa dose de otimismo e com um espiritualismo que, freqüente no resto de sua obra, é outro ponto de divergência com o neo-realismo.

Apesar de elogios de André Bazin, François Truffaut e Jacques Rivette, críticos da Cahiers que perceberam no filme o início do cinema moderno, Viagem à Itália não foi bem sucedido nas bilheterias. De todo modo, sua influência não pode ser negada e o leque de inovações temáticas e estéticas do filme faz dos realizadores modernos eternos devedores de Rossellini.

“Fahrenheit 451”, por Mariana Fidelis



“Fahrenheit 451” é um filme de François Truffaut, lançado em 1966, adaptação do livro homônimo de Ray Bradbury de 1953. Sua trama desenrola-se no futuro, num país totalitário marcado pela censura cultural em que é proibida a posse e acesso a todo e qualquer tipo de livro. Nesse contexto os bombeiros tornam-se responsáveis por cumprir essa interdição através da caça e queima das obras literárias. Nosso personagem principal, um destes bombeiros, chama-se Guy Montag (Oskar Werner), distinto inicialmente pelo trabalho dedicado, um homem calado que apenas cumpre bem suas tarefas, digno da admiração de seus superiores, prestes a receber uma promoção. Ele é casado com Linda (Julie Christie), uma mulher que passa seus dias em casa, caracterizada pela forte influência e dominação que a televisão exerce em sua vida, basicamente uma mulher alienada que reproduz os valores passados através da programação televisiva, sem questioná-los.

Os argumentos utilizados para justificar a proibição aos livros são revelados na fala do Capitão à Montag quando encontram uma das maiores bibliotecas prestes a ser incendiada: 1) os livros são histórias tristes que causam infelicidade àqueles que as lêem, e tudo isso desnecessariamente, pois são inventadas, versando sobre pessoas e situações que nunca existiram; 2) os livros trazem de certa forma desigualdade entre os homens, pois instauram um universo de vaidades e arrogância entre eles. Dessa forma os livros são perseguidos, e devem ser banidos da sociedade. A ameaça trazida pelo conteúdo literário à manutenção do sistema governamental totalitário é transferida, sem justificativa e razão, para seu material, isto é, o objeto-livro, como nos mostra a cena em que Linda ao descobrir um livro que cai do seu esconderijo joga-o para longe, num gesto de medo e nojo.

O ponto de inflexão da trama é o encontro de Montag com Clarisse (Julie Christie), jovem que instaura um espírito de indagação, reflexão, e curiosidade no bombeiro, ao perguntar se ele alguma vez já havia lido um daqueles objetos que queima. A partir daí ele passa a ler escondido os livros que furta do trabalho.

Ao entrar em contato com o universo literário, descobre algo que havia se perdido na sua vida, considerada vazia, como se os livros resgatassem sentimentos e uma noção de humanidade até então esquecidos. A partir de presenciar a cena de uma mulher que prefere morrer queimada entre seus livros, Montag depara-se com a contraposição entre a paixão e os sentimentos envolvidos no universo literário e o vazio e a frieza da normalidade e mediocridade cotidiana. Essa contraposição transparece por exemplo quando ele lê o trecho de um livro para sua mulher e amigas, acusando-as de serem zumbis (“Vocês não vivem, apenas matam o tempo!”), ou quando traz a metáfora de que “por trás de cada livro há uma pessoa”, resgatando o sentido simbólico dos livros. Quer dizer, Montag reconhece nos livros uma humanidade que não encontra nas pessoas ao seu redor.

O contato com os livros lhe rende uma mudança de comportamento não só no trabalho, mas principalmente em casa, algo que é reprovado por sua mulher, que acaba por denunciá-lo para a própria corporação para a qual trabalha. Tendo sido descoberto por seus colegas de trabalho, Montag é obrigado a queimar seus livros em sua própria casa, salvando apenas um dentro da roupa, e acaba por assassinar seu chefe, o capitão da corporação, também queimado. Dessa forma ele torna-se um foragido procurado pela polícia, mas consegue fugir graças à referência dada pela sua amiga a jovem Clarisse de um grupo de pessoas admiradoras da literatura que moram nas florestas, fora das garras do estado.

Incomoda-me um pouco no filme essa mudança radical de atitude de nosso protagonista que passa de funcionário exemplar à fora da lei. Revela-me um pouco de superficialidade na construção da personalidade do personagem, que não possui muita consistência, mudando sua atitude de um lado para outro, sem um motivo aparente muito forte (a não ser pela conversa uma vez apenas com Clarisse). De forma que, se é tolerada a passagem de bombeiro exemplar à admirador da literatura de uma hora para outra, por que não seria aceitável por exemplo que sua mulher Linda o apoiasse ao invés de denunciá-lo? Isso para mim não fez muito sentido.

A questão do controle social pelo sistema de comunicação estatal através da presença e influência da televisão na vida das pessoas, tácita durante todo o filme (por exemplo no comentário da vizinha de Clarisse, que chama atenção para o fato de todas as casas possuírem antena parabólica), revela-se finalmente na manipulação de informações quanto ao paradeiro de Montag quando, após de chegar a essa comunidade na floresta, assiste a encenação de sua própria morte na televisão. Engraçado que essa manipulação e controle sociais sejam tão claramente revelados apenas para aqueles que já estão do lado de fora do sistema.

Nossa trama se desenrola, portanto, no contexto de uma sociedade totalitária que exerce seu poder de controle social institucionalmente através da polícia e dos bombeiros, e também culturalmente através do forte sistema televisivo de comunicação. Esse cenário faz parte de uma tendência literária dos anos 50 e 60, época de uma sociedade apreensiva marcada pelo totalitarismo do mundo pós-guerra, conhecida como “distopia” – ao lado por exemplo de “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa tendência pode ser caracterizada pelo pessimismo quanto ao futuro, geralmente marcado pela presença de um estado totalitário e opressivo, baseado no controle e na manipulação social exercida pelas tecnologias sobre a vida das pessoas, e justificado no motivo de uma “ameaça constante” que deve ser combatida (seja a ameaça de outros países combatida com guerras, seja, no caso do nosso filme, na ameaça que os livros trazem para a igualdade e felicidade das pessoas).


Quanto ao formato do filme, não vejo muitas aproximações com as inovações trazidas pela Nouvelle Vague, como por exemplo a estrutura fragmentada de narração. Apesar de Truffaut ser um dos diretores mas representativos do movimento, esse filme é um pouco diferenciado dos outros talvez por ser uma ficção cientifica, ou por ter sido gravado fora da França e em inglês.

Um dos pontos que podemos destacar de proximidade em relação à outras obras da Nouvelle Vague é a questão da autorreferência, não só na dupla atuação da atriz Julie Christie, como Linda e Clarisse (o que enfatiza ainda mais a contraposição em relação a personalidade das duas mulheres), mas também pelo enquadramento dado nos livros nas cenas de incêndio, quando surge a oportunidade de fazer referencia às influências do movimento, como Sartre, os Cahiers du Cinema, ou o próprio Ray Bradbury, autor do livro que dá origem ao filme.

Do ponto de vista estético, a construção dos cenários da sociedade futurista é marcada por cores fortes, embora possamos dizer que a ficção cientifica não é o apelo mais forte do filme. A não ser pelo metrô suspenso (o que deve ter custado caro para a produção), o modelo das televisões (finas, de tela grande, pregadas na parede, com opções de interação), e pela (tosca) cena dos policiais voadores já quase no final do filme (durante a perseguição à Montag), acredito que as referências estéticas sejam muito mais atuais que futuristas, como a arquitetura das casas e as roupas das mulheres.

A afinidade com a Nouvelle Vague e que o filme tornou extremamente atual, apesar da moldura futurista, deve-se principalmente à temática. A questão da censura, da luta contra a indústria cultural e a sociedade do consumo estão presentes no filme, através do argumento de salvação da cultura humana pelos livros, sem os quais “todo o conhecimento humano desapareceria”.

É a partir daí que analisamos o desfecho da história, na relação entre cultura e memória. A literatura, e a tradição escrita em geral, surge como uma tentativa de perenizar a(s) história(s) humana(s) no tempo, porém, tendo em vista a proibição em relação aos livros, não resta outra alternativa a não ser um retorno à oralidade. Numa volta à tradição de civilizações antigas que repassavam suas historias através do falar/narrar/contar, a comunidade das “pessoas-livro” resiste pelo esforço de uma forma diferente de relação com os conteúdos da cultura, sem a mediação dos livros, mas apenas através da memória e da oralidade.

A comunidade das “pessoas-livro” isolada na floresta revela a arquitetura da sociedade totalitária e opressiva da cidade, que na interdição do acesso à cultura, do acesso aos livros, pretende o sufocamento de qualquer possibilidade de crítica e oposição ao sistema. Resta apenas a possibilidade de se localizar completamente fora dessa sociedade, viver como outsiders, que recuam e recusam o confronto direto com a autoridade. Preferem a fuga, e ficam a espera do dia em que possam reproduzir aqueles textos que memorizaram fielmente para que sejam impressos de novo. Por isso, no comentário ao filme, Truffaut destaca o caráter do elogio à astúcia que perpassa o filme:

“Não pretendi transmitir qualquer mensagem, mas apenas mostrar uma forma de luta contra a autoridade arbitrária. [...] Sou contra a violência e a intolerância porque elas significam confronto. [...] Se quero alguma coisa, o meu desejo é tão intenso que não perco tempo com discussões. [...] Para mim, quem substitui a violência é a fuga, não a fuga do essencial, mas a fuga para se obter o essencial. Creio ter ilustrado isso em ´Fahrenheit 451´. É um aspecto do filme que escapou a todo mundo e me parece importante: a apologia da astúcia. ´Ah, então os livros estão proibidos? Então, muito bem, vamos aprendê-los de cor´. É o supra-sumo da astúcia.” (Truffaut, 1966, disponível em: )

A título de opinião pessoal sobre a obra, “Fahrenheit 451” é por fim um filme que recomendo não só pelo seu caráter político, mas principalmente por seu caráter poético na representação de um amor à literatura e à cultura do livro impresso, que perde cada vez mais seu espaço para outras formas de divulgação, em especial no meio digital.

“Os Incompreendidos”, por Natália Tavares


Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) só tem um momento de fraqueza. Dentre tantos outros, esse é um dos aspectos do primeiro longa de Truffaut que mais me chamou atenção. Impossível não se emocionar com Doinel quando ele chora no carro da polícia sendo transferido para a prisão, observando as ruas da cidade, único momento em que a fragilidade de uma infância prematuramente perdida aparece na tela. O que demonstra também outro traço importante do filme, a personalidade do personagem principal. Uma criança que amadureceu cedo demais, seja pela vontade de viver sua própria vida, independente dos pais e da escola, seja pela ausência de suas figuras paternas que não conseguem preservar sua inocência infantil.

A rebeldia de Antoine se reflete nas fugas de casa, nos pequenos roubos e no descaso com sua educação e acredito que seja fruto de sua relação com a mãe (Claire Maurier), que pouco demonstra afeto por ele - desejando tê-lo abortado e deixando-o aos cuidados da avó nos primeiros anos de vida – e pouco respeita sua família, ao trair o marido (Albert Rémy). Antoine, ainda criança, é exposto a tudo isso. Ele é sim um garoto gentil quando é encorajado, como na cena em que toda a família vai ao cinema, e ele tem um momento feliz junto aos pais. Porém, esses momentos são raros em seu cotidiano, prevalecendo as constantes brigas entre os pais que o menino consegue ouvir pela porta. Seu modo de escapar de tudo isso são suas fugas de casa, a fascinação pelo cinema e a amizade com René (Patrick Auffay). É assim que Antoine busca fugir de uma conturbada relação com a família e de uma educação aparentemente tirana e injusta.

Truffaut fez um belíssimo filme sobre a juventude de uma época. Apesar dos difíceis dilemas vividos pelo personagem principal, o filme não perde a beleza e a suavidade típicas da juventude, como na cena em que as criancinhas francesas estão assistindo ao teatro de fantoches, com seus olhinhos vidrados, ou nos pequenos toques de humor durante o todo o filme. A juventude de uma Europa do pós-guerra, no contexto da Guerra Fria é representada na tela. De fato, a rebeldia de Antoine Doinel, sua não inocência, e as situações por ele enfrentadas são reflexo de um contexto social que Truffaut aborda com alguns traços autobiográficos.

O filme é em grande parte construído por meio de planos sequência, são poucos os diálogos feitos em plano-contraplano, o que pode ter ajudado a criar a natural atuação do então jovem Jean-Pierre Léaud, que por sua vez deu um toque de naturalidade a todo o filme. A cena final, em que Antoine foge do reformatório também é em plano sequência. Ele vai parar em tal lugar por roubar uma máquina de datilografar da empresa onde o pai trabalha, e é pego ao tentar devolvê-la. Para dar uma lição em Antoine, seu pai decide entregá-lo à polícia. No reformatório, ele conhece muitos outros meninos delinqüentes juvenis que poderiam influenciá-lo a ser ainda mais criminoso. Por fim, Antoine consegue fugir do reformatório e nessa final, é interessante observar como a história dele não acaba ali, e sim deixa para ser contada nos outros filmes da trilogia. Antoine corre, corre e corre, chega na beira do mar, brinca com a água, olha para a câmera, close em sua imagem estática e “fin”. A vontade que tenho é de ver os outros dois filmes da trilogia.

"Jules et Jim", por Lady Patrícia Oliveira



Para os jovens realizadores da Nouvelle Vague francesa, a palavra de ordem era ruptura, ainda que muitas obras resultassem da incorporação de diversos elementos presentes na cultura daquele período. Fã do cinema clássico e apaixonado por literatura, François Truffaut reúne um pouco dos dois em seu filme Jules e Jim, Uma Mulher Para Dois (1962), um dos filmes mais representativos do movimento.
As dores e delícias, as vicissitudes e as mesmices das relações humanas são narradas por Truffaut através de um complicado triângulo: o alemão Jules e o francês Jim são amigos inseparáveis, que dividem até mesmo as conquistas amorosas, até que conhecem a bela Catherine. Ela casa com Jules, mas entediada com a pacata vida de dona de casa e a passividade do marido, dá início a um romance com Jim. Extremamente passional, Jules aceita, e até incentiva a relação de sua esposa e seu melhor amigo, com medo de perder ambos.

Logo na abertura do longa, Truffaut chama a atenção para seu estilo, que vai além das características da Nouvelle Vague, surpreendendo o espectador também ao longo do filme, pela maneira que escolheu para contar a sua história: cortes rápidos, tomadas panorâmicas, o quadro que fecha em close no rosto dos personagens, fotogramas pausados no meio de uma ação ou fala... até um insuspeito letreiro. Adaptado do romance de Henri-Pierre Roché, a influência da literatura também se faz sentir através de um narrador onipresente, o que pode contribuir para a compreensão da narrativa em suas diversas passagens de tempo, embora seja desnecessário em alguns momentos, como descrever as emoções dos personagens enquanto estes aparecem na tela, explicitando demais o que poderia ficar implícito – só os mais desatentos não notariam a cobiça nos olhos de Jim, o cinismo de Catherine e a ingenuidade de Jules.

O trio, aliás, é uma atração à parte. Numa trama que poderia ser simples, Catherine, Jules e Jim trazem a complexidade necessária para o triângulo, ao mostrar o estranho modo de amar de uma mulher, e de dois amigos que criam uma dependência em torno dela, satisfazendo todos os seus caprichos, enquanto ela os domina e manipula, tomando até a iniciativa de “romper” o relacionamento a três de forma inesperada. Boas atuações, sobretudo dos dois rapazes, que conferem verossimilhança e dignidade à amizade entre Jim e Jules, algo que nem mesmo a Guerra pôde destruir. Já o promissor carisma de Catherine por vezes se perde, transformando a personagem numa figura voluntariosa e egoísta, contrariando o título do filme: uma mulher que não é para dois, é só para si mesma.

Ainda que o filme tenha lugar nas primeiras décadas do século XX, Truffaut pegava carona no feminismo crescente dos anos 60 para colocar a volúvel Catherine como o pilar da tríade. O diretor desejava apenas reinventar o já tão dissecado tema do amor a três através da inversão de papéis, a mulher independente e o homem submisso, uma abordagem temática que não causa mais estranheza no espectador de hoje. Todavia, sempre é válida a reflexão que fica posteriormente: a transitoriedade das relações amorosas versus a solidez da verdadeira amizade.

"Viagem à Itália", por Natália Ribeiro Barreto


Durante uma viagem à Nápoles, um casal, visivelmente burguês, é obrigado a lidar com os entraves de um casamento em crise e reconhecer o fato de que se desconhecem, mesmo após oito anos juntos. Pela própria diferenciação do enredo, com Viagem à Itália, Rosselini extrapola os anseios neorrealistas no que diz respeito à apreensão de um real flagrante, configurado numa estética crítica e politicamente comprometida. Com um estilo despojado e, ao mesmo tempo, profundo, Rossellini atua como o “diretor-curioso”, que extrai o ficcional a partir de uma observação atenta das coisas ao seu redor, permanecendo sensível aos conflitos psicológicos dos sujeitos atuantes na história.

Nesse sentido, somos quase que convidados, juntamente com as personagens, a descobrir as paisagens napolitanas e seu universo épico. Assim como o diretor, as personagens principais, Alex Joyce (George Sanders) e Katherine Joyce (Ingrid Bergman), demonstram a nítida ânsia do olhar, do conhecer e do vivenciar. Enquanto a pretensão de Alex, na viagem, resume-se à diversão com os amigos e ao contato com outras mulheres, Katherine quer registrar sua visita com passeios aos museus e monumentos históricos.

Assim, ambos circulam pelos cenários em busca de novos sentidos e descobertas, contudo, o fazem por caminhos divergentes, o que constitui um paradoxo a ideia de casal. Ao mesmo tempo em que não se suportam, eles insistem em fazer “jogos neuróticos”, com acusações, demonstrações de ciúme, confissões arrependidas e irônicas.

Curiosamente, há na história personagens que exercem papel narrativo, mesmo não estando, concretamente, presentes. É o caso do tio Michael e do poeta da juventude de Katherine, Charles. O primeiro ainda evoca a memória da guerra presente no fluxo de consciência social; já o segundo, representa o que há de mais imaterial e transcendente no ser humano.

A fluidez narrativa requerida por Rossellini configura-se na flexibilidade do roteiro de seus filmes, com personagens pouco encenados, no intuito de que a espontaneidade dos atores pudesse doar maior vivacidade aos personagens. Se Ingrid Bergman - esposa de Rossellini na época - já se mostrava acostumada a esse método, George Sanders incomodava-se.

Nas palavras do próprio Rossellini, “Viagem à Itália mostra esta atmosfera na qual se encontra misturado um sentimento bem real, bem imediato e profundo, o sentimento da vida eterna que é algo que desapareceu completamente do mundo” (ROSSELLINI: 1984). Os passeios de Katherine pelas ruas de Nápoles, enquanto olha casais de namorados, mulheres grávidas e carrinhos de bebê, constitui uma metáfora da própria vida, no que esta tem de efêmera e permanente. O próprio Jacques Rivette, ressalta, em Viagem à Itália, a capacidade de Rossellini produzir uma obra de sentido tão denso, a partir de elementos tão simples: um casal e um carro. Ainda de acordo com ele, Katherine e Alex seriam os seres mal configurados pelo tédio e pela inexatidão de suas existências.

O elemento religioso permeia toda a trama, seja materializado nas inúmeras igrejas, imagens de santos e procissões ou embutido no ânimo dos personagens. Uma vez que o divórcio mostra-se iminente e inevitável, Katherine representa - mesmo não sendo entregue a beatices - aquela que espera e crê, constantemente, num milagre que venha a salvar seu casamento, enquanto, Alex, descrente, resigna-se e demonstra indiferença. O milagre, ironicamente, vem, não da força sobrenatural que os atinge, mas da própria iniciativa do casal: ao perceberem que não conseguiriam se afastar, declaram-se e unem-se, o que remete, indiretamente, à cena na qual os restos do casal, mortos juntos em Pompéia, são encontrados. Mesmo que os amantes sejam o elemento passageiro, o sentimento que os enlaça é perene.

"Roma, Cidade Aberta... Para o Neo-Realismo", por Wilson Rocha


Roberto Rosselini sempre foi um outsider. Quando Hollywood o convocou para dirigir filmes na indústria cinematográfica mais profissional do planeta ele recusou, pois não acreditava num cinema que se pusesse à margem da população e que se exprimisse apenas o que era comercialmente válido. Ele era contra o chamado star system tendo em vista não concordar no distanciamento e na aura de celebridade construída pelos donos dos estúdios americano em torno de seus atores e atrizes.

Roma, Cidade Aberta marcou, simbolicamente, o início de um movimento que vinha se formando há anos atrás e que teve origem durante o regime fascista de Mussolini tendo firmado-se no pós-guerra: o neo-realismo. Este movimento cine-artístico fundamentou uma estética na linguagem do cinema mundial influenciando diretores do mundo todo, quando vários diretores italianos como Vittoria De Sica e Luchino Viscontti, dispondo de poucos recursos, provaram que era possível fazer um cinema de alto nível, utilizando atores não profissionais e locações externas e reais para retratar os dramas e problemas ligados ao cidadão comum e a sociedade em que ele está vinculado num contexto de denúncia e crítica.

Não foi um movimento consciente como se deu com a nouvelle vague e seus ditames expressos e definidos via o oráculo Cahiers du Cinema - André Bazin. As condições econômicas e estruturais de um período de guerra e pós-guerra determinaram uma limitação de se fazer filmes de forma extremamente econômica. O talento, a sensibilidade, a criatividade e a improvisação foram os grandes destaques dessas produções.

Em Roma, Cidade Aberta (um dos filmes que juntamente com Paisá, de 1946, e Alemanha Grau Zero, de 1948, fazem parte da trilogia da guerra dirigida pelo mesmo cineasta) Rosselini mostra um episódio no qual a força invasora realiza investigações contra grupos de libertação que lutam contra a invasão dos germânicos no país.
Comovente pela força melodramática que está embutida na própria história, Roma Cidade Aberta transforma em heróis a massacrada população proletária de uma bairro em roma no período de dominação alemã, que, embora resistente e engajada, sucumbe, por vezes, aos assaltos das forças invasoras.

Pina (Anna Magnani, uma das poucas intérpretes profissionais) grávida e assassinada pelos policiais ao correr atrás do caminhão que mantém preso o seu marido, rebelde às forças de ocupação, é uma das cenas mais trágicas da cinematografia mundial.
As crianças se situam dentro de uma esfera de ingenuidade parcialmente corrompida, organizando-se em milícia contra os agentes agressores, mas ao mesmo tempo subordinando-se aos castigos das palmadas de seus pais e as aulas de catecismo. A indicação do que é aceitável é evidente neste paradoxo comportamental.

Os dramas vão se sobrepondo em proporções dolorosas e irremediavelmente previsíveis (puro neo-realismo). O cerco armado pelas forças alemãs estão se fechando cada vez mais e com a ajuda de informantes, o chefe nazista encarregado de dissolver a organização guerrilheira italiana, o major Fritz , vai juntando pistas que acabarão levando suas forças aos cortiços de Roma ameaçando a segurança não só dos fugitivos ativistas italianos como a de suas famílias.

O filme todavia mescla situações de comédia e de sátira o que proporciona mais leveza e uma dose de humor inteligente a um tema com essa densidade. A cena em que o Padre e o coroinha tentam disfarçar seus reais motivos para adentrar num prédio desocupado pela gestapo tendo como mote a realização da cerimônia de unção de um doente é digna de figurar entre uma das melhores da história. Outro momento polêmico é o do saque a padaria, que num determinado momento é condenado pelo sacristão, até que o mesmo convencido pela fome se junta aos ‘criminosos’ na apropriação dos pães.

Outra marca importante do diretor italiano é a sua crença religiosa e ela mais do que em outros trabalhos desta fase do diretor, aparece nitidamente. Ele destaca a influencia da religião como agente não apenas da manutenção da fé mas também da liberdade. Em todo o conjunto de sua obra, Rosselini promove a necessidade de uma atuação concreta por parte da igreja católica frente as dificuldade enfrentadas pela comunidade e em Roma, Cidade Aberta, isso é ponto chave. Dessa forma o padre detém o foco principal durante o filme. Ele é o contrapeso que impede a violência total, mas que proíbe a inércia e a omissão.

O neo-realismo provou numa época dominada pelas suntuosas produções da época de ouro do cinema norte-americano, que se podia fazer filmes atraentes e de qualidade, sem um alto investimento e conectados a realidade.

"É uma puta" - Lola, de Jacques Demy, por Caio Cagliani



Romances são, em sua grande maioria, narrativas superficiais quando vistos no cinema. A fórmula é batida e todo mundo já conhece: O garoto conhece a garota, apaixonam-se, acontece um desentendimento, no final todo mundo resolve suas desavenças e em 95% dos casos tudo acaba bem (e em casamento). Quanto ao desentendimento, geralmente é um mal-entendido que quase sempre se resolve. Nas histórias de amor, ninguém é mau caráter, a não ser o vilão, geralmente um ex-namorado, ou algum dos pais, ou futuro pretendente de algum dos componentes do casal.

Perceba a diferença: romance na vida de uma dançarina de cabaré é coisa de um passado que vive apenas na memória de Lola. O amor se foi já se tem quase sete anos. Hoje, Lola vive na esperança de um reencontro. De outro lado, Roland Cassard, apaixonado, não vê sua amada Cécile há muito temhttp://www.blogger.com/img/blank.gifpo, pois a perdeu de vista após a Guerra. Vive então entediado em Nantes, querendo sair da cidade que para ele não possui graça nenhuma. Não dura nos empregos por conta desse marasmo que o rodeia e é logo demitido. Na busca de um novo trabalho, esbarra em uma figura do passado: é Cécile, hoje dançarina de cabaré. Se você acha que é bom em matemática, somará a + b e... cometerá um erro. Nisso, o filme de Jacques Demy já se mostra alheio a equações primárias, e engrossa o caldo dando mais realismo à história de amor.

Amor de verdade é assim: nem sempre é compreendido. Roland ama Lola, que ama outro (que não dá notícias) e em seu caminho ainda existe um marinheiro com quem a dançarina se relaciona. Tudo isso na cara lavada, negando as investidas sinceras de Cassard. A desfaçatez de Cécile perante o (ainda) honesto rapaz faz com que você em determinado momento chegue a pensar ‘É uma PUTA!’. Se pensar assim, garanto, não será o único. Quando as coisas nos romances não acontecem como o esperado, é mais do que natural esse sentimento de revolta. Julgam-se as atitudes, e, venhamos e convenhamos: neste caso ela ‘deu’ pra outro, mas não ‘dá’ pro cara que a ama? É uma PUTA.

Mas Lola tem seus motivos, assim como na vida real as pessoas têm seus motivos. São personagens com três dimensões, assim como possuímos três dimensões. O filme, com seus ciclos e repetições, deixa mais do que claro como as coisas funcionam: meninas se apaixonarão e serão mal interpretadas pelos seus pretendentes, egoístas no seu julgamento. Como o filme de Demy espelha romances reais, acaba por tornar-se muito mais interessante do que qualquer outro com seus corações de plástico e beijos antes dos créditos.

Demy ainda adiciona outros elementos à sua trama. São repetições de histórias e acontecimentos, personagens se cruzando ou evocando ações passadas, num delicioso Déjà Vu. Praticamente toda situação ganha um par: existirão duas Céciles, dois romances infantis, dois cabelereiros, enfim, existirão análogos à várias coisas. Não se engane, pois o cineasta foge das convergências improváveis que permeiam filmes com subtramas que se cruzam perto do fim. A impressão que fica é que em Lola, seja por qual razão, o ambiente de Nantes evoca certo tipo de comportamento que, mesmo sem querer, ecoa outro, o que acaba nivelando tudo por lá. Talvez seja esta a fonte do marasmo que Cassard tanto quer fugir.

Em sua filmografia, o cineasta levará essa tendência a se repetir mais a sério. Não fará como outros, que geralmente trabalham sempre com sua musa (ou muso), dando nesta parceria uma unidade à sua obra. Em outros filmes, não só atores serão revistos, mas personagens reaparecerão e costumeiramente ambientes também. A uniformidade da sua obra virá deste universo, criado por ele a partir de Lola. Manterá o realismo de seu primeiro longa-metragem em um filme todo cantado, graças a personagens (e ações) verossímeis, coerentes com sua estreia.

"Acossado" por Lucas Freire


“Uma pessoa sente-se tão só num set de filmagem,
como diante de uma página em branco”¹
Jean-Luc Godard


Se existe uma palavra que capta toda a essência do filme Acossado (1959) do então jovem diretor Jean-Luc Godard é essa: ruptura. Acossado rompe com diversas barreiras estilísticas, inova na estética, surpreende no roteiro, e tudo isso ocorre no início dos anos 60, década essa na qual o cinema clássico americano e o cinema conservador francês se encontravam profundamente consolidados no âmbito cultural e nas ditas indústrias cinematográficas.

No filme, acompanhamos a rotina de um típico deliquente francês, Michel, que não possui grandes pretensões, aparenta estar alheio à sociedade e vive de pequenos golpes. Porém, logo ao início da trama, a ação que transcorrerá todo o filme nos é mostrada: por causa do roubo de um carro, Michel (o feio-bonito-charmoso Jean Paul Belmondo) acaba baleando e matando um policial que o perseguia, a partir daí, o protagonista passa a fugir da polícia. Nesta fuga, Michel revê algumas garotas do seu passado até encontrar a belíssima Patrícia (interpretada pela Jean seberg), uma jovem garota americana que sobrevive escrevendo artigos e vendendo exemplares do New York Herald Tribune em plena Champs-Elysèe.

Lendo-se apenas a sinopse, é comum imaginar que Acossado seja apenas um filme de perseguição policial. Sua relevância não se encontra na simples história, mas sim na forma que foi produzido e elaborado todo o projeto cinematográfico. O filme transgride em todos os setores: desde a elaboração do roteiro, no qual François Truffaut (ainda amigos) concedeu a ideia a Godard, até a sua montagem.

Acossado não possuía de fato um roteiro, Godard tinha em mãos a ideia inicial e um amontoado de anotações. Eis então que ele decide ir para o set de filmagens sem um roteiro pronto, sem delimitações. Daí surge a primeira ruptura com os roteiros tipicamente americanos, nos quais tudo está explicitamente destrinchado, cada plano, cada fala, cada posicionamento está dentro dos limites do roteiro. Godard passa por cima de tudo isso e parte para as filmagens sem quaisquer amarras no roteiro. A livre inspiração era o ponto dominante.

Godard, na direção dos atores, mais uma vez opta pela liberdade de atuação. Contrariando novamente os ditos cânones do cinema americano, nos quais os atores são presos a marcas, posicionamentos, expressões faciais, controlando então cada pulso do artista, Jean-Luc Godard desenvolve um trabalho de atuação com Belmondo e Seberg que os permite fugir do texto livremente, deixando-os aptos a improvisar dentro das cenas.

Talvez na montagem tenha ocorrido a inovação mais notória para a sociedade da época. Godard utiliza os hoje famosos (graças aos videoclipes e filmes de ação) jump-cuts e o falso raccord que ainda hoje é visto como um erro cinematográfico. O jump-cut consiste no corte abrupto da cena durante uma ação do personagem. Quando nos grandes estúdios cinematográficos usavam a montagem de forma que não quebrasse de maneira alguma a continuidade da ação, Godard ignora tudo isso usando de jump-cut, como na famosa cena do carro, na qual Michel e Patrícia passeiam de carro por Paris, admirando diversas paisagens sequenciadas. O uso dessas técnicas na montagem tem um propósito claro. Godard nos quer evidenciar que aquilo que é visto no cinema não se trata da realidade, realidade essa que o cinema clássico vigente na época tentava passar para a sociedade. Esses artifícios de edição quebram com a ideia do cinema ilusionista tão difundido pelos grandes estúdios e disseminam uma nova ótica diante da edição cinematográfica.

Devido ao uso dos jump-cuts e da improvisação proposital dos atores, o filme todo possui um ritmo acelerado, dinâmico, bem característico dos filmes de perseguição. Somente em um momento essa velocidade da trama é quebrada: na cena em que os dois protagonistas, Michel e Patrícia, estão no quarto, fumando, divagando sobre histórias, idéias e questões da vida. Esta cena caracteriza bem a nova estética proposta por Godard. Nesta conversa, pode-se compreender o existencialismo presente no personagem Michel, e sua necessidade de se afirmar na sociedade (vide os momentos em que ele mente para si mesmo, criando histórias e fatos da sua própria vida). Em meio a tudo isso, citações explícitas de pintores e escritores clássicos confirmam um aspecto intertextual. É nesta cena então que Godard propõe uma fusão entre a pós-modernidade (jumps-cuts, improvisação, desprendimento com o roteiro) e o clássico(temática comum, valorização das artes clássicas).

Pode-se dizer que várias dessas inovações só ocorreram graças às precárias condições da produção, mas isso não tira de forma alguma os méritos de Godard e sua equipe. Muito pelo contrário, só evidenciam mais uma inovação: a capacidade de fazer filmes de qualidade sem seguir qualquer regimento clássico do cinema. Por esses e por muitos outros motivos, Acossado contribuiu e ainda contribui para a cinematografia mundial. Quanto a Goddard, eliminou barreiras estilísticas e criou diversas outras teorias que hoje servem de estudo para todo o mundo. Quanto a Acossado, deixou de ser apenas um filme para então compor um fato histórico do cinema mundial.

Bibliografia:
EBERT, Roger. (2005). Grandes filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, pp. 33-37.
TIRARD, Laurent. (2002). Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, PP. 239-252.

Webgrafia:
http://www.accirs.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=84:um-classico-para-sempre-moderno-acossado-1959&catid=39:revendo&Itemid=65¹

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Sexo e Vingança para o Jantar (ou Como Reconhecer um Filme de Greenaway), por Aaron Athias


Não é preciso conhecer toda a filmografia de Peter Greenaway para perceber as suas marcas registradas. Aliás, no meu caso, eu só tinha visto “Afogando em números” de 1988, mas mesmo após ter perdido o começo do filme “The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover“ (1989) quando entrei na sala, reconheci facilmente o estilo de Greenaway.

Para começar, a música excêntrica. Novamente em parceria com Michael Nyman, Greenaway optou por uma trilha sonora também bastante parecida com a de “Afogando em Números” - muito estranha e dramática. Além disso, devido à formação artística que teve e sua forte influência barroca e renascentista, Greenaway 'pinta' com a câmera. As grandes sequências horizontais, os close-ups em objetos aliada à uma iluminação singular formam verdadeiros quadros e isso é uma forte característica de Greenaway

Ao tomar posse de um restaurante fino chamado La Hollandaise, o gangster Albert Spica (Michael Ganbom) passá a frequentá-lo toda a noite acompanhado de toda sua 'trupe' e de sua entediada mulher Georgina Spica (Helen Mirren). Mal educado e vulgar, Albert atormenta todos a sua volta com escândalos, agressões e abusos. Com a ajuda dos funcionários do estabelecimento, principalmente do cozinheiro Richard Borst (Richard Bohringer), Georgina consegue levar adiante um romance proibido com um cliente regular do restaurante, o discreto dono de uma loja de livros Michael (Alan Howard). A traição é descoberta e a gangue de Spica mata o Michael de maneira fria e inimaginável.

Para se vingar de seu marido, Georgina conta novamente com a colaboração de Richard e de todas as vítimas de abusos de Spica. A vingança, nas cenas finais, é realizada de maneira magistral e impecável mas também (para não deixar de seguir toda a linha do filme) – bizarra.

É interessante notar como o pecado parece ter sido a matéria prima para elaboração do enredo de Greenaway. Em “O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e seu Amante” são nítidas as referências aos pecados capitais. De cara já observamos a presença da gula com o personagem Albert Spica e sua gangue. Albert janta todo dia em seu restaurante de maneira grotesca e excessiva. Aliás, Spica é a própria personificação do pecado. Além da gula - a ira, a avareza, a preguiça, o orgulho e a luxúria também estão presentes não somente no chefe da quadrilha como em todo o ambiente do restaurante e por consequência em todo longa.

A escolha do figurino (de Jean Paul Gaultier) e sua predileção pelo preto e vermelho tanto na indumentária quanto nos elementos decorativos da mise-en-scène no restaurante não foram ao acaso. As citadas cores tiveram importantíssimo papel no filme na medida em que reforçaram a aura de morbidez e de luxúria presentes na história.

E é dessa forma que durante toda trama prevaleceram esses aspectos absurdos em contraposição com o próprio enredo em si. A constante presença do grotesco, do vulgar e do inimaginável enriquecem de uma maneira bastante atípica e controvertida o que seria mais uma história de adultério recheada de sexo e vingança. Greenaway é certamente o mestre da bizarrice.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

I’ll come back for the honey, por Ingrid Maiany


Desde a primeira cena de “A Taste of Honey”, sabemos que Jo (Rita Tushingham) é uma espécie de Pollyanna da sétima arte. Inquirida por uma amiga do colégio se irá ao baile, ela diz que não pode ir, porque não possui um vestido e terá que se mudar novamente com a mãe. Mas sua melancolia visível não é duradoura. Em instantes, ela se distrai com uma bolha de sabão que faz nascer de suas mãos envoltas de espuma e abre um sorriso.

O filme inteiro é assim. Tony Richardson está cena após cena deixando um gosto de mel no espectador através de uma personagem de grandes olhos escuros que vão fundo na gente. O longa é, para mim, a dramatização de um trecho de um escritor brasileiro que gosto muito – e que cito sempre – que diz assim: “Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim, que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo; repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.”

Jo repete isso sete, oito, nove, dez vezes e quantas mais precisarem. Filha de uma mulher pobre e com uma carência enorme de uma presença masculina (Dora Bryan) – de modo que costuma trocar de namorados como quem troca de roupas apenas para não ficar sozinha – Jo desenvolve um humor irônico, sarcástico e, talvez por isso mesmo, encantador. E então entendemos porque o marinheiro negro vivido por Paul Danquah se apaixona pela menina que chega machucada e triste em seu navio. E entendemos porque Jo se apaixona por aquele homem tão diferente dela – em cor e idade – que cuida de seu ferimento como se fora seu pai.

E ambos se entregam a um amor puro, com sexo sob céu estrelado e aliança de ouro. Doçura nos toques, nos sorrisos, nos olhares, nas palavras. Doçura que salva Jo quando sua mãe a abandona para se casar com um homem mais novo. Porque a questão de idades é um tema forte nesse filme de Richardson. Assim como o relacionamento interracial. O diretor faz tudo de forma tão natural que parece nos dizer: “coloquem um torrão de açúcar nessa mesquinhez amarga que é achar que existe bonito e feio, certo e errado, centro e periferia!”. E nós colocamos. Durante todo o filme, repensamos nossos valores, encaramos nossos preconceitos mais velados e concluímos: “como somos umas antas!”

Pois eu estava em minha condição de anta quando a vida veio dilacerar Jo novamente. O marinheiro vai embora com seu navio e deixa a protagonista grávida e sozinha. Mas como é mesmo aquela canção de Bobby Scott e Ric Marlow homônima ao filme? “I will return/ Yes, I will return/ I'll come back/ (he'll come back)/For the honey/ (for the honey)/And you”. Bom, se o marinheiro volta pra Jo como promete, fica em aberto. Ela, contudo, volta para seu mel. E ele vem calçado nos sapatos da moda.

Para se manter, Jo arruma um emprego em uma sapataria. E eis que ela conhece Geoffrey (Murray Melvin). A sintonia entre os dois é imediata, embora o contato seja breve. Mas o destino parece querer da uma mãozinha a mocinha de Richardson. Os dois se reencontram em um desfile cívico e, vendo que o rapaz não tinha para onde ir, Joe a convida a morar com ele.

Nasceria aí uma grande amizade – meio uma relação de mãe e filha. O rapaz, homessexual, cuida da casa enquanto Joe trabalha. Ele é o amparo, o carinho que ela nunca sentiu na personagem de Dora Bryan. E o relacionamento dos dois é a coisa mais bonita do filme – que é lindo em totalidade. A cena da gruta, um novo carpe diem, nos faz refletir sobre a efemeridade, sentimos uma nostalgia do próprio presente e chegamos mesmo a nos questionar “será que é mesmo possível transformar todo limão em limonada?”.

O fato é que Tony Richardson é, na verdade, um romântico. Por trás das questões sociais que aborda, dos bairros proletários com crianças correndo, da mãe ausente, do filho sem pai e da amizade que se aparta, ele quer nos mostrar que a vida sempre pode melhorar – e não o contrário. E nisso o final do filme é antológico.

Desiludida pela ausência do amigo querido, Jo observa os garotos que festejam ao redor de uma fogueira, quando uma menina lhe oferece uma estrelinha. Com aquelas faisquinhas saltitantes nas mãos, a protagonista é “A Pequena Vendedora de Fósforos”, aquecida com a chama da estrelinha na solidão da noite. O plano fecha no fogo de artifício. Luz no fim do túnel? É, Richardson, acho que nem o Ursinho Pooh (que nos meus tempos de criança era Puff) gosta tanto de mel.

domingo, 4 de julho de 2010

Das ruas à pia da cozinha - Realismo social no cinema britânico de 1958 à 1962, por Bruno Alves (parte 3)


– A Kind of Loving de John Schlesinger (62)

O filme começa com um casamento, mas não o do protagonista Vic. Embora as agruras da vida conjugal sejam o tema principal do filme e si o casamento de sua irmã. Um casamento que simboliza a felicidade idealizada daquele ambiente. Um casamento repleto de gente feia (é o que mais tem nestes filmes, me sinto em casa assistindo-os) de vocabulário extremamente limitado que não cansam de comentar, ou melhor, reafirmar trivialidades. É um casamento com um tom extremamente kistch mas com um ar de felicidade contagiante que é ambicionado por nosso protagonista. Ele, para um protagonista que vive na pia de cozinha, até que é extremamente confortável com suas origens. Não existe nele o desejo de ultrapassar os desígnios destinados em seu nascimento e sim a vontade conformante de quem só procura tirar o melhor daquilo tudo.

Vic está de olho em uma jovem e logo, com o uso de artifícios ingênuos, consegue chamar sua atenção. Ele sabe que existe algo de muito errado na relação, afinal perto da sua namorada alterna entre o desejo e o repúdio. O que ele repudia é a personalidade vazia e consumista que ela exibe e o que deseja é o sexo posto como seu objetivo supremo. Até que para uma inglesa ela é passável, nota 6,5. Enfim, Vic trabalha na relação por motivos puramente egoístas e físicos. O envolvimento emocional é nulo.

Mas ela engravida. Vic preso nas fantasias de um casamento como o da sua irmã e escravo das vontades impostas pela sociedade decide seguir o caminho moralmente correto e a pede em casamento. Ela chora, ele lamenta, ambos sabem que é um casamento fadado ao insucesso, mas tem que fazê-lo. Uma breve lua de mel com uma sugestão honrosa à ignorância sexual que estava sempre presente na sociedade britânica e o retorno à terra. Vic vai morar com sua esposa na casa da sogra, velha enjoada que o despreza, enfim, uma sogra.

Algo interessante neste momento do filme é que com uma certa boa vontade de cinéfilo fantasistas é possível encará-lo até como uma continuação de A Room at the Top. Os obstáculos que Vic enfrenta, como a sensação de ser um estrangeiro em sua própria casa e o conflito de personalidades entre ele, pobretão confortável em sua origem e elas, burguesas hipnotizadas pela televisão e que buscam felicidade através do materialismo que ele não tem condições de proporcionar.

No clímax do filme, frustrado pelo casamento infeliz e pelo aborto da esposa, Vic revira a cidade num oferecimento de sua alma à Baco retornando completamente mamado pra casa (pois se tem uma coisa que bêbado não esquece é o caminho pra casa... e o mé. Momento propício para uma piada com fins de alongar este documento: Mussum chega no barman e pergunta: - Tem leite de cabra suíça? - Não. - Tem leite de vaca holandesa? - Não. - Então tem leite de ovelha escocesa? - Também não. - DEUS SABE QUE EU TENTEI! ME PASSA UMA PINGA!) proporcionando um autêntico barraco com muita choradeira, muito vômito e muita sogra evidentemente.

Após muita patada de todos os lados em vez de se divorciar mais uma vez Vic se dobra aos desejos da sociedade. Vai fazer funcionar embora seja MUITO óbvio que deste casamento não vá sair nada. Mas tem seu momento de epifania ao concluir que se mudando com a esposa pra uma moradia qualquer nota e tudo fracassar ao menos eles saberão a quem culpar e o que deu de errado.

Ps: O maior terror de um homem é uma sogra de nome Esperança.

Inclassificável e imprevisível, por Aaron Athias


Há quem diga que o processo de transposição das subjetividades da vida de um realizador ao filme é inerente ao processo metodológico de criação do filme ou que, na verdade, qualquer processo criativo vai carregar as marcas, por mais ínfimas e sutis que sejam, da vida do pensamento de seu criador. Pensei muito sobre esta questão ao pesquisar sobre o filme Cul-de-sac (1966) de Roman Polanski. Das poucas fontes que encontrei, em todas observei a constatação de que a película tinha um forte aspecto autobiográfico no que tange os personagens George (Donald Pleasence) e Teresa (Françoise Dorléac). Antes de entrar mais a fundo nesse ponto, acredito que seja melhor contextualizá-los no enredo.

Encalhado em seu carro roubado, Dickie (Lionel Stander) se vê obrigado a ajudar seu comparsa ferido Albie (Jack MacGowran). Nas redondezas da praia encontra um castelo, aparentemente desocupado, mas que logo prova ser habitado pelo estranho casal George e Teresa. Armado, Dickie começa um jogo de ameaças para conseguir tudo que quer do casal assim como se prepara pra encontrar com seu chefe Katelbach. A visita não acontece, ao invés disso, familiares de George chegam de surpresa ao castelo. Enquanto Dickie, Teresa e George fingem normalidade, Teresa se aproveita da situação para reverter a dominação de Dickie e diz às visitas que o gangster é “o novo mordomo”. Nessa parte do filme, um tanto quanto cômica, destaco a atuação de Lionel Stander fingindo ser o mordomo James. Como num jogo de gato e rato, Dickie novamente volta a aterrorizar o casal com a partida dos visitantes. O clímax se encontra nessa parte final do filme, em que uma brincadeira de Teresa mal interpretada por Dickie, sua reação e a mudança de atitude de George mudam o rumo dos três personagens.

Autocentrado nessa tríade, o filme praticamente escanteia qualquer espécie de relação com o mundo exterior, de modo que os personagens, como a família de George que o visita inesperadamente, são quase que figurantes e secundários, servindo somente para alimentar uma tensão pré-existente entre os principais. Outro exemplo desse 'escanteiamento' é o fato de não ser explicado em nenhum momento os detalhes da missão fracassada de Albie e Dickie. Deduzimos que são criminosos por estarem com um carro roubado e sabemos que Katelbach é seu chefe, mas Polanski faz questão de não ir a fundo nesses detalhes, prevalecendo em toda a trama a relação do trio. Aliás o filme como um todo é um recorte. A vida de todos os presentes existe e termina no período retratado pelo longa. O que veio antes não interessa.

Essa relação entre Teresa, Dickie e George, o foco do filme, é sem dúvida uma das mais estranhas que já vi. De um lado Dickie, o criminoso agressivo e ao mesmo tempo brincalhão que em um primeiro momento aterroriza o casal. Do outro lado, a impetuosa e sensual Teresa passa a história toda reclamando de George, pedindo para que ele tome uma atitude contra Dickie. Percebemos, porém, que ao mesmo tempo em que Teresa odeia a figura de Dickie, paradoxalmente ela também se sente atraída por ele. Isso é claro na cena em que ela vai ajudá-lo a enterrar Albie. Por fim, temos o George, o afeminado e acovardado marido de Teresa, que não percebe o crescente desinteresse em que sua mulher tem alimentado por ele.
Medo, amor, ódio, e amizade se confundem de uma maneira que é impossível prever o desfecho do trio.


E essa imprevisibilidade faz com que Cul-de-sac não se encaixe em nenhum dos arquétipos pré-estabelecidos de gêneros cinematográficos. A oscilação entre suspense, drama e comédia fazem com que críticos e estudiosos consideram o longa de Polanski o mais inclassificável e imprevisível de toda sua filmografia.

Foi o segundo filme de Polanski rodado na Inglaterra com boa parte da equipe de produção sendo inglesa. O orçamento relativamente grande e o espaço para maior liberdade criativa se deu às custas do sucesso de Repulsion, filmado no ano anterior. Gozando de uma autonomia maior no processo criativo, Polanski aproveitou um roteiro de 1963 chamado “When Katelbach Comes” para o novo longa.

O roteiro de Cul-de-Sac é uma história de relações interpessoais claramente inspirado nas obras Samuel Beckett, cujas peças continham casais mal resolvidos, de personalidades opostas e com expectativas individuais divergentes. A relação entre Teresa e George se encaixa perfeitamente nesse quadro. O casamento dos dois apresenta-se frágil e temperamental. E aqui voltamos ao aspecto autobiográfico: o casal George e Teresa são comparados ao próprio Polanski e o breve período em que esteve casado com a atriz polonesa Barbara Kwiatkowska. Muitos dizem que o traço abestalhado e apaixonado de George quando próximo de Teresa é uma característica de Polanski enquanto marido da atriz, que por sua vez também tinha uma personalidade muito similar a de Teresa. Enfim, uma relação instável entre duas pessoas muito diferentes e fadada a findar-se.

Aliás, a instabilidade das relações é, ironicamente é uma das poucas características do filme que perdura do início ao fim. Não somente entre o trio, mas entre o trio e os agentes externos. Consequentemente a tensão entre os personagens é outra constante.

Sabe-se também que o que contribuiu para o clima tenso do filme foi o próprio clima tenso por detrás das câmeras. O perfeccionismo de Polanski teria abalado as relações entre os membros da produção do longa. O diretor não se entendia bem com Stander (Dickie do filme), não gostava do ar “estrela de cinema” de Dorléac e se assustou quando viu Pleasence de cabeça raspada nas vésperas das gravações. Além disso, Polanksi queria filmar tudo de uma vez. A cena em que George conversa bêbado com Dickie na praia foi uma das maiores tomadas de cena na época. Por causa do seu perfeccionismo, Polanski quase matou Dorléac de hipotermia ao querer gravar a cena dela tomando banho nua no mar pela terceira vez. Ironicamente, um ano após as filmagens, Dorléac morre em um acidente automobilístico.

Cul-de-sac, é uma expressão francesa mais ou menos equivalente ao nosso 'beco sem saída'. O filme faz jus ao seu nome durante boa parte do filme, já que George e Teresa se tornam reféns de Dickie. Porém com a inversão de papeis da metade pro fim, tudo se torna confuso. Talvez beco sem saída significa uma prisão figurada onde as relações dos três personagens se encontram, representando assim a convivência forçada entre os três.

Independente do nome que leva e do gênero que ele porventura seja classificado, Cul-de-sac deixa a desejar quanto ao enredo, mas compensa no drama psicológico e na construção dos personagens. Ele é acima de tudo uma história angustiante sobre personalidades excêntricas e suas relações, além de ser carregado de humor negro, ironia e tensão do início ao fim.