terça-feira, 27 de março de 2007

"UM MUNDO ORDINÁRIO NO CINEMA: o caso – ou quase isso – de No Sabe/ No Contesta" por Rafaela Vasconcellos


el nuevo cine argentino está mucho más interessado em mostrar mundos que em mostrar personajes, héroes – Alan Pauls



Na passagem de uma sociedade moderna para uma pós-moderna, os aspectos culturais e políticos alteram-se profundamente. A fragmentação do sujeito – inclusive o Estado – com o colapso dos valores iluministas, aliada à intensificação da “hibridização cultural” desencadeada pela globalização, configuram a contemporaneidade como uma pluralidade de valores, de subjetividades.
Nesse sentido, a arte – e aqui se destaca o cinema –, ao participar da dinâmica da representação da realidade, reflete tal quadro. Gonzalo Aguilar em seu livro Otros mundos..., aponta que os filmes do novo cinema argentino – dos anos 90 e 2000 – não se detém a preocupações políticas, sociais ou de identidade, recorrentes na produção da década anterior. Hoje, ao que parece, as histórias lidam mais com a indeterminação, a ambigüidade temática, abrindo horizontes pra interpretação. Portanto, uma leitura, por assim dizer, mais engajada, depende do espectador. Afinal, como afirma Graeme Turner,

Um dos resultados da ruptura entre os estudos sobre cinema e uma tradição predominantemente estética é o abandono da idéia de que num filme havia um núcleo de significado que o público devia descobrir. [...] Os significados são vistos como produtos de leitura de um público e não como uma propriedade essencial do texto cinematográfico em si. O público dá sentido aos filmes, e não meramente reconhece significados ocultos. (TURNER: 1997, 122)

Para além da concepção de cinema – seja como forma de ação, instrumento político, de mudança, integrado ao desenvolvimento social (ROCHA, 1963), ou como uma linguagem, que simplesmente conta histórias, apresentando mundos e personagens (AGUILAR, 2006) – o fato é que a criação de novas inquietudes estéticas relaciona-se com necessidades de transformação. Isso, na busca pela dissipação do sistema de representação vigente, adequado ao padrão de referência legitimado socialmente.
A partir dessa perspectiva, então, pretende-se, aqui, versar sobre o filme No sabe/ No contesta, ou simplesmente, NS/NC, do argentino Fernando Musa. Produzido em 2001, mas lançado só no ano seguinte, NS/NC é uma película que trata, essencialmente, do diálogo cotidiano, por vezes irônico ou inusitado, entre pequenas histórias de indivíduos, sejam eles conhecidos ou não.
Numa narrativa fragmentada, em que são apresentados, quase sempre, dois pontos de vista sobre uma mesma situação, ou então, acontecimentos vivenciados por uns personagens, mas desconhecidos por outros, o filme possibilita ao espectador um maior entendimento dos fatos e pensamentos em jogo. É como se Musa fizesse confidências e instaurasse uma certa cumplicidade. Até o recurso utilizado – tela preta, com alguma frase ou palavra sugestiva/ intrigante – lembra, um pouco, a sensação de quando se é puxado de uma conversa em grupo por alguém que lhe cochicha algo no ouvido; ele retira, por um instante, a atenção da história em si para criar um ambiente de segredo, explicação e, principalmente, dúvida. Esse mecanismo envolve quem lhe assiste, no enredo, sem, no entanto, entregar tudo digerido. Ao contrário. A cada mudança de tomada de ângulo, o filme ganha uma leve dinamicidade e conduz a investigação do espectador.

Uma experiência pessoal

Da primeira vez que vi NS/NC – há uns dois anos -, eu tinha acabado de assistir a O bandido da luz vermelha, de Sganzerla. Trabalhos fortemente distintos. Mas, talvez, tenha sido justamente pela discrepância que se apresentava diante de meus olhos, que eu tenha me sentido atraída pelo filme argentino. Ainda imersa no agitado ambiente preto e branco de provocação e descaramento de Sganzerla, vi aquela primeira imagem, colorida, de três jovens um tanto desolados e tensos num carro, com o letreiro em espanhol, que me convidava para outra coisa, outra história – desconhecida e, aparentemente, simples.
A sensação inicial de que se está vendo algo em andamento ou um caso inacabado, logo vai sendo esclarecida por Joaquín (Mariano Martínez), personagem central que perpassa, praticamente, todas histórias da película, chegando mesmo a contá-las em certos momentos. Porém, não se trata, exatamente, de um narrador típico. Não é bem isso. Na verdade, numa metalinguagem, Joaquín observa seus amigos, quase sempre, através de um gesto sugestivo com os dedos indicadores e polegares, numa espécie de enquadramento do retângulo cinematográfico – é como se cada vez que ele fizesse isso, chamasse a atenção para alguém, para o surgimento de uma nova situação, começo de uma outra história. Ou mais, ao filmar seus amigos, à distância, em Super 8, e explicar suas circunstâncias, ele acaba por legitimá-los como parte de uma história que não apenas está sendo vivida, mas contada, compartilhada.
E, talvez, seja essa idéia que Musa queira trabalhar: a de que qualquer um é protagonista de sua própria narrativa, seja ela a mais prosaica; que poderia muito bem ser personagem central, ou mesmo coadjuvante de um filme, independente de sua ordinariedade, de suas inclinações (ou a ausência delas) político-ideológicas, morais. Basta ter acesso a uma câmera e fazê-lo. No caso de NS/NC, uma parte dos causos é apresentada sob o olhar íntimo de Joaquín, por sua memória e interpretações, ao passo que outros são submetidos, evidentemente, às intenções explícitas de Musa.

Impressões à terceira vista

A película, em seus primeiros minutos, até chega a insinuar idéias acerca das implicações de escolhas tomadas, da opção por um caminho em detrimento de outro, mas só; não vai além de uma sugestiva percepção de Joaquín, através da máxima de que o arrependimento é um sentimento tardio. É algo como uma daquelas idéias ‘relâmpago’ que se esmaecem com a mesma velocidade com que surgem. Mas, ao observar, com mais cautela, os rumos que o filme toma, talvez, tenha-se a impressão, realmente, de que é isso o que acontece com os personagens. Musa pode não se aprofundar nessa questão de forma explícita, mas consegue colocá-la – ainda que de forma sutil – nos diferentes pontos da narrativa: Marcos, depois de desconfiar de Sofia e deixá-la ir embora; Joaquín, ao deixar o piano de sua irmã aos cuidados de Damián e David e chegar atrasado no encontro com Laura; o pai dele, ao penhorar todos os bens e falir; ou mesmo Laura, por ter dito uma simples frase. Todos, no fim, sempre se arrependem de alguma coisa.
É importante, porém, não tomar tal observação como uma alegoria, seja para o caso da Argentina do começo do século, seja para a juventude. Até se pode, mas, sejamos cautelosos. Até porque, como afirma Robert Stam,

A tendência alegórica disponível a todas as formas de arte é intensificada na obra de cineastas intelectualizados profundamente marcados pelo discurso nacionalista, que se sentem compelidos a falar pelo conjunto da nação e a respeito de seus problemas, em um fenômeno que é ainda mais exacerbado no contexto de regimes opressivos. (STAM: 2003, 317)

Se os cineastas ‘terceiro-mundistas’ dos anos 60 viam-se como parte de um projeto nacional, hoje, com o discurso pós-colonial – ou seria melhor dizer, pós-moderno? – a postura é outra. Segundo Gonzalo Aguilar,

Construir el guión a partir de la pergunta “cómo somos” dejó de ser interesante desde el momento em que la comunidad y la historia que le daba sentido a esa pergunta entraban en um proceso de descomposición o estaban más definidas por procesos contemporâneos globales, no necesariamente nacionales. (AGUILAR:2006, 28)

No caso de NS/NC, é o prosaico, o pequeno, ou, no máximo, o extraordinário que pode existir no ordinário; são alguns detalhes – ver dois amigos à caminho do terminal pelo retrovisor do carro; uma conversa corriqueira na cozinha, enquanto se prepara um chá; uma briga estúpida; uma associação da espuma do café a um filme de Godard; dedilhar um piano, que está sendo transportado, na rua; filmar, em super 8, a namorada comendo tangerinas na estrada em meio a uma viagem de carro. Seria, então, o caso de uma exposição da banalidade da vida contemporânea ou uma tentativa de uma possível aproximação? Mas, com quem? De que marco social essas imagens são, por assim dizer, documentais? Se há prazer naquilo que nos é familiar e em ver formas e imagens pelo simples gosto de observá-las (TURNER, 1997), então, quem faz parte desse mundo de NS/NC? Será que só jovens da classe média argentina?
Ora, o que se verifica no filme é uma certa amnésia histórica, uma a-historicidade, quer dizer, não se faz menção específica ao período histórico ou à localização geográfica – a única citação que se faz é à Córdoba, quando Sofia ou a irmã de Joaquín viajam. Apesar de se ter várias cenas externas, com personagens atravessando ruas e avenidas, não fica evidente em que lugar essas pessoas vivem; não são as imagens clichês da Argentina; são, antes, ruelas de bairros residenciais – que até podem lembrar, às vezes, paisagens de países desenvolvidos. A vivência da cidade, aliás, parece se resumir, em alguns momentos, ora ao quiosque, onde Laura trabalha, ora ao seu apartamento, ou ainda a alguns cômodos da casa de Joaquín. Enfim, os cenários em que o filme transcorre são lugares comuns: locadora, loja de conveniências, apartamento, carros, ônibus, ruas, parque; lugares de passagem que não são modificados por quem os freqüenta – a não ser a casa de Joaquín, que está sendo esvaziada às pressas.
Interessante notar, inclusive, nesse fragmento – talvez o único que parece dialogar com a crise monetária do país na época –, como cada um está imerso, apenas, em seus interesses e problemas (o pai falido, com seus livros; Paulina, com seu piano; Joaquín, com sua câmera); seria uma metáfora da desestruturação da família, das relações em decomposição? – a figura da mãe, aliás, nem chega a aparecer.
Na verdade, o filme mais parece uma rede de situações que envolvem indivíduos. As tensões – pouco profundas, na verdade – são mais introspectivas, psicológicas. As pessoas – em sua maioria, jovens – têm uma postura distanciada, no que diz respeito a questões sociais, políticas ou identitárias; lidam, apenas, com seus próprios anseios e inquietações. É como se não houvesse tempo para se preocupar com questões maiores, com os outros. Poderia existir a máxima de que, antes de fazer a revolução social, é preciso fazê-la dentro de si mesmo, mas nem isso. Parece se tratar mesmo de uma juventude que traz em si, ainda que inconscientemente, a descrença/ declínio das esperanças utópicas revolucionárias. Talvez esteja mesmo latente a idéia apontada por Zygmunt Bauman de que, afinal, ‘se emancipar de quê e para onde?’ Não se sabe, porque há uma deriva, transitoriedade constante; sem focos de solidez, de acomodação. Tanto, que os personagens estão se movimentando constantemente.
Porventura, a que melhor represente tal realidade seja Laura: não se sabe de onde ela vem, desde quando vive ali, se tem família. Sabe-se, apenas, que ela quer fazer vestibular, mas não tem segurança se vai passar; que tem vontade de largar o emprego, mas não pode, porque não quer “parar numa fila de emprego”. Ela lembra, de certa forma, o que Aguilar identifica como personagem fora do social:

De repente, comienzan a aparecer una serie de personajes amnésicos, verdaderos zombies, que no vienen de ningún lugar ni si dirigen a ningún outro, obsesionados por um mapa indescifrable. [...] Los personajes de vários de los filmes de los noventa son marginales em el sentido em que los define Daney: no portan em esa marginalidad uma idea de cambio y de heroicidad [...], sino, simplemente, la condición de su exclusión y de la disponibilidad absoluta. (AGUILAR: 2006, 30)

É isso. Os personagens são comuns e acabam por deslizar pela narrativa, assim como o espectador; não representam, necessariamente, posturas morais ou políticas. Fernando Musa parece até, em alguns momentos, ‘brincar’ com o discurso hegemônico, ou melhor, querer explicitar certos comportamentos e clichês: o anúncio expresso do final com epílogo opcional e sem moral da história; as passagens em super 8 para representar a imaginação/ desejos do protagonista, ou mesmo a aceleração das imagens do trânsito, em detrimento da de Laura, para representar o tempo. E, ao trabalhar com esses recursos – um tanto metalingüísticos – Musa permite uma certa aproximação com o espectador, revelando-lhe a subjetividade dos personagens e a intencionalidade por trás de seus atos mais simplórios. Aqui, a sensação de ingenuidade ou espontaneidade é rompida de uma forma leve, sem maiores provocações.
A própria idéia do curta de Joaquín dialoga com o que parece ser a do filme: duas pessoas desconhecidas, que tocam, uma, piano, e a outra, violão; são sozinhas e decidem passear no mesmo dia, pensando, cada uma, em suas coisas; se cruzam numa praça, mas não se falam, apenas se olham; pensam um no outro; se separam e cada um toca seu instrumento em sua casa; sem saber, tocam uma sinfonia silenciosa de domingo. É essa sensação de que ‘tudo se relaciona’ que permeia todo NS/NC; em maior ou menor grau, as coincidências, o acaso interferem na vida das pessoas. É como se de forma silenciosa, no acomadamento cotidiano, a comunicação entre os fatos e as pessoas se desse e instaurasse uma simpática ironia, a ponto de até o inesperado/ acidental adquirir certa lógica no desenrolar da narrativa.
Talvez seja por isso que a música – recorrente e um tanto apelativa – parece pertencer ora ao espaço, ora aos personagens; como se tentasse criar o clima um tanto melancólico do acaso, dos imprevistos, dos desencontros, enfim, das pequenas frustrações e imprevisibilidade do dia-a-dia.
Nessa transitoriedade, a câmera acompanha, à distância, como um observador que se mexe, tanto para ter um melhor ângulo, como para não ser flagrado. Às vezes, porém, têm-se planos fixos e médios, pouco expressivos, chegando mesmo a lembrar um pouco a estética televisiva. A própria narrativa de NS/NC, aliás, nem é tão original assim – mas, também, o que é original hoje? Robert Altman, em 1993, já impressionava, em Shot Cuts - Cenas da Vida, com a estrutura multiplot, ou seja, um modelo de roteiro com várias histórias paralelas. Películas mais recentes como a francesa A cidade está tranqüila ou a mexicana Amores Perros, ambas de 2000, também surgem com mais expressividade.
De fato, No sabe/ no contesta está longe de ser uma obra-prima. Tanto, que foi mal recebido pela crítica argentina e considerado, dentre o mais aprazível dos atributos, regular. Trata-se mesmo de um daqueles filmes que deve ser visto sem grandes expectativas, por acaso, e, de preferência, uma vez – ou, ao menos, depois de um grande intervalo de tempo. Sim, porque, uma vez conhecidas suas histórias, a relação com o filme se esmaece, na medida em que não é capaz de envolver, outra vez, o espectador – eis o que se constata, após assisti-lo três vezes.
Na tendência do novo cinema argentino, a relação com o espectador sofre fortes impactos. Os finais abertos, sem qualquer espécie de tese; a ausência de ênfases, de alegorias; a maior ambigüidade dos personagens, que, muitas vezes, surgem imersos no que lhes acontece; a omissão de referências nacionais contextuais, opondo-se à demanda identitária ou política, além de uma trajetória um tanto errante na narrativa, fazem com que as histórias sejam opacas e, não raro, o espectador fique com a sensação de que ‘o filme não diz nada de mais’.



Da ordinariedade real

Esse jeito pós-moderno de ser, essa ‘fluidez’ constante chega mesmo a ser intrigante. Não que sua existência seja negada, mas é difícil não questionar sua legitimidade. A arte, enquanto ambiente de transgressão de valores, é inconcebível sem ser uma prática social. Quando o cinema contemporâneo surge com a busca pelo pequeno, pelo banal, é óbvio que lida com questões da vida em sociedade; é válido. Até porque, é na simplicidade, no cotidiano, que se pode perceber a expressão de abstrações culturais. O perigoso, porém, é configurar tal tendência como regra. Seja qual for a intenção – reflexiva, crítica, prepositiva, simplista, entretenimento – o importante é que haja espaço para qualquer tipo de filme.
Partindo-se da premissa de que o cinema é um “reflexo” das crenças e valores dominantes de sua cultura, então essa postura do filme – versando, aparentemente, sobre nada – implica num comportamento que acontece na Argentina? Ora, isso seria uma generalização descabida; uma visão reducionista. No entanto, pode-se pensar o seguinte: se filmes como NS/NC são produzidos, lançados, então é porque há uma abertura, uma permissão da esfera pública argentina. Talvez, possa-se considerá-los índices de leitura na busca do discernimento da redefinição dos valores que os fundamentam/ legitimam. Como afirma Aguilar:
Ante a desintegración de la esfera pública (sea por acción de la globalización, de los medios masivos o de las políticas de gobierno), los nuevos realizadores no se han asignado uma función previa sino que utilizaron el lenguaje del cine para investigar sobre sus propios posicionamientos, sobre sus propios deseos informes. (AGUILAR: 2006, 28).

E é isso o que acontece com NS/NC. A ordinariedade, aqui, chega num ápice, a ponto de vir, à tona, a idéia de que, em vez de buscar histórias ou outros mundos, talvez seja melhor viver o seu.




REFERÊNCIAS

AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos: um ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2006. 256 p.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

NO SABE/ no contesta. Direção de Fernando Musa. Argentina, 2001. 1 filme (87 min.), son., color., 35 mm.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1963. 152 p.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003. 400p.

TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997. 174p.

< http://www.cinenacional.com/peliculas/index.php?pelicula=2417 > Acesso em 4 março de 2007

"Cega Obsessão" por Edson Alves Jr.


De todos os sentidos humanos, o cinema só pode atingir diretamente a audição e, principalmente, a visão. Trabalhar outros sentidos em filmes é sempre um desafio, pois os diretores só podem trabalhar com sugestões, sem a possibilidade de estímulos diretos. Filmes em que o olfato, a gustação ou o tato sejam partes essenciais do filme precisam de todo uma ordem e planejamento especial dos seus criadores para criar uma experiência marcante. Olfato e gustação podem ser evocados por flores e grandes banquetes, como os de Como Água para Chocolate (1993), de Afonso Arau,ou O Cozinheiro, o Ladrão, a Mulher e o seu Amante (1989), de Peter Greenaway, para ficar só em alguns exemplos clássicos.

Mas como sugerir sensações tácteis, em que não existem muletas como exibição de vapores e de comidas saborosas? Foi esse o desafio que Yasuzo Yasumura enfrentou para criar Cega Obsessão (Moju, 1969), uma adaptação da história que o escritor Edogawa Rampo publicou em uma série de folhetins de um jornal japonês em 1931 e 32. O resultado conseguido pelo diretor se tornou uma experiência sensorial única para o espectador

Na história original de Rampo, o personagem Michio (Eiji Funakoshi), um escultor cego de nascença, perambulava pelo Japão em busca de mulheres que pudessem ser os mais belos modelos para o seu projeto de reproduzir da forma mais sensual possível todas as partes do corpo humano. Na adaptação de Masumura, a história é reduzida ao menor número de personagens possível. Na primeira cena, vemos Michio descobrir uma escultura baseada no corpo da jovem modelo Aki (Mako Midori), que se revela para o escultor cego como o corpo perfeito que ele sempre procurara. Disfarçado de massagista, Michio consegue seqüestrá-la, levando-a para o seu atelier particular.

O atelier de Michio, local onde se passa todo o resto do filme, é um dos cenários mais fascinantes da história do cinema. Revelado aos poucos para Aki, numa cena surreal, o atelier consiste em uma sala octogonal construída dentro de um galpão, em que cada uma das paredes é ocupada por esculturas de diferentes partes do corpo feminino: olhos, boca, orelhas, nariz, pernas, braços e seios. Junto com a modelo vamos descobrindo o modo de Michio ver o corpo feminino, fragmentado em diferentes partes, já que só a visão pode dar a noção do todo. Ao centro temos dois enormes corpos femininos sem cabeça, simbolizando a união do que nas paredes está separado. No todo, o espaço parece uma instalação inspirada no hiper-realismo das esculturas de Ron Mueck, um artista plástico australiano.

De início, Aki tenta fugir de todas as formas desse mundo criado por Michio, até mesmo fingindo cativar o escultor para ludibriá-lo. Esbarra na figura da mãe de Michio (Noriko Sengoku), uma personagem que é prato cheio para análises psicanalíticas: é quase uma serva do escultor, e ao mesmo tempo o mantém em uma posição infantil de sempre precisar dela para qualquer coisa. A partir do momento que Aki parece se envolver pelo amor doentio de Michio, uma clara competição entre mãe e amante se estabelece no filme.

A competição termina com a morte da mãe de Michio, o ponto em que Aki, já convertida em amante devotada pela Síndrome de Estocolmo, vai descer junto com o escultor cego nos abismos dos seus desejos e taras. Michio, por outro lado, descobre pela primeira vez na vida um pleno amor carnal, mas essa descoberta não é libertadora: ele e Aki se transformam em dois animais movidos a luxúria, que se machucam e tiram sangue um do outro em busca do prazer, já sem noção de tempo ou de que seja civilização, apenas objetos estéticos e sensoriais um para o outro. No final do filme, a entrega de Aki se torna completa: transformada em pleno objeto, ela tem os seus membros arrancados do corpo, um a um, se tornando tão fragmentada quanto a instalação no atelier de Michio.

Curiosamente, toda essa sensualidade se mantém dentro de um estrito tabu japonês, a de que os pelos pubianos das mulheres nunca podem ser mostrados em fotos ou filmes - pelo menos os artísticos. Mesmo assim, o filme ficou como inspiração para filmes japoneses que quebrariam essa barreira, como o clássico O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima – uma eterna referência com relação à união entre o erótico e o artístico.

sábado, 24 de março de 2007

"Junk Food" por Alan Luna


Como comida que faz mal, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante é um filme pesado e de difícil digestão. Mas o sabor é irresistível


O cineasta britânico Peter Greenaway é também artista plástico. Referir-se a esse dado biográfico do diretor é fundamental para analisarmos seus filmes, sobretudo O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989). Aqui, Greenaway filma como quem pinta um quadro. E mais justo seria começar essa resenha dizendo que o artista plástico britânico Peter Greenaway é também cineasta.

Não é por acaso, portanto, que a direção de arte tem um papel fundamental nessa história, como talvez poucas vezes no cinema. As cores são usadas para realçar sentimentos e sugerir sensações. Com elas dialoga o figurino de Jean Paul Gaultier, que também muda ao sabor dos ambientes.

A direção de arte, entretanto, não é a único atrativo neste filme. Ao contrário: trata-se de uma obra profundamente verborrágica, promíscua, intertextual. E sua grandiloqüência visual não é um recurso para anuviar a falta do que dizer, como costuma acontecer no cinema comercial. Ela é, antes, um recurso expressivo poderoso. É como se Greenaway gritasse sua história, ao invés de simplesmente contá-la.

Ainda no âmbito formal, é interessante notar a direção de atores, que prima por uma atuação muitas vezes teatralizada. Isso parece condizer com o cenário, que igualmente remete ao universo do teatro, inclusive com o uso de cortinas para abrir e fechar o filme, todo ele rodado em estúdio. Com tal artifício, Greenaway antecipou em alguns anos a experiência bem sucedida de Lars Von Trier em Dogville (2003). O uso não muito abundante de cortes (que talvez sejam a característica principal do fazer cinematográfica) também estreita esse diálogo com as artes cênicas.

Outro é elemento importante nessa obra é a música. O personagem do garoto que canta na cozinha do restaurante pontua muitos momentos do filme, dando-lhe um ar de musical ou, para ser ainda mais exato, de ópera. E isso não porque um dos protagonistas, Albert Spica (Michael Gambon), parece muitíssimo com o tenor Luciano Pavarotti, mas pela intensa trilha sonora de Michael Nyman.

Tamanho esmero formal resulta num invólucro nada ordinário para um conteúdo não menos ortodoxo. O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante é um filme forte, escatológico e recheado de metáforas. Basta ver, por exemplo, a pouco convencional associação entre comida e sexo que o diretor estabelece. Para Greenaway, tudo se resume a essas duas necessidades fisiológicas básicas do ser humano, que estão em constante processo dialético: uma permanentemente influenciando ou sendo influenciada pela outra. Bons exemplos nesse sentido são a cena de abertura ou a forma como se dá a morte do livreiro. Mas a síntese perfeita dos elementos do filme — do seu tom, da sua idéia, da sua “mensagem” — está mesmo na cena final, quando um desfecho de triângulo amoroso carregado de simbologia vai unir de forma inacreditável O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante.

"Cinema e verdade" por Paulo Carvalho


Nossa subjetividade é fundada sobre a nossa própria cegueira. A felicidade e o conhecimento não cruzam caminhos e, como nos advertiu Lacan, nossa atitude espontânea é de não querer saber demasiado. Mas afinal, o que há para saber de tão insuportável a ponto de nossa busca pelo prazer ser ela mesma uma busca pelo reverso da verdade? O cinema atua como um elemento de desvelamento dos nossos saberes interditos quando nos coloca diante do nosso incômodo abismo interior, o vazio a-significante que habita em nós. É quando, para além do principio do prazer, através da arte, experimentamos a irredutível condição humana da cisão, do sofrimento, do páthos.
No cinema não cabe o meu pensamento. O que desejo de um filme é que um outro pense em mim. Esse é o grande acontecimento do cinema. O discurso do cinema mobiliza minha subjetividade e elabora uma verdade outra que se esconde em mim. Como em análise, esse discurso não traduz representações, mas transfere cargas de energia. O que vale afirmar que um filme não me diz nada, mas leva algo meu a dizer. Produção de verdade entre o sujeito e a obra, entre as representações conscientes e inconscientes, o cinema é uma arte fenomenológica por excelência.
Quando nos deparamos com uma projeção, a um primeiro momento, o que nos é demandado é nossa passividade. Realmente, o filme pede que nos desarmemos do nosso eu narcísico para que ele abra os canais por onde sua narrativa deve fluir. Mas apenas em um primeiro momento. Na verdade, como nos mostrou Edgard Morin, o cinema está fundado sobre dois movimentos elementares da nossa psique: a projeção e a identificação. Somos implicados em um sistema que integra tanto nossa subjetividade no fluxo da narrativa como o fluxo da narrativa no nosso fluxo psíquico. Em termos teóricos isso implica dizer que não devemos abordar o cinema sem considerar a quantidade de sentimentos, representações e intensidades que ele mobiliza e arrasta - sem considerar sua dimensão onírica.
Quando alguém aponta para a inocência de um filme aponta para o que há de mais forte nele. Benjamin anteviu esse caráter subversivo da sétima arte. O que aconteceu em grande parte com os gêneros que perderam espaço no universo do cinema foi que perderam a inocência. O pacto do espectador com a obra só acontece com o relaxamento das instâncias racionalizantes da nossa psique. Daí que quando pensamos durante um filme saímos dele, passa-se alguma coisa que não é cinema. Se comprometer é não entender, o pacto é não interpretar, ainda que essa experiência me leve a um desvelamento.
Mas poucos mergulhos que me levam a uma experiência ascendente. Há, por toda parte, o cinema que goza no sintoma. Experiências que reforçam os recalques. Hollywood, essa grande máquina de repetição. E quanto prazer há na repetição! Em quantos momentos não somos a criança pedindo à mãe que conte a mesma história de todas as noites... Mas estética é ética. O sujeito que abre mão da sua condição desejante e torna-se submisso ao gozo do outro se desumaniza – é lançado em um “abismo sub-humano”, como traduziu a modelo em Cega Obsessão. O sujeito que não deseja não vive, está dominado por sua pulsão de morte. Toda fruição descendente é uma experiência masoquista de submissão, de condicionamento do desejo ao recalque.
O desejo é uma instância de proteção ética de uma subjetividade porque impede que ela seja eliminada pela onipotência imaginária do outro. Ainda que meu desejo seja um desejo masoquista de submissão – como é todo desejo –, o gozo do outro é interditado pelo mecanismo subjacente a esse desejo. O outro atua deslocado, nos domínios da própria realidade interior psíquica do sujeito. Por ser o desejo tributário do recalque - a representação da falta do outro – o sujeito é implicado eticamente no trabalho de dissociar o seu desejo do prazer obtido a partir desse recalque.
Uma obra pode atuar como vetor de uma desterritorialização do desejo já que não é apenas a materialização do desejo sublimado do outro, mas também uma realidade reveladora, portanto transfiguradora da minha própria condição irremediavelmente cindida e vazia de sentido. É porque minha subjetividade não tem um sentido último que algumas obras, para além do deleite, me trazem a angústia que essa condição de falta a-significa. É quando nos traz o trágico irredutível da nossa dimensão de abandono que o cinema produz verdade.

"Jules e Jim" por Luís Henrique Leal



É possível discutir se Jules e Jim é ou não o melhor filme de François Truffaut. Afinal, pode ser tema de debate a superioridade de tal ou qual filme. E há, na obra do diretor, muitas temáticas e abordagens importantes, maduras, líricas. Mas a discussão perderia em seu muito de seu significado, se tomasse esse rumo.Jules e Jim parece ser uma reflexão, um pensamento profundo sobre o afeto. É o retrato do fascínio e da beleza das relações, em seu caráter substancialmente humano.

A obra de Truffaut parte de um texto literário – o livro de Henri-Pierre Roché, que o diretor descobriu ao acaso em um sebo francês. E a própria construção que Truffaut costuma fazer de seus filmes[1] guarda evidentes relações com a literatura.

A construção do universo de significado do diretor transita facilmente, e com leveza, entre as linguagens literária e cinematográfica. No caso específico de Jules e Jim, Truffaut faz, por exemplo, opção pela existência de um narrador onisciente – preservando, assim, a forma original do livro.

II

Jules e Jim são jovens amigos, que travam amizade incomum. Desenvolve-se uma relação amistosa, afetuosa – a ponto de os dois se compreenderem mutuamente e compartilharem muitos aspectos de vida da belle époque. Tamanha afinidade, relativiza as evidentes diferenças.

Os amigos se encantam com Catherine, e passam a amar a mesma mulher. Nela identificam a beleza dos traços de uma estátua, e encontram nisso uma impulsão à vida e à contemplação divina.

Catherine é a representação da feminista libertária - num tempo em que a frivolidade e a autonegação são ressaltadas como características necessárias à própria condição feminina[2].

Jim é francês, enquanto que Jules, austríaco. Vem a guerra, e Jules e Jim se vêem impelidos a opor-se no front. Se coloca um imperativo, como força irrevogável e superior.

Jules está casado com Catherine, mas a relação não parece satisfatória para ela. O tempo da guerra, a partir das cartas de Jules, reconstituíra parte do sentimento de afeto, mas, de volta à convivência, logo, Catherine se deixa abater pelo sentimento anterior. Ele, resignado, tem medo de perdê-la.O casal convida Jim para uma visita. E logo este se torna, com consentimento de Jules, amante de Catherine. O filme desenvolve, então, através de intempestivas ações e delírios uma espécie de triângulo amoroso.

Catherine é excessivamente instável e exitante, tem sede da vida e incapacidade de superar habituais angústias. Desenvolvem-se efeitos do tempo sobre a leveza do equilíbrio inicial inerente às relações, cada personagem se perde em seus desesperos.

Catherine hesita entre Jules, Jim e outro amante. Jim se deixa envolver por dúvidas com uma amante parisiense. Jules encontra significado na criação da filha Sabine.

Por fim, as coisas se esvaem. A impossibilidade. Catherine encerra a vida, ao lado de Jim. Jules fica, pra cuidar amorosamente da filha.Jules e Jim é um filme sobre afeto. É o retrato do fascínio e da beleza das relações, em seu caráter substancialmente humano – que se encerra na impossibilidade de vivência plena de todas as coisas.

[1] Considerando, inclusive, produções ulteriores – visto que Jules e Jim é o terceiro filme do diretor, e os dois filmes anteriores têm formas distintas.
[2] É interessante, inclusive, observar que a personagem não traz discursos elaborados a respeito da libertação das mulheres. Não é isso. Os tais elementos parecem apreendidos e interiorizados, a ponto de não se fazer necessário discuti-los retoricamente. Essa clareza permite a o desenvolvimento do triângulo amoroso.

As cidades em “Hiroshima, Mon Amour” por José Juvino Jr.


Vannes, Nevers, Hiroshima. As cidades estão nas pessoas, as pessoas são as cidades. O cineasta francês Alain Resnais nasceu em 1922, na cidade de Vannes, França. Começou sua carreira realizando trabalhos independentes, em sua maioria filmes/estudos sobre artistas como Vincent Van Gogh, o surrealista Max Ernst e Picasso e o seu 'Guernica'. Realizou importantes documentários, construções da novelle vague, como Noite e Neblina (Nuit et Brouillard, 1955), sobre os campos de extermínio nazistas. Sua estréia na ficção foi o hoje aclamado “Hiroshima, Mon Amour”, em 1959. O filme é uma adaptação de um manuscrito da escritora do noveau roman, Marguerite Duras.
Hiroshima, Mon Amour narra a história de uma atriz francesa (Emmanuelle Riva) que está na cidade japonesa para realizar um filme sobre a paz. Durante as filmagens, ela se envolve com um arquiteto japonês (Eiji Okada). Ele sobreviveu aos bombardeios de Hiroshima. Ela amou na cidade de Nevers um soldado alemão no final da Segunda Guerra. O soldado alemão foi morto no dia em que a cidade foi libertada. A atriz projeta suas memórias do amor com o soldado alemão no tempo/corpo presente, incorpora no arquiteto japonês sua dor, seu alívio. Ela quer tecer novos rumos para suas reminiscências.
A película começa com os corpos de Emmanuelle Riva e Eiji Okada, cobertos por uma cinza, brilhantes, pele roçando pele. Ela diz que já viu tudo em Hiroshima e ele replica que ela ainda não viu nada. Algumas imagens do que se supõe seja um documentário sobre os efeitos da bomba atômica em Hiroshima vão se entrelaçando, como se emaranhassem nos corpos dos personagens. As cidades estão nas pessoas. As memórias começam a ganhar corpo, o passado vai ecoando, fluindo, se superpondo sobre o presente.
Nevers, Hiroshima. O filme trata de misturar os tempos, embaralhar as referências do telespectador, ora narrando a relação entre a atriz e o arquiteto, ora fugindo, ou melhor, atualizando (no sentido de tornar presente) as vivências em Nevers. A francesa foi castigada por sua família, aprisionada num porão escuro. Ela não poderia ter amado um alemão. O telespectador descobre a história em Nevers na medida em que ela conta ao seu amante japonês suas lembranças.
Hiroshima, Nevers. Os dois se afastam, como se também a separação da francesa e o soldado alemão fosse re-criada. Resnais parece falar da impossibilidade do amor (o nome da cidade de Nevers parece insistir na referência óbvia do nunca para o amor) e da persistência da memória. O soldado alemão (r)existe no corpo dela, a cidade de Nevers está em seus olhos, sua cabeça; o jovem japonês persegue sua amante, a procura por toda Hiroshima. Somos instigados por dois fluxos paralelos, mas intimamente ligados: o passado em Nevers e o presente em Hiroshima.
O lugar-no-tempo onde o filme se passa, situa o caso de amor entre Emmanuelle e Okada numa época fria, período dos desdobramentos, dos efeitos das bombas na alma das pessoas/cidades. Tanto a atriz quanto o arquiteto estão mutilados pela insistência com que o passado se corpo, ganha peso, vida. Ela participa de um filme sobre a paz, porém podemos perceber mais o terror do silêncio, a palavra na garganta de uma cidade, tudo dormente, ainda por despertar de seu sono de agonia. Ele guarda as imagens de Hiroshima durante o bombardeio – “Ela (a atriz) não viu nada”.
“Hiroshima, Mon Amour” é um filme sobre cicatrizes. Mutilações na carne e no terreno sombrio e pantanoso da memória. O filme é uma cicatriz ele mesmo, película que inaugura e ventila inovações estilísticas, narrativas ousadas, escolhas heterogêneas. Um filme sobre a paz é feito em Hiroshima, é feito um filme sobre Hiroshima – o filme dentro do filme, o mundo no mundo. A Guerra Fria e o frio do silêncio onipresente em Hiroshima... Alain Resnais e suas cidades parecem dizer às outras partes do mundo dos horrores da existência humana, fadada ao fracasso na tentativa de superação do passado, na invenção do amor. Hiroshima, Nevers, Hiroshima, Vannes. Todas as cidades, todos os corpos.

"Bon Appétit" por Cecília Almeida


E se todo o universo coubesse num restaurante? Os dias seriam medidos de acordo com os pratos especiais no cardápio, o governante seria o gerente e o grande criador seria o cozinheiro. Cada ambiente físico representaria a hierarquia entre os vários estados de espírito e energia humanos, desde o bem até o mal. No estacionamento, maldade e bondade se misturam nos tons de azul escuro do mundo real. Na cozinha, as tentações em forma de comida – e sexo – surgem em meio à neblina esverdeada, num purgatório em que humanos cometem seus pecados mais bem intencionados e pagam por eles. Na sala de jantar, o inferno. A crueldade transpira em vermelho, e todos podem ser vítimas da tirania caprichosa de um diabo. O paraíso, onde ele não tem permissão para entrar, só poderia ser o banheiro feminino: branco, perfeitamente limpo e iluminado. Os anjos cantariam diariamente, através de uma criança, rogando pela purificação dos homens – e deles mesmos. Somente uma coisa poderia perturbar o funcionamento e a ordem desse universo: um homem, com a intenção nobre de salvar a esposa do diabo de seu cárcere conjugal. Homem que vem do mundo, onde o bem e o mal andam juntos, e se torna amante da mulher de bom gosto e inteligência, que sofre nas mãos do marido e só encontra paz longe dele. Bem, é lógico que o universo não cabe num restaurante, mas a metáfora serve bem para “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” (1989), de Peter Greenaway.
No cardápio, a deliciosa comida de Richard Borst, o Cozinheiro, e os abusos diários de Albert Spica, o Ladrão e gerente da casa. Entre Deus e o diabo, Georgina Spica, a Mulher, e Michael, seu Amante, se esgueiram na cozinha para se amarem em silêncio. A trama segue mostrando o dia-a-dia desses personagens e seu comportamento à mesa na hora do jantar. Ao final de cada noite, Albert Spica tempera o ambiente com um de seus surtos violentos – perfeitamente esquecidos no dia seguinte, quando tudo já voltou ao normal. Com isso, a obra ganha seu ritmo descompassado, às vezes lento e às vezes frenético, entoado por uma trilha sonora perturbadora e igualmente repetitiva.
A preocupação com a estética pode ser percebida desde os primeiros minutos. Cada detalhe, cada diálogo, cada objeto de cena. Tudo está colocado numa harmonia digna de quem sofre de um transtorno obsessivo compulsivo agravado. Cada cena parece uma pintura, um quadro bizarro meticulosamente pintado com cores fortes e chamativas. Nenhuma delas, entretanto, é usada por acaso: todas compõem, em conjunto, a atmosfera do restaurante onde praticamente todo o filme se desenrola.
A relação entre comida e sexo é bastante explorada durante a história. Daí porque a cozinha pode ser considerada um verdadeiro purgatório: a comida e a gula se tornam os instrumentos de tortura para vingar os pecados de luxúria cometidos ao longo filme. Com pitadas de humor negro, essas são as cenas que mais incomodam o estômago do espectador. O mórbido é utilizado sem grandes reservas, num estilo típico dá década de 80, personalizado pela assinatura de Peter Greenaway.
Como resultado, um filme extremamente perturbador, ironicamente colocado na seção de comédia das locadoras. O sentimento de repulsa pelo ladrão é estimulado desde o início, com cenas nada agradáveis de violência e com seu modo sempre odioso de se comportar. Ao contrário, a mulher e o amante embelezam o filme com cenas de amor silenciosas, sempre com o apoio velado do cozinheiro e dos seus anjos: os funcionários do restaurante. Assim, o adultério se torna perfeitamente permissível para o espectador, que certamente irá vibrar – se não passar mal – com o desfecho da trama. Talvez essa seja a mensagem de “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante”: por certos pecados, nem todos merecem pagar. Mas, para aqueles que merecem, a melhor vingança sempre será um bom prato, servido frio.

“Sobre o tempo” por Ana Maria Maia


Tempo, estar no tempo. Tempo, a consciência do tempo. Tempo, a dor do tempo. Tempo memória, tempo esquecimento, tempo, tempo... O dizer no tempo. O dizer do tempo. O dizer é o tempo... Tempo, tempo. Tempo, ser o tempo.

I. Nevers, França. Era guerra. A geopolítica dividia aliança e eixo. As fronteiras passavam de nacionais a ideológicas e militares. A cidade tentava a impressão de cotidiano. O campo de combate era longe, até que se sentisse o contrário. Montanhas, riacho, neblina, casas campestres. A paisagem continuava a mesma, as pessoas não. Um amor que irrompesse o espírito daqueles dias era perigoso, era maldito, era fugaz. O amor, jamais a lembrança.

Ela, a jovem filha do farmacêutico da vila. Ele, um combatente alemão, entre uma parada e outra. O cenário do aparentemente imutável foi palco para o encontro. Nevers foi pano de fundo para o grande amor. Até que o campo de batalha deixou de ser longe e a impressão virou toque. A neblina já não escapava mais por entre os dedos. Ele foi morto no front. Ela ficou em Nevers. Ela, desde então, foi Nevers.

Tempo de ser e de estar. Tempo, pós-tempo. Perto, pós-perto. Em tempo, em espaço. Espaço, outro espaço. Uma voz, outra voz. Sentido, percepção. Percepção da tragédia, sentido da dor. A dor do outro numa voz particular. A dor particular cessa na voz do outro. E dá vazão ao espaço do outro. Num tempo pós-tempo em que o perto separa o ser do estar. O estar do tempo. O estar no tempo. Tempo, tempo.

II. Hiroshima, Japão. A atriz observa para imitar. O arquiteto observa para construir. A atriz, no cinema, vive movimentos condenados. Por mais que únicos em matriz, resguardam-se à morte do momento. São só repetíveis na sua exatidão através do registro, do contar de uma máquina. O arquiteto, por sua vez, não repete tanto. Também não fala tanto. Calcula seu olhar no que fica e, pra isso, apropria-se em estudo e aproximação do que fica.

A atriz não é dali. E está de partida quando conhece o arquiteto. Ama o arquiteto e foge. O repulsa, mas resiste em ir. Confidencia um passado distante. Fria. Confidencia um passado não tão distante. Reticente. Confidencia um passado nunca passado. Debilmente entregue àquele companheiro no estar. Ela não entende a neblina, que vem e vai. Ela não entende a neblina, que consegue ser em todos os lugares. Isso ele entende. Isso o faz entende-la. Isso o faz querer abraça-la num desespero contido.


Hiroshima Mon Amour (1959), de Alain Renais
Com Emmanuelle Riva e Eiji Oxada
90 minutos

"sonhar com pássaros" por Juliana Paes


Dirigir um filme é como contar uma história. Imagens, sons, cores, diálogos... tudo contribui para que o receptor entenda e se solidarize com o diretor, caso contrário, o filme é ruim mesmo. Interessante foi o jeito que Hitchcock achou de contar a história de Os Pássaros (The Birds, 1963).
O filme parece um relato de um sonho, daqueles que acordamos assustados no meio da madrugada arfando. Poderia começar com a versão de Melaine Daniels (interpretada por Tippi Hendren): ... e lá na loja de animais chegava um cara alto, lindo, e puxava conversa comigo. Eu bem que tentei impressionar, mas eu tinha aquela sensação de que ele já me conhecia e fazia perguntas que me deixavam tão desconcertada! O certo é que eu viajava até Bodega Bay para encontrá-lo!
O galã sedutor, meio misterioso e a loirona parecem um casal perfeito de cinema, mas nos sonhos nem sempre é assim. Se mudássemos para a visão de Mitch Brenner (interpretado por Rod Taylor), ele contaria: ... e ela vinha de barco até minha casa, mas, na volta, uma gaivota bicava sua cabeça e depois o terror só aumentava. Era como se todos os pássaros de Bodega Bay estivessem enlouquecidos atacando as pessoas, as crianças no meio da rua... Eu não sabia exatamente se ela tinha atraído a maldição dos pássaros ou que outra coisa poderia ter causado aquilo.
Pronto! A sensação de pânico persegue os personagens e contamina os espectadores. O medo sem fundamento racional acaba se tornando mais importante que os próprios ataques. Exatamente como nos sonhos angustiantes em que não se consegue correr ou gritar, também no filme não há a quem pedir socorro, não se pode evitar ou conter os ataques das aves.
Aliado à sensação de medo constante e impotência ante os fatos há ainda outro fator curioso que colabora para a tensão do filme: a falta de trilha sonora. É exatamente como num sonho, o espectador é tomado de dúvida e angústia diante de um problema que não pode resolver, que não consegue entender.
E para confirmar o paralelo, o sonho é interrompido. Sem outra saída, Melaine e Mitch fogem sem rumo certo para longe dos pássaros. O filme acaba sem explicações, mas deixa a sensação de que aquilo tudo era tão real que põe em dúvida o comportamento dos pássaros que vemos todos os dias vagando inocente ou cinicamente ao nosso redor.
Algumas pessoas acreditam que sonhar com pássaros significa ter alegrias na família, reunião e confraternização de parentes, mas sonhar especificamente com corvos pode significar perigo iminente. Hitchcock talvez não conhecesse essas idéias ao encher o filme de corvos para dar o tom sombrio que substitui seus assassinatos emblemáticos. Ou os corvos ganharam este tipo de interpretação depois de serem representados pelo cineasta como os animais que inspiraram o medo permanente e indefinido, talvez.

"A companhia dos lobos" por Erick Vasconcelos


Devo começar parabenizando o diretor Neil Jordan pelos maravilhosos efeitos especiais de transformação dos lobisomens de A Companhia dos Lobos (1984). Neste ponto, ao que parece, o diretor realmente levou a sério sua determinação de fazer uma paródia de Chapeuzinho Vermelho. As transformações ficaram muito engraçadas. Principalmente uma delas, que dura, talvez, cinco minutos, e em que o lobo é morto instantaneamente depois de terminar sua metamorfose com um golpe de pá na cabeça. Hilário.
O filme mostra os sonhos da adolescente Rosaleen (Sarah Patterson), que havia visto sua irmã ser morta por um lobo. Sua avó (Angela Lansbury), então, lhe conta histórias sobre lobisomens e seus perigos. Ela alerta a neta para os perigos dos homens cujas sobrancelhas se encontram (os chamados monocelhas), que são lobisomens, e a adverte para nunca sair da trilha na floresta. Tudo isso num ambiente carregado de maquiagem.
A Companhia dos Lobos pretende misturar fantasia com horror, mas eu não diria que teve sucesso. Como já assinalei, os lobisomens não conseguem ser mais que kitsch, e as histórias contadas pela vovozinha (às vezes contadas por alguém de dentro de uma história da vovozinha) idem. Jordan, aparentemente para manter uma aura infantil no filme, mostra uma Rosaleen deslumbrada com as histórias, mas que, mesmo assim, esquece dos conselhos que lhe foram dados. Ao final, ela acaba por sair da trilha da floresta, apesar dos repetidos conselhos em contrário, e leva para a casa de sua avó um homem cujas sobrancelhas se encontram. O lobisomem mata a velha, mas Rosaleen, com sua inocência, fica amiga dele.
Há algumas características estéticas do filme bastante irritantes. Em primeiro lugar, a supracitada maquiagem. Ela dá cor ao filme; de fato, dá cor demais ao filme, embora ele se passe numa floresta escura. Em segundo lugar, os brinquedos na floresta. I mean, c’mon. Brinquedos na floresta para dar um aspecto de lugar fantástico? Sejamos mais criativos. Também não posso deixar de citar a cabeça de gesso da vovó que se quebra no final do filme. Qual seria a mensagem metafórica disso? A única coisa em que consegui pensar foi na fragilidade das pessoas mais senis (e fica bem engraçado dessa forma).
E, por falar em metáforas, estou até agora pensando sobre qual será a mensagem subjacente ao final do filme, onde Rosaleen, no mundo real, é atacada por lobos em seu quarto quando dorme. Sonhos se tornam realidade? Inspirador.
Por fim, tenho que reagir àqueles que dizem que há algum tipo de “sensualidade” neste filme. Por favor, digam-me que tipo de droga estão usando.

"Duplicidade de vidas" por Cecília Almeida


Sempre há momentos em que se acorda no meio da noite, talvez depois de um pesadelo, com a sensação de que se está terrivelmente só. Momentos em que os piores anseios aparecem sem justificativa, sem convite, sem precedentes. Quase como se estivéssemos sentindo a mágoa de uma outra pessoa. De um estranho, que poderia habitar qualquer lugar do mundo, falar qualquer língua e ter experiências de vida totalmente diferente das nossas. De alguém que, apesar de existir de maneira independente, compartilha conosco algo que vai além da matéria. Alguém que se pode sentir através do espaço e com quem, de uma maneira inexplicável, se pode aprender. Uma segunda versão de nós mesmos, uma segunda vida.
Weronika, em Praga, era o esboço. Traz na mão a cicatriz de quando encostou a mão perto do forno, e se queimou. Amante da música, ela começou a cantar em concertos sem muito treinamento, ignorando o coração doente. Véronique, em Paris, é professora de música clássica e sempre soube o que tinha de fazer sem que ninguém a dissesse. Sempre soube que não se deve colocar a mão perto do forno e intuiu naturalmente que deveria ir ao cardiologista. Desistiu das aulas de canto sem dar uma razão plausível ao seu professor, no dia seguinte à morte de Weronika. Ambas sempre sentiram as vidas uma da outra e dividiam pequenos hábitos, pequenas manias, pequenas paixões. Mas, se uma era o prelúdio da outra, a primeira precisou morrer para a segunda aprender a continuar vivendo.
“A Dupla Vida de Véronique” (1991), de Krystof Kieslowski, é uma fábula. Uma fábula que traz a graciosa Irène Jacob (A Fraternidade é Vermelha) encarnando essas duas mulheres que se pressentem em tudo o que fazem. Um filme denso, de grande peso psicológico, que deixa muito o que pensar – e sentir. A idéia de que há outra pessoa no mundo que compartilha nossos mesmos sonhos, desejos e sentimentos atinge algumas das questões mais ontológicas do ser humano. Só que Kieslowski faz isso de maneira extremamente sutil e meticulosa, e isso faz com que o filme pareça um verdadeiro exemplo de nonsense aos olhares pouco sensíveis e atentos. São os detalhes pequenos, em planos de fundo, que dão as dicas para juntar as peças do filme. Por isso, os acostumados com a estética cinematográfica mainstream, de fácil digestão, poderão tomar “A Dupla Vida” por um filme confuso. Com certo desprendimento emocional e mental, entretanto, qualquer um pode perceber a lógica da película. É um exercício de introspecção que vai longe, para além do filme e para dentro do espectador.
De certa forma, “A Dupla Vida de Véronique” inaugura um formato que Kieslowski iria aprimorar na sua magistral Trilogia das Cores. “A Fraternidade é Vermelha” (1994), que repete a atriz Irène Jacob, também brinca com as pequenas coincidências e conexões que os seres humanos compartilham através do tempo e espaço. O primeiro, entretanto, deixa mais pontas soltas, ou seja, é mais aberto à interpretação. Embora isso possa dar a impressão de que a obra é um tanto prematura, é isso que a torna mais intimista, mais subjetiva.
Essas pontas soltas podem resultar em inúmeros nós diferentes, dependendo da visão de quem assiste. Alguns podem achar que as duas mulheres estavam realmente conectadas, enquanto outros preferem acreditar em coincidências. Kieslowski não dá certezas, mas coloca em cena os elementos necessários para que o espectador tire suas próprias conclusões. Não é de se admirar que não haja uma solução definitiva para o filme. Pois Weronika e Véronique representam a angústia de todos os seres humanos que já se perguntaram um dia se estavam sozinhos. E que continuaram sem resposta.

"El perro" por Conceição Gama


Uma história sublime, pontilhada pelo subdesenvolvimento do início ao fim. É assim que se pode definir O cachorro (El perro, Argentina, 2004), película assinada por Carlos Sorín. O diretor consegue alcançar sutilezas do país lationo-americano que diretores hollywoodianos, por exemplo, jamais teriam sensibilidade para perceber.
A trama, sobretudo é sustentada pelo subdesenvolvimento. Juan Villegas (interpretado pelo próprio), conhecido como Coco, é um homem de 52 anos, que trabalhou durante 20 em um posto de gasolina. Agora, desempregado, ele fabrica facas para vender e viaja com sua caminhonete para oferecer o artesanato em diversos lugares. Mesmo assim, o dinheiro é pouco, pois os habitantes da província são pobres e não têm recursos para comprar as facas de Villegas, embora as admirem.
Um dia, em uma dessas viagens, Coco dá de cara com uma moça que está com o carro quebrado na estrada. Ele então, como ex-mecânico, dá o diagnóstico do problema, mas o automóvel precisa ser rebocado. Eles vão até a casa da moça e Coco conserta no carro. Não tendo como pagar em dinheiro, a mãe da mulher oferece a Villegas um chá e lhe dá de presente um dogue argentino, ironicamente batizado de Bombón.
A partir desse presente, que de cara pareceu um belo presente de grego, Coco começa a arranjar pequenos serviços. O animal se torna, então, a grande companhia de Villegas, que foi abandonado pela esposa e mora com a única filha, mãe de três crianças e casada com um homem portador de depressão aguda.
O cachorro é, por que não, uma espécie de road movie. Ao longo da trama e das viagens que Villegas faz com seu furgão, uma série de características latino-americanas ficam evidentes: a situação financeira difícil, a corrupção das autoridades (na cena em que Villegas suborna o segurança), a confiança excessiva no outro, a alegria trazida por pequenas coisas.
Apesar de todos os pesares, o filme transmite uma mensagem mais que positiva: esperança. Sentimento esse, que pode ser encontrado logo na primeira cena, nos olhos vivos de Villegas. Mas essa não é uma esperança qualquer. É aquela esperança da vida toda, compartilhada pelos povos filhos do subdesenvolvimento, de que o dia de amanhã será melhor que o de hoje.

"O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante" por Tiago Maciel


“O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante”. A história do filme é isso mesmo que o título sugere: Georgina é a esposa de um criminoso chamado Albert e, por estar cansada de sofrer constantes abusos do marido, se torna amante de Michael, um dono de livraria. Eles se encontram sempre entre as refeições no restaurante favorito de Albert cujo chef encoberta as escapulidas de Georgina. No entanto, a história é o que menos importa neste filme, que se preocupa mais com a estética visual do que com o roteiro propriamente dito.
O diretor Peter Greenaway reflete em “O Cozinheiro...” a situação em que se encontravam os filmes do final da década de 80, mostrando imagens que variam entre a beleza artística dos figurinos que mudam de cor em diferentes ambientes, as bizarras cenas de sexo no frigorífico rodeado de pedaços de carne e a violência desmedida de Albert, principalmente à medida em que o filme se desenrola e a traição de sua mulher vai ficando mais evidente.
No entanto, o filme deixa a desejar no que diz respeito a prender a atenção do espectador. Alguns, obviamente, vão se deixar levar pela curiosidade natural de um cinéfilo, mas o filme não consegue despertar isso no espectador mais “normal”. É perceptível que o filme foi feito com a intenção de chocar a audiência com suas cenas pesadas e ambientes perturbadores. Porém, há quem acredite que exista no filme uma forte crítica à política da então primeira-ministra britânica Margaret Tatcher, coisa que a grande maioria dos espectadores não vai perceber.
Ao final do filme, o espectador é deixado com duas opções: amar o filme e achá-lo uma obra-prima do cinema britânico ou odiá-lo e ficar enojado com o sem-número de bizarrices contidas nele (principalmente nas cenas finais). Em ambos os casos, existe uma reação, o meio-termo e a indiferença não existem, ficando aparente a intenção do diretor de tentar provocar a platéia e fazer com que seu filme seja alvo de discussões. Principalmente, no que diz respeito à estética visual, já que o próprio Greenaway costuma dizer que “se você quiser contar histórias, seja um escritor, não um cineasta".
Apesar disso, o filme conta com as ótimas atuações de Michael Gambon (o atual mago Dumbledore na série de filmes “Harry Potter”) e de Helen Mirren (ganhadora do Oscar e do Globo de Ouro de melhor atriz em 2007 pelo filme “A Rainha”) como Albert e Georgina, respectivamente.

"Tomás Gutierrez Alea" por Luís Henrique Leal





I

Em Agosto de 1975, o jornalista colombiano Gabriel Garcia Márquez escrevia para a Revista Alternativa a reportagem “Cuba de cabo a rabo”, publicada em três partes. Era um momento fundamental, em que se iniciaria um processo de institucionalização da Revolução Cubana. Não parece casual que neste processo de institucionalização existisse um interesse específico em relação ao problema da liberdade de criação e expressão.

“Poucas coisas originaram tantas controvérsias azedas e tantas alegrias aos inimigos quanto o enigma idiota de saber se a pintura do socialismo deve ser realista ou abstrata, ou se a música deve ser melódica ou concreta. No projeto de Constituição, os cubanos resolveram o problema com uma penada: todas as formas de criação artística são livres.”

A discussão citada por García Márquez é reveladora.

Fica entendida uma peleja entre diferentes concepções das possibilidades de constituição de significado artístico. Uma das compreensões – que se parece haver feito minoritária, não havendo conseguido transformar-se em texto constitucional -, devidamente classificada como estúpida pelo autor, colocava-se como uma possibilidade temerária do estabelecimento de um referencial onipresente, modelo para toda e qualquer criação, e da submissão da arte a interesses de outra ordem.A determinação de um modelo de produção artística seria claramente uma tentativa de estabelecer, através da imposição, modelos de reverência. Sentenciar que as produções artísticas devem organizar suas disposições morfológicas e temáticas de tal ou qual jeito equivale ao estabelecimento de uma tipificação idealizada; é um desdobramento do raciocínio moderno, capaz de considerar a existência de um único significado explicativo verdadeiro.

Ao passo em que o desenvolvimento da linha de raciocínio pode gerar lógicas perversas de limitação das possibilidades de criação artísticas, se faz conveniente dimensionar uma estrutura de racionalização que compreenda esta lógica.

Obras de arte não existem fora do tempo, isto é, se vinculam a razões estruturais vivenciadas num determinado tempo – a partir de perspectivas objetivas ou subjetivas – e a tentativa de enquadrar atende a uma assimilação .

Uma compreensão generalizada entre os cubanos era, pois, que a arte poderia – e deveria - ser um fator de alteração da ordem social. Desde a criação do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC) – tão somente 83 depois do triunfo da Revolução -, por exemplo, se estabelecera uma consciência das vinculações do cinema com a formação de um imaginário coletivo.

II

Os livros de história não reservam muitas páginas ao ano de 1975. Laconicamente, compendiam-se a relacionar as independências de Angola e Moçambique, a proclamação da República na Etiópia e tergiversar sobre uns quantos dados pouco significativos sobre a Guerra Fria. Uma observação com maiores preocupações de aprofundamento, no entanto, não estabelece objetividade a ponto de impossibilitar uma visão ampla dos permeios.

1975 é, assim, ano do fim da Guerra do Vietnã – precedente histórico, fundamental para a compreensão do arranjo geopolítico da Guerra Fria. Mas é, igualmente, incorrer em erro acreditar que a existência de um fato ao qual se atribui maior importância historiográfica encerra a discussão acerca dos significados dos acontecimentos no tempo.1975 resulta de um aglomerado de arranjos e ordenações do mundo. Logo, em si, nada representa. O parágrafo anterior vislumbra a importância de encerrar um momento dramático da história, imperativo da brutalidade. Tal encerramento, no entanto, organiza-se a partir de uma lógica pregressa.
É um ano que desdobra conseqüências resultantes de 1789, 1848 ou 1968. Desse modo, parece interessante considerar o ano em questão – ou qualquer outro - como uma acumulação de significados, de memória; uma profusão de sentidos.III

Tomás Gutierrez Alea não filmava em 1975; trabalhava na pré-produção de seu filme “La sexta parte del mundo” – realizado em parceria com Júlio García Espinoza. Mas “Titón”, como amorosamente era chamado Alea, já acumulava uma filmografia fascinante.

Já havia realizado o que hoje se considera sua obra-prima, o longa-metragem “Memórias do subdesenvolvimento” (1968) – adaptação do romance homônimo de Edmundo Desnoes.

1968, o ano que não acabou. Che Guevara morto. Martin Luther King por morrer. Maio, jovens franceses acreditam na possibilidade de transformar o mundo. Agosto, tanques soviéticos avançam sobre Praga. Outubro, mais de quinhentos estudantes mexicanos chacinados em Tlatelolco. Dezembro, os militares brasileiros se saem com o AI-5.1968, o cinema projeta um mundo que poderia ser. Terra em Transe, A chinesa e Antes da revolução são incentivadores dos protestos de Maio, na França. O Eldorado glauberiano suplanta Voltaire – e o filme é proibido. Costa-Gavras, também; Z, por analogia, ridiculariza nossos militares. Pasolini desconstrói a burguesia em Teorema. “Muitos intelectuais proclamavam solenemente sua decisão de suicidarem-se como classe”.

Fato é que poucos o fizeram verdadeiramente, materializando a intenção.

IV

“Para que o povo esteja presente nas telas não basta que ele exista, é necessário que alguém faça os filmes. As imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas como a sua expressão, e sim como a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre cineastas e o povo. Esta relação não atua apenas na temática, mas também na linguagem.”A primeira seqüência de Memórias do Subdesenvolvimento (1968) nos apresenta uma festa popular que toma as ruas. Há uma multidão dançando uma música quente e forte ritmicamente. Todos parecem envoltos numa atmosfera caótica e liberada. Em meio à multidão, escutasse um tiro mas este acontecimento pouco ou nada altera o clima da rua. O povo está em festa.
As imagens parecem haver sido captadas documentalmente, assim como muitas outras no filme. Memórias do Subdesenvolvimento é um filme que consegue captar a euforia espontânea do povo cubano, que revela um momento completamente novo.

Mas o uso da linguagem documental permite também outras possibilidades narrativas. O filme é feito com leveza, e se vê completamente à vontade na sua construção narrativa.

No filme de Tomás Gutierrez Alea, em diversos momentos, a realidade invade a ficção. A narrativa se faz com o uso de muitos materiais captados de forma documental, mas não é este o maior aspecto documental de Memórias do Subdesenvolvimento. Impressiona a construção narrativa cheia de digressões do personagem Sergio – focalizados a partir do exterior e do interior de si mesmo.

O filme estabelece uma apreciação multilateral dos seus acontecimentos. Esse parece ser um trunfo de Memórias do Subdesenvolvimento

Sérgio é um observador distante da realidade. Expressivamente impecável, é um experiência cinematográfica importantíssima. A câmera dinâmica acompanha os sentimentos e raciocínios de Sergio, e mais que isso estabelece uma grande visão panorâmica da realidade – na perspectiva de Sergio e num plano mais objetivo.À cena inicial, das pessoas numa comemoração festiva desenfreada, segue-se a do embarque das pessoas que deixam o país com destino aos Estados Unidos: o êxodo da burguesia nos anos iniciais da Revolução – contraposto à euforia popular. Todos se vão, Sergio resolveu ficar.

Sergio permanece sem saber, ao certo, o que será o porvir e qual sua motivação mais premente. Poder-se-ia dizer que está, inclusive, um tanto aliviado por haver-se livrado da esposa e dos pais.O personagem é notadamente marcado por uma consciência constante do processo que vivencia, assim vai construindo concepções sobre as coisas com que se relaciona.

As digressões de Sergio demarcam um forte sentimento de fascínio e desprezo, que se vai desenvolvendo conforme a realidade ganha novos contornos.

De pronto, em uma de suas observações da cidade, Sergio se põe a olhar os símbolos da Revolução recém inaugurada. Um de seus comentários se refere a uma estátua representativa do governo de Fulgêncio Batista, que foi derrubada. Picasso teria ficado encarregado de mandar um novo símbolo, mas não haveria chegado a fazê-lo.

É significativa, neste sentido, a possibilidade de atribuição de significados. A exaltação de um modelo de sociedade se faz da legitimação de processos que garantam a atmosfera de normalidade e legitimidade. A estátua da época de Batista é, assim, um símbolo das representações de um modelo pregresso - com o qual o tempo em que se passa o filme tenta romper.A substituição por um símbolo renovado, e constituído por um artista de vanguarda nas artes plásticas como Picasso, representa um desejo de afirmação de uma outra possibilidade de construção das coisas – a partir, evidentemente, da exaltação de outros referenciais.Quando da apresentação da cena, em Memórias do Subdesenvolvimento, vemos um suporte sem qualquer estátua. Isto é, destruída uma representação do passado, o que há é uma indefinição – demarcada, simbolicamente, pela ausência da estátua.

Sergio tem uma atitude passiva diante da realidade, é mero observador distante das coisas. Tudo vê de cima e à distância – conforme nos revela metaforicamente Titón ao relacioná-lo a uma luneta. Dotado de senso crítico, é capaz de julgar a realidade e compreendê-la em muitos de seus aspectos; mas incapaz de integrar-se ao processo que se desenvolve nas ruas.

Seu juízo nem sempre é lúcido, Sergio é, também, a representação de um auto-exilado que se nega ao rompimento com as construções de significado da sua sociedade burguesa. Sergio é um burguês dilacerado.Ao mesmo tempo em que percebe, com certo fascínio, a complexidade do novo momento, Sergio busca, por vezes, resistir às novas lógicas e desprezar o subdesenvolvimento que vê como inerente e onipresente na ilha.

Sergio está à margem de toda essa perspectiva de mudança. Não está integrado.

VTomás Gutierrez Alea é autor de um livro intitulado “Dialética do espectador”. A grande questão colocada pelo autor é a da apreciação multilateral dos fatos. A realidade se apresenta através de várias perspectivas – em Memórias do Subdesenvolvimento fica evidente a contraposição entre a realidade dos olhos de Sergio, realidade introspectiva projetada pelo personagem, e um olhar mais objetivo e impessoal da realidade.

Para Titón a verdade não está em nenhum dos pólos de oscilação. A realidade verdadeira surge da capacidade de síntese, do confronto entre as duas perspectivas e dos protagonistas da história. Os sujeitos elaboram conceitos de emancipação do pensamento, a partir da capacidade de dialogar com a multiplicidade de compreensões da realidade.Mas a constituição de universo de Titón não chega a ampliar as possibilidades de compreensão a ponto de inviabilizar uma hierarquização da realidade. O diretor parece basear-se na ampliação temática, mas estrategicamente estabelece um foco para os questionamentos.

VI

“Um país sem cinema documental é como uma família sem álbum de fotografias”.

A compreensão e Tomás Gutierrez Alea e de boa parte da geração de cineastas cubano é, desde o princípio da revolução, de que a arte cinematográfica poderia – e deveria – ser um fator de progresso. Neste sentido, a compreensão é de que o audiovisual exerce uma influência referencial no imaginário coletivo, e que seu desenvolvimento é desdobramento de uma busca de disputa no campo simbólico.Se memória coloca questões fundamentais no que concerne à identificação dos sujeitos, as representações constituídas e as considerações sobre o passado atribuem vivacidade aos acontecimentos. Várias buscas de representação da realidade exercem uma função social importante no que concerne à criação de uma identidade a partir da seleção de memórias, mas para isso é preciso que o público se reconheça nesse cinema.

É uma das preocupações de Titón fazer do espetáculo[1] cinematográfico um elemento de ação e mobilização

VII

Guimarães Rosa já disse que amar é reconhecer-se incompleto – e transcender-se.Tal afirmação pode levar-nos aos mais diferente entendimentos e analogias. Inclusive, à compreensão do cinema que Tomás Gutierrez Alea buscou fazer, e que conseguiu com mais completude em seu “Memórias do Subdesenvolvimento”.

Titón amou a Revolução Cubana – em seu sentido revolucionário. E por considerar que o cinema tinha uma função significativa no processo desencadeado pela revolução, não buscou em nenhum momento tradicionais formas que tendessem a simplificar e esquematizar a realidade em nome da exaltação dos valores revolucionários.A construção da representação da revolução, constituída por Titón, leva a uma imagem multifacetado, que contempla os objetos sob diversos pontos de vista e objetiva provocar julgamentos no espectador. E que segundo grifo do próprio Titón “o primeiro objetivo da crítica dentro da revolução deve ser armar o espectador para a luta pela revolução mesma, fortalecer os princípios nos quais se assenta e acelerar seu desenvolvimento”.

III

Sergio não é uma coisa nem outra. Não é gusano, nem revolucionário – como lhe diz, inclusive, Elena. Esta que é tão boa moça, mas que atrapalha os planos de Sergio de chegar ao que ele acredita ser o desenvolvimento.No museu Hemigway, Sergio tem, entretanto, é tomado por um pensamento significativo. Dentro de sua cabeça, é capaz, através de sua reflexão, de desmontar os esquemas de colonização – exaltados no processo de admiração venerada a Hemingway.O escritor americano, na compreensão de Sergio, nunca se agradou verdadeiramente da ilha. Encontrava apenas refúgio num paraíso exótico, cheio de colonizados miseráveis e disponíveis às suas necessidades. Resultado disso é um jovem negro, que conheceu o escritor ainda criança e foi ensinado a como bem servi-lo adequadamente.Noutra reflexão, Sergio desmonta a lógica dos assassinatos e das justificativas destes no governo de Batista. Implacavelmente, as pessoas e as coisas, evocam a lógica do grupo como forças irrevogáveis e superiores na justificativa das brutalidades. Várias imagens demarcam as novas relações que partem da erradicação de tais repressões e da tentativa de reconstituir novas relações.

VI

O personagem de Sergio desaparece ao final da história. Dilacerado, no período da crise dos mísseis em 62, parece não suportar o desfecho apolíptico que se avizinha – e causa uma obrigatoriedade de ruptura. Por fim, vemos Sergio “É uma dignidade muito cara”.

O processo de desintegração do personagem, no entanto, não vem ao acaso. Desde o princípio, há uma evidente incorrespondência entre Sergio e as pessoas das ruas, entre o sentimento introspectivo de Sergio e o pensamento que se generaliza entre as pessoas.

Sergio não é produtivo. Sempre conviveu com a constatação de que tendo tempo, poderia escrever um romance ou algo do gênero. Solitário, e estabelecendo uma relação kayrosiana com o tempo, se mostra incapaz de produzir – “Agora veremos se tenho realmente algo a dizer”.

Com todas as suas profundas contradições, Sergio pode conduzir-nos a uma tomada de consciência do significado do subdesenvolvimento tanto no plano econômico como no cultural e ideológico. Há um momento em que o espectador, que a princípio compartilhava com o personagem suas observações e critérios da realidade, começa a sentir-se incomodado poruqe o ersonagem com o qual se identificara vai afundando num mar de contradições, dúvidas e incompreensões paralisantes.

Sergio não consegue compreender os valores que norteiam o novo universo. Num sentido profundo, Sergio aparece como um subdesenvolvido na nova sociedade.

VII

Ao fim e a cabo, Memórias do Subdesenvolvimento é um filme fascinante. Uma película capaz de revelar as profundidades e incompletudes do sujeito humano diante dos processos históricos, de desvendar os traumas e contradições da erradicação de um cultura, de apresentar de forma fascinante uma trajetória.






[1] Segundo o sociólogo francês Guy Debord, o espetáculo abre espaço tão somente para a contemplação. Não há ação, esgotam-se as possibilidades de transcendência. A sociedade atinge um estágio de passividade e dependência cotidiana, resumindo-se a reproduzir estruturas – sem qualquer tipo de racionalização. O fio da “normalidade” mantém-se a partir do entretenimento vazio, da larga difusão do espetáculo.

quinta-feira, 22 de março de 2007

"A persistência da memória" por Rodrigo Almeida Ferreira


Você não viu nada em Hiroshima.
Nada.

Eu vi tudo.
Tudo.

No decorrer da história do cinema, não foram poucos os flertes entre a linguagem audiovisual e a literatura. E também não foram poucos os filmes que na tentativa de enlaçar esses dois campos, terminaram por suplantar um ou outro. Quando não ambos. São os filmes que possuem um texto articulado, proveniente de uma base literária, mas sem nenhum apuro imagético, ou os que até possuem um apuro imagético, mas não conseguem rearranjar o conteúdo lingüístico na tela. Afinal elaborar um roteiro não é o mesmo que escrever um livro por mais abrangentes que sejam as possibilidades. É muito fácil qualquer frase bonita soar patética. Essas produções perdem qualquer tipo de consistência, a partir do momento que os seus próprios recursos se tornam incompatíveis dentro de uma única obra, a partir do momento que o discurso e a estética se fragmentam em pesos desiguais. São diálogos que não cabem nos personagens, narradores poéticos em olhares precipitados ou expressões faciais que não dizem nada.
Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, porém, segue por um caminho bem distinto. A película impressiona pela maneira como o vigor literário não enevoa, em nenhum momento, o poder imagético do filme. E como a música aparece como um terceiro viés, intensificado e retificando a proposta enquanto narrativa. Esses elementos estão sempre se renovando na forma de se relacionar, sempre se reiterando, se complementando. Quase como num jogo de encaixe. Se por um lado, a palavra assume um papel fundamental no jogo de sensação e impressão dos personagens, sendo transmitida através de um tom peculiar e sonoro onde cada sílaba é submetida a um ritmo próprio; do outro, surge uma preocupação estética profunda em enquadramentos e composições de cena expandindo sensorialmente, através de objetos, tempo de imagem e movimentos de câmera, todas as questões filosófico-existenciais já ditas e reditas. Funcionando a música como um recurso sensibilizador, tênue e permanente. Tudo se auto-completa. Tudo se torna lírico. Tudo coexiste harmoniosamente, por mais angustiante que seja a temática. Hiroshima não é um grande filme apenas pela literatura que contém ou pelo cinema que representa, mas pela difícil missão de criar um laço que os une quase que organicamente. E nesse campo, foram poucas as tentativas que deram certo.

Pode-se zombar, mas ou que mais pode fazer um turista senão chorar?

Mas a película de Alain Resnais não é um grande filme apenas por isso. Começar a assistir ‘Hiroshima, Mon Amour’ é certeza de acompanhar densamente o filme até o fim, de se envolver no lirismo literário-imagético que permeia toda película. Não existem desistências ou interrupções. O começo é intenso e ele lhe consome. São 15 minutos de total suspensão. Dois corpos nus, enlaçados. Um feito na medida do outro. Trata-se de uma atriz francesa e um arquiteto japonês. Ela fala de tudo que viu sobre Hiroshima. Ele diz que ela não viu nada. Nada. Ela reconta a história da cidade pós bomba atômica através dos meios que teve acesso. Jornais, noticiários, filmes, visita ao hospital, quatro vezes ao museu, pedras queimadas, cabeleiras anônimas caídas e ferros retorcidos numa exposição. A história e as reconstituições na falta de outra coisa. O japonês, porém, sempre intervém; replica que ela não viu nada. Nada. E não viu mesmo. Nenhum de nós viu. Há um formato documental marcante no filme, herança do próprio Resnais que antes de Hiroshima realizou alguns documentários (, assim como há uma marca poética e repetitiva provinda do roteiro da escritora Marguerite Duras, que dá um toque extremamente literário às palavras ditas pela linda voz de Emmanuelle Riva. Quase como recitasse. Terminado esse primeiro momento do filme, se revelam as faces dos personagens. Aquele que era para ser apenas mais um encontro casual numa noite qualquer se torna, segundo após segundo, num relacionamento profundo, num envolvimento profundo. A atriz vai voltar para França. O japonês quer que ela fique. O tempo entre eles não pode ser nem prolongado, nem abdicado. Resta ao casal aproveitarem suas últimas horas juntos, um na medida do corpo do outro, sofrendo por não poderem mudar seus próprios destinos. Perambulam pela cidade, conversam; ela revela detalhes trágicos do seu passado. Detalhes de quando era jovem, de quando estava durante a Segunda Grande Guerra em Nevers, na França, apaixonada por um soldado alemão. Quase uma sessão de psicanálise. Agora ela já havia esquecido esse amor antigo e acreditava que logo, logo esqueceria o novo. Mas ela não pôde antes e não pode novamente. A atriz está mentindo, tentando esconder a passionalidade que a domina. Que a confunde e enlouquece se for preciso. Que a faz gritar, que a faz arranhar suas mãos contra a parede. Assim como por mais amarga que seja a lembrança da bomba atômica de Hiroshima, o japonês não poderá esquecê-la. Nenhum japonês poderá, ainda que tornem as ruínas de sua cidade em pontos turísticos. A francesa diz “assim como existe no amor, a ilusão de poder nunca esquecer, eu tive diante de Hiroshima. A ilusão de jamais esquecer como no amor. Como você, eu conheço o esquecimento”. O japonês a responde “Você não conhece o esquecimento”. Ele sabe que ela não conhece, porque ele próprio não também não conhece. Nenhum de nós, para ser bem sincero. A memória persiste.

Porque negar a evidente necessidade da memória?

quarta-feira, 21 de março de 2007

"O Jules e Jim de Truffaut" por Paulo Carvalho


Realizado a partir do romance de Henri-Pierre Roché, Jules e Jim(1962), a obra prima de François Truffaut, é um híbrido formal. É sabido que o recurso à literatura sempre foi, no cinema, algo bastante aceito. Muitos filmes foram adaptados de romances e peças teatrais.Em Hollywood, por exemplo, trabalharam diretamente como adaptadores e roteiristas escritores proeminentes como Fitzgerald e Huxley. Nesse sentido, Truffaut não esteve à frente de seus antecessores, é verdade. Se há em Jules e Jim um encanto particular é, sem sombra de dúvidas, por ser um daqueles casos raros em que o conteúdo e a expressão se enleiam e conferem a obra total precisão e potência discursiva. Em outras palavras, a história de amor de Jules e Jim não poderia ser, no cinema, contada de outra maneira.
Se a literatura conta com a liberdade imaginativa individual, portanto com nosso pacto de não sufocar demasiado as palavras com as imagens que se desprendem delas, o trabalho do “cinema literário” é de uma delicadeza quase impossível. Uma imagem literária quase sempre surge de maneira difusa, bastante viscosa, poderíamos dizer. Uma imagem duplamente subordinada à matriz textual e à disposição de cada um em gerá-la. Na outra mão, aparentemente, à imagem no cinema nada subordina. A imagem surge ela mesma, impositiva, porque é o que é. Ainda que Truffaut tenha insistido ser “Jules e Jim antes um livro cinematográfico que um pretexto para um filme literário”, não poderá fugir a evidência de ser seu filme uma outra obra.
O filme conta a história de um denso triângulo amoroso vivido na Paris do início do século XX. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) conhecem-se no ambiente vibrante da noite parisiense e logo partilham suas paixões. Pela literatura, pelas noitadas, pelas mulheres. Partilham as mulheres. Eis uma grande amizade vivida na superfície das afecções. Jules e Jim recriavam para si tudo o que viam e tudo o que viam era um ponto recriador da sua própria relação como amigos. Havia leveza e um certo descompromisso com a objetividade do mundo. Havia leveza até mesmo na obsessão por um busto feminino que os arremata e os silencia por mais de uma hora de deleite. Mas Jules e Jim conhecem Catherine.
Catherine(Jeanne Moreau. é a dimensão trágica que faltava à Jules e Jim. Subitamente os amigos são arrastados pelo real mais real que imagem de Catherine produzia neles. Foi impossível não se deixar arrematarem também por aquele busto de mulher vivo, pela encarnação daquela beleza idealizada no Adriático. Catherine apresentou o amor, tal qual como conhecemos hoje, ao romantismo boêmio de dois amigos até então indiferentes ao mundo.
O amor sobre qual o século XX se jogou e quis dele tirar tudo quanto mais não conseguiu tomar pelos caminhos da guerra. O amor igualmente extremado, sangrento e irremediavelmente trágico, ainda que vivaz, potente e purificador. O amor que quis enterrar de vez o romantismo e suas convenções. Esse foi o amor encarnado por Catherine, uma imagem que se debate sobre si mesma pra continuar viva. Catherine aprisionou Jules e Jim, deu-lhes densidade aos seus sentimentos, era uma linha de morte trançada a uma linha de fuga. Catherine deixava-se ser um quadro limpo de mil inscrições possíveis sobre o qual o desejo de Jules e Jim se inscrevia, sobrescrevia. Ao mesmo tempo, Catherine abandonava seus sobrecódigos a cada respiração, de maneira arbitrária como uma respiração. Deixava para trás sua pele ela toda inutilizável, gravada com palavras sem sentido e sem vida. Devolvia o abismo de si mesmos aos amigos Jules e Jim e os convidava novamente a aprisioná-la. Mas cada reimpressão de sentido, cada corrente que se fechava sobre a intensidade de vida que havia em si, Catherine reencontrava o próprio fantasma vazio de si mesma, como a amoralidade que vira moral, ou o relativismo que não consegue se desterritorializar, ou ainda, à maneira de Nietzsche, como um o oriente que não consegue ir ao oriente de si mesmo.
O destino ofereceu Catherine a Jules e Jim. Truffaut nos ofereceu uma imagem que também quer ela pular, ou deixar que pulemos a partir dela, no abismo da imaginação. A busca pelo mais-ser engendrada pelo devaneio da imagem não acontece sem desdobramentos, articulações múltiplas, litígios de forças. Mesmo no romance a imagem está para o texto como elemento de conteúdo repleto de expressão, ainda que a forma desse conteúdo não nos remeta diretamente a forma de expressão originária do código da linguagem. Na genialidade do cinema literário de Truffaut essa relação é duplicada, quadruplicada...E em algum termo invertida, já que a imagem torna-se, na materialidade da película, também um significante. Nos perdemos na potenciação quadrada das articulações da língua, já não conseguimos distinguir o elemento expressivo do seu conteúdo, nem o operar o oposto. Um desdobramento que também é dobramento.
O abismo de Catherine nos alcança de maneira trágica. Seu jogo moral com Jules e Jim é um tormento maravilhoso. Seu jogo amoroso um constante flerte com a morte. Ao amor desse triângulo não cabem epítetos. Como poderiam caber aos seus amantes? O grande paradoxo é que Jules, Jim e Catherine encarnam suas não-identidades. E não podem deixar de afirmar o significante que são. Como o conteúdo não pode ser subtraído da expressão. A morte surge como a única saída. Daí a grande tragédia inscrita em toda codificação...

"Audrey Hepburn + George Bernard Shaw = Meu Deus do Céu!" por Gustavo Ferreira


(Esta será uma resenha séria. Se você está com sono, é contra-indicada.
Se, ao contrário, está insone, tem em mãos um excelente
remédio. Algo como três caixas de Valium concentradas em duas páginas.)

Os americanos! Que tipo de gente faria tão bem o papel de ingleses quanto eles?
Tudo bem que Audrey seja belga e que Rex Harrisson seja inglês, assim como quase todo o
elenco. É um filme americano, cheio de americanos na direção e na parte musical. My fair
lady é dos musicais mais bem feitos de todos os tempos, disputando talvez com Singin’ in
the rain e The west side story o topo da lista.
Ao contrário do livro em que se baseou, Pigmaleão, de George Bernard Shaw, My
Fair Lady tem o final esperado pelo público. E é lindo que seja assim. Nenhuma má notícia,
nenhuma novidade ruim. Bernard Shaw foi melhorado.
Falo sério. Foi melhorado como se fosse a coisa mais fácil do mundo, como se, de
repente, alguém simplesmente decidisse que ia melhorar Shaw e pronto, foi lá e fez. Mas
com Audrey Hepburn no elenco, na verdade, tudo deve ficar fácil. Ela é como o gênio da
lâmpada que, lá está o mundo feio, chega Audrey e faz que brilhe. Principalmente com
aquelas roupas, que de defeito só tinham a dificuldade de tirar.
Esfarrapada, vendendo flores e gritando “garn”. Essa é a Audrey do filme. Vem o
pigmaleão Henry Higgins e a adota, como um escultor que escolhe qualquer pedra de
mármore ao acaso – aquela ali, ó, que vai dar uma boa escultura. Não sei o que há para
esculpir na Audrey Hepburn, às vezes fico virando a cabeça atrás de defeitos nela e tudo o
que consigo é um torcicolo. Mas Eliza Doolittle, o personagem dela, ah, essa é cheia de
defeitos, como gritar “garn”, por exemplo. Ao contrário de Audrey, geninho que falava
inglês, francês, espanhol, holandês e italiano, Eliza mal falava inglês. Algum cockney
estranho, apenas. Garn!
Eliza, como devem ter notado, é a Galatéa da história, que, como na mitologia grega,
encanta seu escultor, que esculpirá nela os ensinamentos fonéticos – especialidade artística
de nosso pigmaleão –, algo que, segundo a obra de Shaw, era relacionado à posição social
dos pobres. Um mau Inglês, diz, é o culpado por não conseguirem bons empregos. Higgins
se propõe a ensiná-la
e garante que, ao terminar o curso (super intensivo) de fonética, ela
poderá trabalhar numa floricultura de damas ou mesmo ser dona de uma – o coronel
Pickering pagaria por isso, bem como por seus estudos.
Como na lenda, Pigmaleão e Galatéa se apaixonam. Como na lenda, ficam juntos(oh,
não, estraguei o final!). Bernard Shaw, aliás, apropriouse
indevidamente da mitologia
grega. Fez um final em que eles terminam separados, ousou acabar com o futuro deles.
Nesse aspecto, o filme teria o direito de se chamar Pigmaleão; o drama de Shaw, jamais.
Quis o destino, entretanto que acontecesse o contrário.
O sarcasmo shavian é extremado no filme pelas músicas um tanto cínicas, como
“with a little bit o’ luck”, e pelas interpretações. Quando o coronel Pickering pergunta a
Alfred Doolittle, pai de Eliza, se ele não tem moral, a resposta é “Nah. Nah, can't afford
'em, guv'nor. Neither could you, if you was as poor as me” (“Não, não, não posso mantê-la,
capitão. Nem você poderia, se fosse tão pobre quanto eu”).
Há quem diga que My Fair Lady é uma forma refinada de crítica social. Enxergá-lo
assim seria estragá-lo.
Críticas sociais não são coisas de cinema, são coisas de livros ruins e
de filmes de segunda, como “Terra em Transe” e “Narradores de Javé” (que não incluo na
definição de cinema). Coisa de latino-americano
despreocupado com a estética, ou com
senso de estética torto. Talvez haja alguma crítica incidental, ou mesmo intencional, mas
afirmar que isso motiva o filme é palhaçada. Seria como afirmar que noventa por cento do
filme são casuais, apenas plano de fundo pra outros dez por cento intencionais. Seria,
portanto, criticar o filme da pior forma possível – dizer que ele só é dez por cento do que de
fato representa. É errado falar isso de My Fair Lady. Muito errado. Logo dirão que O Rei
Leão é basicamente crítica social! Calem-se,
adoradores da crítica!